sexta-feira, 20 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1679: Estórias cabralianas (20): Banquetes de Missirá: Porco turra e Vaca náufraga (Jorge Cabral)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > 1970 > A economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se por duas vias: o pré dos soldados africanos e das milícias e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado... (LG).


Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



1. Texto enviado em 10 do corrente.

20ª estória do Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 ):

Amigo Luís,

Aí vai estória (1).
Não vou poder estar a tempo do almoço dia 28. Porém, vou fazer os possíveis para aparecer à hora do café.
Grande Abraço
Jorge

PS - Os meus contactos telefónicos são: 213.539.929 e 967.865.576. Já não utilizo o endereço claranet, que deve ser substituído pelo almacabral@gmail.com.


Estórias cabralianas (20) - Banquetes em Missirá: Porco turra e Vaca náufraga
por Jorge Cabral

Em Missirá comíamos, praticamente todos os dias, arroz acompanhado ora de pé de porco, ora de atum ou cavala, com muito pão e sempre altas doses do insípido vinho quarteleiro, o qual, segundo se dizia, era cortado com cânfora, para diminuir os ímpetos...

Frescos nunca, proibitiva a caça, experimentámos apimentar os peixinhos do Gambiel, que pescávamos à granada, mas continuaram intragáveis. Quando durante dois meses nos faltaram as batatas, devido às avarias simultâneas do Sintex e do Burrinho, avinagrámos as doces parentes das ditas, que cresciam bravas junto ao arame, mas não tivemos sucesso.

O nosso melhor pitéu era Punheta de Bacalhau que saboreávamos com prazer, petiscando do mesmo em enorme pratalhão. Aliás, quando um novo básico-cozinheiro se apresentava, eu costumava perguntar-lhe:
-Sabes fazer uma boa punheta? – Ainda me lembro de um que, corando como um tomate, quis logo fugir do Quartel, pensando que o Alferes...

Porém, apesar da sobriedade da dieta, todos os meses ficávamos devedores na CCS [de Bambadinca], porque ultrapassávamos as verbas respeitantes aos nove metropolitanos, pois os africanos [do Pel Caç Nat 63] eram desarranchados. A razão era simples: sendo poucos, não conseguíamos esgotar uma grande lata, por refeição, e porque não tínhamos frigorífico, uma parte era sempre desperdiçada.

Entrei eu, e entrou o Branquinho, com as quantias em falta. Talvez por isso, ainda devo às Agências de Bissau as minhas viagens de férias... Tivemos, sim, dois grandes Banquetes. Um foi porco no espeto. O outro foi vaca, de todas as maneiras. O porco foi achado no caminho para Mero. Era um porco turra que, ou desertou, ou foi deixado como oferta. Quanto à vaca, calculem, foi pescada no Geba. Tratou-se de uma operação complicada. Regressávamos de Bambadinca de Sintex, e mesmo no meio do rio, deparámos com a náufraga, debatendo-se.

Como iríamos salvá-la? Gorda, possante, pesada, afiançou o barqueiro, ser perigoso aproximarmo-nos, pois podia virar o barco. Sem cordas, nem vocação para cow-boys, a missão parecia impossível. Então, tomei o comando da Nau, e qual pirata jurei conquistar o carnívoro despojo, prometendo bifes para o jantar.

Manobrando o barco, encostei-o na traseira do Animal, e avancei, avancei até à margem, ainda longe do nosso destino. O certo é que a vaca chegou a terra, e nós, logo desembarcados, lhe tratámos da saúde.

Salva no rio, morta na praia, e ali desmanchada num ápice, pelo Alfa e pelo Django, bons soldados mas melhores magarefes, que mereceram avultado quinhão. Entrámos no Quartel carregados e foi noite de festa. Comemos, comemos, até de madrugada...

Hoje, quando algum Amigo pescador se gaba das suas proezas, costumo interrogar:

- Alguma vez pescaste uma Vaca?

Jorge Cabral

______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. lista das estórias cabralianas:

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum... (inclui a estória a que deveria corresponder o nº 1 > A mulher do Major e o castigo do Cabral)

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas) (Estória que corresponderia o nº 2)

7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas) (Estória a que corresponderia o nº 3)

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXV: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá (numeração repetida, por lapso do editor)

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIX: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba

13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXVII: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida

3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa

10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)

18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

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