Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "O 1º Cabo Monteiro. Às costas um pequenino Alfero Cabral " (JC)... A par da tragédia, a guerra da Guiné foi também um peça do Teatro do Absurdo... Jorge Cabral tem o grande talento e o especial mérito de nos mostrar, com um toque de genial humor, esse outro lado da guerra, que era o nosso quotidiano de gente saudavelmente louca, que hoje é vencedora porque sobreviveu (LG)...
Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.
Mais uma estória, pouco ... natalícia mas divertida, do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 (1).
Comentário do editor do blogue: É caso para dizer que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na linha de fronteira, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos milícias com a família às costas e mais meia dúzia de quadros e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...
Amigos e camaradas da Guiné: não vejam nestas estórias cabralianas qualquer propósito de ofender a instituição militar, mas tão apenas o relato das manifestações de uma saudável loucura, própria dos seres humanos que são postos à prova em situações-limite...
Contrariamente a qualquer bestiário da guerra, as estórias cabralianas são um hino à idiossincrasia lusitana, à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...
Eu sei que as estórias do Jorge têm fãs e detractores... Eu, que estou do lado dos fãs, tiro-lhe o quico, e espero que ele não esgote este filão: ele é um grande observador da natureza humana e consegue também, em duas pinceladas, criar personagens e mostrar aquilo que é o único na espécie humana que é a compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio > sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor).
O Jorge, que enquanto estudante universitário devorou o Ionesco e o teatro do absurdo, não se coloca na situção, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça e do cenário...
Querido amigo e camarada: Não precisas de bagas do Sambaro no teu sapatinho para nos pores a sorrir e a pensar... Mas que o talento não te falte no Novo Ano que - dizem - aí vem, cheio de promessas, de ilusões e de ameaças como os todos os Novos Anos que já vivemos... L.G.
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Amigo Luís,
Cá continuo relembrando a vida nos Destacamentos, com a ajuda dos Amigos que me acompanhavam, e que me contam extraordinárias peripécias, algumas das quais eu já havia esquecido.
Num Destacamento isolado como era Missirá, a forma de estar e de viver dependia muito da personalidade do respectivo Comandante, suas capacidades, limitações e peculiaridades. Até porque as funções que lhe eram atribuídas, excediam a mera chefia militar. Médico, Psicólogo, Juiz, Conselheiro, superentendia em todos os assuntos, e do seu carácter podia resultar um férreo ambiente prisional, ou uma agradável comunidade de afectos, como creio ter sido o meu caso.
Claro que estávamos todos apanhados, mas numa loucura amena e saudável, que nos divertia e nos ajudava a mascarar a tristíssima rotina.
Todos, metropolitanos e africanos, alinhavam na imaginação do alferes que cada dia surgia com uma nova ideia. É por isso que devo ter material para centenas de estórias, desde a comemoração de São Mamadu, até o ter colocado as mulheres de sentinela…
As decisões mais difíceis aconteciam com as evacuações por doença, principalmente porque o meu enfermeiro, o maqueiro Alpiarça, quando não estava bêbado, para lá caminhava…
A estória que hoje remeto, descreve, precisamente, uma situação em que tive muitas dúvidas. Felizmente, o Sousa recuperou…
Bom Natal, Amigo! Grande Abraço!
Jorge
Das bagas do Sambaro, às agruras do Sousa. Viagra (?) em Missirá
por Jorge Cabral
Aos Domingos vestíamo-nos à paisana e dávamos longos passeios à volta da parada, imaginando praças, avenidas, ruas, adros de igreja e até estações de comboio. Depois entrávamos na Cantina e invariavelmente pedíamos Um fino e tremoços.
Não havendo tremoços, triplicávamos a cerveja, não sem o Pechirra, o nosso motorista, explicar a importância do acompanhamento em falta, o qual segundo ele possuía um monumental efeito afrodisíaco, pois… e lá contava uma delirante estória das suas proezas sexuais. Só os soldados africanos e algum adido metropolitano periquito, ainda o escutavam, embora o seu calão portuense fosse dificilmente traduzível.
Uma vez o bazuqueiro Sambaro anunciou, que possuía umas bagas suma tremoço tão boas que um homem podia estar toda a noite… Achei piada. À basófia tripeira respondia a basófia fula… Afinal as diferenças não eram assim tão grandes…
O certo é que Sambaro foi buscar as tais bagas, e calhou ao Sousa experimentar. Ao fim de uma hora resultou. Passadas quatro horas continuava a resultar. Oito horas depois o Sousa uivava de dor, e suplicava-me a sua evacuação. Que fazer?
Reuni com os furriéis. Podia eu lá evacuar um soldado com aquele motivo ?! Que escreveria na mensagem? Ataque de te…? Pragmático o Amaral sentenciava:
- O que sobe, desce - e o Branquinho acrescentava:
- Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.- E quanto ao Pires inventava:
- A curiosidade não matou, inchou o gato.
Tomada a decisão, o pobre do Sousa aguentou três dias, como um herói.
Quando terminei a comissão, deixei-lhe proposto um louvor “porque durante setenta e duas horas suportou com estoicismo a dor resultante de fogo interno, devendo ser apontado como exemplo da virilidade lusitana"...
Parece que o Polidoro (2) não concordou. Enfim, injustiças…
Jorge Cabral
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Notas de L.G.:
(1) Vd. últimpo post > 6 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)
(2) Último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Substituiu o tenente-coronel Magalhães Filipe, se a memória não me engana.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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