sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas









Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira, enquanto alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. A sua missão principal era assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados (1). Acompanhando os trabalhos de construção da referida estrada, vivia em destacamentos temporários como o de Bironque (2)... A avaliar pelas fotos, a açoriana 2753 mais parecia uma tribo de nómadas, com a casa às costas... No meio de tudo isto, ainda conseguiam tempo para fazer roncos, como se deduz da foto com material de guerra (granadas de RPG 2 e RPG 7, além de canhão sem recreio)...

Trinta e cinco anos depois, é o mesmo homem que pergunta, com a frontalidade, o desassombro e o sentido de humor que o caracterizam, e a propósito do nosso encontro na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de Outubro de 2006: "Como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas! "... Mas o melhor é ler a carta (e não o e-mail!) que ele fez questão de me mandar, e que vem selar ainda mais os laços que nos unem nesta tertúlia virtual que é uma rede social... Vitor: obrigado pela tua carta, e os meus parabéns... Ganhámos, todos, mais um irmão de sangue, suor e lágrimas, que foi também andarilho do mundo, que é hoje brigadeiro da vida e avô babado e que alimenta a esperança de chegar a general!... Por mim, dou-te já as quatros estrelas!... Quanto à tua segunda carta, em que abordas o problema dos desertores e refractários, evocas a tua experiência de vida em França e sugeres uma mudança de orientação editorial do nosso blogue (que seria hoje a do "politicamente correcto"), será publicada a seguir, num dos próximos posts (LG) .

Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Mensagem do Vitor Junqueira, enviado à 0h23, de 23 de Outubro de 2006, segunda-feira.

Meu caro camarada e amigo, Luís Graça.

Hoje como é domingo, vai uma carta! Não que eu tenha seja o que for contra os emílios, como diz um certo compadre da TV. Mas acho-os neutros, impessoais, devassos. São como recados escritos que passam de mão em mão. Tornaram-se conspícuos, mas falta-lhes a chama e o intimismo de uma carta. Na minha opinião, um e-mail está para a escrita como uma rapidinha para o amor. Mal comparado? Não importa.

Tenho um amigo que sendo um quadro importante numa empresa nacional de grande dimensão, tem, por dever de ofício, de ser muito cuidadoso quando abre a boca. Disse-me ele um dia:
- Ó Vitor, tu conheces-me tão bem que eu quando falo contigo nem preciso de as pensar!

E é verdade, os amigos também servem para isto. Permitem-nos que o espelho mostre a nossa verdadeira cara, sem a pesada máscara dos formalismos. Assim estou eu.

Aqui por Pombal, está de chuva. A água é tanta que até os cães a bebem de pé. Já começo a ter saudades daquele belo dia com que o S. Pedro nos brindou aquando do nosso encontro em Montemor (3). O clima esteve espectacular e não apenas por razões meteorológicas. Penso que este primeiro encontro se prolongará através das suas réplicas e tréplicas, durante muito tempo. Em todos deixou certamente uma marca, e os participantes hão-de vir a terreiro contar o que lhes vai na alma. A começar por isto: como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas!

Hoje já somos todos Brigadeiros da Vida. Por isso, creio que deste encontro e dos que aí vêm, surgirão naturalmente, planos, sonhos, projectos e utopias que nos hão-de guiar até ao Generalato. Ainda temos muito(as) para dar!

Os homens da nossa geração foram praticamente todos combatentes. Poucos escaparam à mobilização o que não deixa de ser insólito, já que o regime de então nunca admitiu o estado de guerra. Como afirmei em Montemor, é esta experiência que é ao mesmo tempo pessoal e colectiva, esta perspectiva da vida e do mundo em tempo de guerra ou na paz, do valor dos homens e da filha da putice de que são capazes, que os ex-combatentes têm o dever de transmitir, pelo menos àqueles que lhes são mais próximos. Que lhes sirva, para que de olhos e ouvidos bem abertos não se deixem embalar por canções de bandido, que alguns começam por aí a trautear. Porque como disse, a paz não é mais do que um interlúdio entre guerras.

Já agora, que falei de brigadeiros e generais, deixa-me dizer-te que a subida de patente mais gostosa que tive, foi a promoção a avô. De duas endiabradas garotas (Inês e Carolina), filhas da minha Maria Gracinda.

Mas ainda estou para as curvas! Sinto que de estetoscópio ou de G3 ainda lá ia. Se fosse preciso, quando e onde fosse necessário.

Luís, espero não te ter decepcionado com esta última tirada! Depois do que disse... parece que não disse. Ou que dei o dito por não dito. No entanto a coerência é uma das linhas de rumo que têm balizado a minha vida, reconhecendo embora e falando por mim, que a falta dela, faz parte do pacote de pecados originais com que desembarcamos no Mundo. Como agora se ouve dizer tantas vezes, tudo depende do contexto. E para ser franco, não sou, nunca fui um pacifista militante.

A propósito, penso que ainda teremos de falar sobre um assunto que já afloraste no Blogue. Trata-se da questão dos conscritos ou mobilizados que decidiram não comparecer à chamada. Nalguns casos na véspera de embarque, como é sabido. Nunca conheci nenhum, embora tenha ouvido dizer que alguns até cantavam nas estações do Metro de Paris, precisamente numa altura em que eu próprio andava para aqueles lados.

Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champinhy e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!

Também estive em Villiers sur Marne, Pléssis Trevisse, Lasigny, Sucie en Brie, Bonneil, St. Maur, Charenton Écolles, Creteil, Frennes, Villecresnes, Maisons Alfort, Rambouillet, Le Mesnil St. Denis, Trappes, S. German en Laye, Poissy, Argenteuil, Houilles sous Carriéres e alguns outros grandes centros de acolhimento de portugueses na região parisiense. Mas conheci também a nossa realidade em locais distantes da capital como Lyon, Strasbourg, Metz, Oyonax, Bourg en Bresse, Cherbourg, Le Havre e Rouen.

Não digo mais porque acho que já chega para desincentivar quem me queira vir contar histórias. O grande problema é este: se um boato se desmonta com relativa facilidade, já o mito que muitas vezes é filho de um boato assente sobre um fundo de verdade, ganha raízes e torna-se praticamente indestrutível. De resto, quanto mais vivo mais me convenço de que a Humanidade não consegue subsistir sem os mitos. E assim muitos dislates continuam a ser ainda hoje alimentados em Portugal por quem tem o poder de fazer opinião.

Já agora deixa-me fazer uma pequena correcção a uma referência que li no Blogue a meu respeito. De facto, eu nunca vivi em França com os meus pais. Quando eu tinha uns doze ou treze anos, tive a sorte de ler dois livros emprestados pela biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian que traçaram o meu detino. Foram eles a viagem da Kon Tiki (Pacífico) e o mistério dos Homens Vento (Tibete). O bichinho das viagens instalou-se de tal maneira que o meu grande sonho naquela idade, era pôr-me ao fresco. E assim aconteceu. Terminado o Liceu, já com 18 anos no pêlo, tratei do Passaporte que requisitei na Junta da Emigração à Rua da Junqueira e, ala que se faz tarde, aí vou direito a Paris no Sud-Express.

Por lá andei entre idas e vindas até pouco antes de ser hesitantemente incorporado no glorioso exército português, em 14 de julho de 1969. Porque a minha paixão era a Marinha, mas aí servia-se durante muito mais tempo. Mais tarde tornei-me também oficial da Marinha Mercante Portuguesa. E como podes verificar pelo documentos que seguem como anexos (4), mais voluntário não poderia ser. Já então tinha a minha vida montada com casa, emprego, carta de condução, pópó, e uns bons trocos no bolso para as despesas.


Talvez fiques surpreendido, como eu ficaria, depois de ouvir relatos de fugas a salto, medonhas e perigosas, mas a verdade é que este teu amigo, já depois de inspeccionado e apurado para todo o serviço militar, saía do país com autorização militar no bolso sempre que queria. E mais, sendo já aspirante miliciano, aproveitei uns escassos dias de férias após o COM [Curso de Oficiais Milicianos] e fui a Paris fazer a minha inscrição consular que até então não me tinha sido necessária, a fim de renovar o passaporte.

Estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (1).

Para os que acharem que tive algum tratamento especial, posso garantir que não. Do meu curriculum consta que fui trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico. Mas nunca fui Bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia.

Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida só comparáveis àqueles em que andei lá por fora.

Siga a marinha e viva Portugal.
Um abraço do Vitor Junqueira.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)

(3) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)

(4) A publicar posteriormente com uma segunda mensagem, que é a continuação desta.

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