Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 29 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 1968 > "Um grupo de soldados a gralhar junto de uma ponte de cibes".
Foto: © Beja Santos (2006)
Continuação da publicação das memórias de Beja Santos (1), que comandou o Pelotão de Caçadores Nativos nº 52, em Missirá, partir de Agosto de 1968. Neste post, o nosso amigo e camarada aborda, de maneira delicada e elegante, mas também lúcida e corajosa, um dos tabus dos nossos 13 anos de guerra colonial: a solidão e a sexualidade (homo ou hetero) nos quartéis, em geral, e nos nossos aquartelamentos e destacamentos da Guiné, em particular.
É um notável texto, que merece a nossa melhor atenção e reflexão. Fabuloso o título que me é proposto e que eu mantenho integralmente, inspirado num grande poeta, músico e cantor brasileiro Chico Buarque (que está de volta a Portugal no próximo mês de Outubro)... É um post que honra este blogue e enriquece a nossa tertúlia: já aqui quebrámos alguns tabus (como por exemplo os nossos mortos que deixámos enterrrados na Guiné, os nossos queridos nharros que abandonámos e que foram fuzilados pelo PAIGC, a incompetência de muitos dos nossos oficiais superiores, os mitos de certas grandes operações...). Hoje, creio, quebra-se mais um tabu...(LG)
Procurar em vão a nossa alma
por Beja Santos
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... isto é circunstância. Solidão é muito mais do que isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma. (De um poema de Chico Buarque).
Em Bambadinca, a 30 de Agosto [de 1968], de um regresso a uma vigilância em Mato de Cão, tinha um maço de fotografias reveladas à minha espera. Muitas delas ajudam-me agora a reconstituir os estilhaços da memória. Eu no Uige, sozinho e acompanhado. Numa delas estou ao lado do Brandão. Despedimo-nos a 31 de Julho, ele seguia para Bula, eu parti para outra oblíqua, em direcção ao Geba. Ver-nos-emos mais tarde, na Op Anda Cá, em Fevereiro [de 1969][, pela última vez. Brandão, tu eras zombeteiro e caçoavas permanentemente dos acasos da fortuna. Eras um verdadeiro minhoto. Nesta fotografia tu sorris. Na minha recordação, tu levas duas granadas lança-foguete ao ombro quando, a escassos metros dos teus pés, rebenta um fornilho. Com o rebentamento, revolteias numa nunvem de salitre e clamas:
- Meu Deus, estou morto!.
Não ganhaste para o susto. Numa cratera ali ao teu lado um dos teus soldados deixou os ossos triturados e Fodé Dahaba chora mansinho. Mais tarde, por aerograma, um amigo avisa-me:
- O Brandão finou-se. Foi um acidente estúpido, um soldado seguia à frente dele com a G3 no ombro, o cano virado para ele. Foi um acidente estúpido, um arbusto destravou o gatilho, a bala entrou-lhe pela fronte. Mais estúpido de tudo é que no caixão, sossegado, parecia dormir serenamente.
Pego noutra fotografia. Agora, é labor insano. A reconstrução de um abrigo em Missirá. Está lá o Alcino Barbosa, o Cibo, Nhaga Macque, Ussumane Baldé, rolam um tronco de palmeira, ainda a cheirar a corte da motoserra. Ao fundo está Sadjo e também o estou a ver pela última vez. Em Março [de 1969], naquela flagelação que reduzirá a cinzas a nossa Missirá, ele vai cair atravessado pelos estilhaços de um granada de um morteiro, quando enxotava crianças e velhos para um abrigo.
Enfim, albuns de militar em campanha na última guerra de Portugal. Há fotografias de tudo: crianças com espingardas Mauser, soldados com sorriso franco a reparar uma ponte, eu a pegar por uma corda uma surucucu, a tal cobra que os soldados fugiam em pânico na mata. São fotografias a preto e branco de gente, de paisagens, de obra feita e refeita.
À noite acabo a leitura de Rebeca, de Daphne du Maurier. A minha mãe ofereceu-me o seu exemplar antes de eu partir, dizendo:
- É uma obra prima, acredita, aliás tu já viste o filme. - O que era verdade. Já vira num cineclube a Rebecca de Hitchcock, Óscar de Melhor Filme em 1940, o primeiro de Hitchcock na América, com Laurence Olivier e Joan Fontaine nos principais papéis, e Judith Anderson num desempenho magistral da governanta, que lhe valeu o Óscar secundário.
Romance inesquecível que gira angustiantemente à volta de Rebeca, que nunca parece. Obra de mistério e suspense, é uma ficção que resvala para a literatura policial já que há um assassínio que, neste caso, nunca será desvendado. Mais tarde, irei reler assiduamente o livro que tem uma bela capa de Bernardo Marques, um desses artistas magistrais que mudaram o desenho gráfico das edições em Portugal.
É noite adiantada e vou fazer a ronda pelos postos. Como sempre, levo a minha lanterna e procuro itinerários diferentes. Tudo seguro no posto junto ao cavalo de frisa, falo com Gibrilo e peço-lhe para mudar a camisa do petromax. Depois, sigo para o posto virado para a fonte. Aí está o Veloso, e conversamos sobre aprovisionamentos para a próxima coluna a Bambadinca. Envieso e vou entre moranças por onde raramente passo. Embrenho-me e olho demoradamente a Mesquita a pensar no Ramadão que se avizinha. Sigo silenciosamente e é então que oiço vozes sussurrantes, vozes que vão resfolegando e que crescem em ansiedade. Aponto o foco para a zona do murmúrio, a luz que acendo é a luz que me queima o olhar e me tolhe o movimento. O que vi está visto: dois soldados fazem sexo e o foco da lanterna apaga-se no exacto momento em que um homem sentado afasta o outro homem que estava em cima dele.
Em pânico, volto para o meu abrigo e atiro-me pesadamente para a minha cadeira de verga onde leio, escrevo e oiço música. Eu sei e virei a saber que o sexo é uma questão interdita nesta guerra. Há muito calão, muita expressão brejeira, fala-se de amores mas parece que tudo morre no pudor subterrâneo seja dos amores que ficaram em Portugal seja no pacto de silêncio que queremos ver estabelecido com os nossso corpos jovens a quem se procura preservar da intimidade dos outros olhares, dos outros filtros da consciência. Fala-se do sexo mas não se diz nada, é como se fossem frases lançadas como bolas de sabão. Não há consequência nesta comunicação, até porque aquelas frases soltas não estão atadas a afectos. Andamos em tronco nu, endereçamos piadas às bajudas mas nas conversas entre militares, ainda por cima um quartel em que vivemos em abrigos ao lado da população civil, sente-se que não há gravidade neste erotismo epidérmico. As dores do sexo não são transmitidas ao grupo, depois somos portugueses e nesta guerra constituimos um caldeirão de gente que passou pelas universidades, pelo liceu e escolas técnicas, agricultores, operários e estudantes entendem-se na caserna por um denominador comum onde o sexo íntimo não existe nem se comenta.
É por isso que eu estou estuporado com este quadro insólito, conhecendo aqueles homens com quem convivo todos os dias e que acabo de encontrar numa inesperada união homossexual. Procuro aliviar a tensão pondo música barroca no gira-discos e até tentei em vão sossegar os nervos lendo. Oiço o saibro a ser esmagado pelo andar de alguém que se aproxima e me bate discretamente à porta da morança. Mando entrar e segue-se um diálogo em que descobri que era homem capaz de me irmanar com o sofrimento de quem procurava. Nessa noite, sei que tomei decisões acertadas mas procurando em vão a minha alma
- O que é que o meu alferes vai fazer comigo? Diga-me já se nos vai castigar ou contar o que viu.
Olho-o com embaraço e peço-lhe para se sentar:
- Ouve, o que vi faz parte da vossa intimidade e não vejo nenhuma razão para trazermos a público o presenciado. Estou muito embaraçado, porque tivemos todos uma conversa demorada sobre o respeito e a boa convivência que devemos a esta população. Adverti para os perigos de procurar mulheres casadas ou solteiras. Tu tens visto estas cenas em que os soldados nativos se envolvem em amores com as mulheres dos outros e mal cheguei houve aqui uma cena de tiroteio. Quando há adultério, ou coisa parecida, remeto tudo para o régulo Malan. Agora, a situação é nova, um militar da Metrópole envolvido numa relação sexual com um soldado nativo. Não te passa pela cabeça o que seria se vocês fossem vistos pelos vossos camaradas?
O meu visitante, que entrara com uma expressão congestionada, não pareceu serenar com esta minha declaração:
- Meu Alferes, não estou a representar, eu ando de cabeça perdida, desde miúdo que procuro reprimir-me, não sou como os outros, não perco a olhar a raparigas, vou sempre direito a olhar a zona do sexo dos homens, aprecio as formas e uma cara bonita. Se o meu Alferes contar esta história eu juro que me mato, não estou a encostá-lo à parede, eu dou um tiro na cabeça, eu não aguentarei a vergonha de andarem a chamar-me roto ou maricas.
Achei que devia dar uma nova direcção à conversa:
- Camarada, espero que incluas na tua vergonha a sorte do guineense que arrastaste para o teu acto. Não sou padre nem inquisidor, sou o teu comandante e vamos agora tratar do dia de amanhã. O que eu vi, vi. Não haverá, da minha parte, qualquer publicidade ao que vi. Talvez vocês tenham tido muita sorte em não ter sido apanhados por civis ou camaradas. Vais-te entender com o teu amigo sobre o que poderá acontecer se vocês forem vistos a praticar sexo. Não me ameaces com tiros na cabeça, controlas-te como toda a gente pois a vergonha é também uma regra que decorre do autodomínio. A vergonha não é um assunto exclusivo de homossexuais.
O meu visitante, entretanto, quis desabafar:
- Ó meu Alferes, eu não sei se aguento a situação só a bater punheta, eu gosto do meu amigo, esta solidão enlouquece-me. Eu procuro medir as consequências, sabia muito bem que andava a arriscar tudo, estou farto desta guerra, sinto-me muito só, já me basta assobiar às raparigas, como se eu fosse uma pessoa normal. O que é que eu vou dizer ao meu amigo?
Pus-me de pé, endiretei os óculos, controlei a respiração e disparei sem contemplações:
- Antes de mais, lembra-te que esta solidão atinge toda a gente. Este não é o nosso lugar, mas temos que fazer deste território o nosso lugar habitável. Vais dizer ao teu amigo que tem mulher e filhos que falaste comigo, que eu vi o que vi e que lhe peço que se lembre que vocês não podem andar a fazer sexo entre moranças e não venhas agora perguntar aonde é que vocês devem fazer sexo. O teu discurso não pode ser desculpa para novas imprevidências. Procura não ser tão egoísta. Medita bem, se necessitares de mudar de quartelamento, não hesites caso descubras que há uma relação profunda entre ti e ele. Amanhã, ao fim do jantar, vens-me dar conta do que decidiste. Agora, não leves a mal, já passa das 2 da manhã, temos que dormir. Boa noite. O que conversámos fica estritamente entre nós, não os dois mas os três. Explica cuidadosamente tudo ao teu amigo.
No dia seguinte, depois do loto a feijões, avancei para o meio da parada como se fosse ver o abrigo do morteiro. Discretamente, ele seguiu-me e deu-me conta da sua decisão:
- Dou-lhe razão, não posso comprometer o meu amigo, ele seria a principal vítima. Logo que possa, veja se consegue a minha transferência. Agradeço-lhe a sua compreensão.
Chegámos a Setembro, o cacimbo veio mais cedo. Pela primeira vez, participei numa emboscada nocturna, levei mosquiteiro, permanecemos num arrozal até de madrugada. Para quem se recorda, estas emboscadas diante da floresta hermética eram fisicamente duras e punham o nosso moral à prova. Então, ganhando no factor surpresa, na madrugada de 6 de Setembro, o bi grupo de Madina-Belel [, a noroeste de Bambadinca, no Cuor, ] atacou com uma salva de morteiros, bazucas e muita metralha. Como se fosse hoje, recordo o meu baptismo de fogo. Como em todas as outras situações desta natureza, não faltei à regra cometendo os meus dislates. O primeiro foi acender a luz enquanto a metralha serpenteava sobre os céus de Missirá. Convencido que o hábito faz um monge vesti o meu pijama, calcei-me, abri a porta olhei o fogo a toda a volta como se estivesse a ver um filme em cinemascópio, e corri para um abrigo com a G3 na mão. Eu vou contar.
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!
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