quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)


Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > O Jorge Cabral e as queridas bajudas mandingas... Um homem não é de pau e, às vezes, mete-se em sarilhos de saias, como aconteceu com a Micá desta estória, passada em Vendas Novas...

Foto: © Jorge Cabral (2006)


Mais um short story (1) do nosso amigo e camarada Jorge Cabaral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário, especialista em criminologia).


O Stresse Aviário, das Galinhas aos Morcegos
por Jorge Cabral

Terminada a especialidade de Atirador de Artilharia, permaneci como aspirante, em Vendas Novas, na respectiva Escola Prática. Aí me atribuíram variadas funções, Justiça, Acção Psicológica e Cultural, Revista Literária, etc, etc, pelo que quase nunca fiz nada. Quando me procuravam num lado, estava sempre no outro…

Na Justiça, creio que apenas dei andamento a um processo, enviando uma deprecada para Angola, a perguntar se o Furriel Patacas possuía três mãos. É que uma pretensa vítima de violação havia declarado que o Arguido, com uma mão lhe tapara a boca, com outra lhe agarrara os braços e com mais outra lhe despira as cuecas… Acabei por não receber qualquer resposta mas ainda hoje penso que uma terceira mão seria muito útil em certas ocasiões…

Publiquei na Revista da Unidade alguns poemas, todos objecto da censura do Comandante. Uma vez exigiu que substituísse o verso “um gato a escorregar pelo sexo inteiro”, ordem que cumpri escrevendo “molhando minha pena em teu tinteiro”, opção que o bom do Coronel aplaudiu, dizendo:
- Assim está melhor, lembra a escola.

Dinamizei jornais de parede, mas escândalo dos escândalos, esqueci-me de organizar a romagem dos militares a Fátima, no dia 13 de Maio. E assim pela primeira vez, a EPA - Escola Prática de Artilharia não esteve presente. Tão fatal e laico esquecimento ter-me-á valido a mobilização…

Penso que foi na qualidade de oficial de justiça que conheci Micá, rosada e bem nutrida moçoila, pela qual logo senti um clique de ruralidade erótica. Filha do 1º Cabo R/D Correia, viviam ambos nos confins do Polígono, em instalações do quartel, a uns quinze quilómetros da Vila. Órfã de mãe, Mica tinha muito medo do pai, que praticamente não a deixava sair de casa. Sabedor que o Correia, após sair do serviço, fazia um longo turno na tasca do Velez, só regressando a casa muito tarde e sempre bêbado, aventurei-me, fui procurar a Micá.

Bem barbeado, perfumado e de fatinho novo, lá cheguei. Ainda havia só conversa mas a noite prometia, eis que os cães começam a ladrar e Micá empalidece:
- O meu Pai, o meu Pai mata-me!- grita - Fujo e, sem outra alternativa, enfio-me no galinheiro, e fico quietinho debaixo do poleiro. Sinto o cabo entrar em casa e logo depois sair de caçadeira em punho:
- Será raposa ou raposão ? - clama, na sua voz de ébrio. - Não me mexo, e quase não respiro, enquanto montes de galinhas me picam, me picam, me dejectam.

Só ao raiar da manhã, e pé ante pé, é que abandono o local. No quartel estou uma hora debaixo do chuveiro mas não dissipo o cheiro. Quanto ao fatinho novo, o único remédio foi deitá-lo para o lixo.

Tão traumática experiência deixou profundas marcas. Durante largos meses só sonho com galinhas. Até a Micá surge como galinha-gigante, pondo ovos-granadas que me rebentam no peito.

Só na Guiné e em Fá é que começo a melhorar. Ainda sonho com a Micá, transformada em bajuda, aparecendo também o Cabo Correia, feito turra, que eu mato com a sua caçadeira. Acordo mais aliviado…

Em Missirá, contudo, sofro uma recaída. Não é que todos os dias, o mosquiteiro aparece manchado de uma substância amarelada e mal cheirosa ?! Fezes galináceas, concluo. Voltaram. Inspecciono o tecto, e de galinhas, nada. Regressam os sonhos e agora todos são galinhas, o Comandante, o Major das Operações, o Capitão, o Exército inteiro.

Vou a Bambadinca consultar o Nanque (2), que me pede cem pesos e uma galinha para resolver o assunto. Levo-o a Missirá e ele ao pé da cama, mata a galinha, fazendo escorrer o sangue na minha cabeça. Diz umas palavras, faz piruetas e pronto, afirma estar tudo acabado. Logo no dia seguinte porém, reaparecem as manchas. Estarei a enlouquecer?

Falo então com o Teixeirinha, o nosso cozinheiro, que me havia contado muitas histórias de bruxas. Cheio de importância por o Alferes a ele ter recorrido, o Teixeirinha, já muito bebido, faz rezas, olha, cheira e quase irritado, sentencia:
- Porra, meu Alferes! São os Morcegos que lhe andam a cagar em cima!

Jorge Cabral

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Notas de L.G.

(1) Vd. a última, post de 20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

(2) Vd. post de 3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

(...) "Alguns dos que passaram por Bambadinca, certamente se lembrarão de ver o Nanque naquela prisão que parecia um galinheiro (1). Por minha ordem era-lhe fornecida uma cerveja diária, mas nunca lhe consegui arranjar macacos que ele gostava de comer assados (2). Não ficou muito tempo preso, pois calculem, passou a ordenança do Comandante do Batalhão…

"Quando me vim embora despedi-me do Nanque. Abraçando-me, aconselhou-me a seguir o chamamento dos tantãs… O que sempre tenho feito!" (...).

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