Post originamente publicado em 4 de Fevereiro de 2006, em Luís Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada > Guiné 63/74 - CDXCVIII: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12) .
Lamentavelmente o editor do blogue cometeu um erro sistemático, replicado em diversos posts: o rio chama-se Udunduma e não Undunduma... Esse erro está agora a ser corrigido, com a republicação desta nova versão do post (1)
Lamentavelmente o editor do blogue cometeu um erro sistemático, replicado em diversos posts: o rio chama-se Udunduma e não Undunduma... Esse erro está agora a ser corrigido, com a republicação desta nova versão do post (1)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Comentava, no início do ano de 2006, o Jorge Cabral, com aquela sua desconceratnte ponta de fina ironia, que nós - aqui no blogue - eramos demasiado sérios e que escrevíamos como se a guerra (da Guineé) ainda não tivesse acabado... para nós. Os nossos relatos eram dramáticos. As nossas memórias estavam carregadas da tensão dos dias, do cansaço dos meses e do silêncio dos anos.
Em 1969/71, no tempo da CCAÇ 12, a segurança desta ponte, construída em 1952, era de importância vital para toda a zona leste (regiões de Bafatá e Nova Lamego). Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No ataque em força, a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC tentaram dinamitá-la. Embora parcialmente destruída (era de bom cimento armado...), continuou operacional, e por cima dela continuaram a passar inúmeros batalhões...
Já sabemos que a partir daí passou a ser defendida permanentemente por uma força a nível de pelotão, a cargo das unidades do BCAÇ 2852, como foi o caso por exemplo da CART 2339 (Mansambo) (1). A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelo Pel Caç Nat 53 (Bambadinca) (2).
Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas em zê comunicando entre os precários abrigos individuais. O destacamento assentava sobre uma elevação de terreno, sobranceira ao rio e à ponte.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor em Bambadinca)
"Era o António Dias Santos, de alcunha, não sei porquê, O Bacalhau. Quando estava em Bambadinca normalmente andava pela tabanca ao cheiro das bajudas e quase sempre com uma varinha na mão a imitar um pingalim. Há uns anos, quando organizei um dos primeiros almoços da rapaziada, procurei na lista telefónica o nome dele na zona da Régua, pois sabia que ele tinha sido funcionário da CP e que morava ali. Descobri-o, mas quando falei com a senhora é que fiquei a saber que ela já era viúva do Bacalhau" (HR)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Se calhar o Jorge tinha (e continua a ter) razão. Pelo menos, alguma razão. Os nossos sentimentos são contraditórios. Alguns de nós conseguem ter (ou mostrar) uma visão mais diurna e positiva da Guiné do tempo da guerra. São capazes de se encantar com as imagens e as recordações da Guiné. Alguns conseguiram até lá voltar e fazer as pazes com os jagudis ou os sinistros fantasmas que os perseguiam. O Humberto, o Marques Lopes, o Guimarães, o Albano, o Teixeira, o Allen, o Camilo, o Paulo Santiago, o Beja Santos, voltaram lá, em diferentes épocas ... O Paulo Salgado vive lá, como cooperante, com a sua Conceição... O jornalista e professor Jorge Neto vive lá, em Bissau, no Bairro da Cooperação, vizinho dos Salgado... E regressa todos os anos, ao seu Alentejo, de carro, atrvessando o norte de África...
Outros ainda (onde eu muito provavelmente me incluo) querem lá voltar ou andam a arranjar coragem para fazer a viagem de retorno, divididos entre uma certa imagem mítica do passado e o medo (traumático) do desencanto e do pesadelo dos dias de hoje.
Enfim, outros continuarão a ter uma visão mais nocturna e negativa dos acontecimentos que os marcaram: as emboscadas, as minas, os ataques e as flagelações, a morte, a dor, o sofrimento, a solidão, a angústia, o absurdo da guerra que fomos obrigados a fazer...
Foto: © Humberto Reis (2006)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > > Pesca à linha, banho à fula, passeata de piroga, um dia descontraído, quiçá até um dia feliz... Quem disse que não se podiam passar uns dias felizes nas margens do Rio Udunduma ? Não era o meu caso, que não pescava nem tomava banho naquelas águas, não jogava à lerpa, não ia à caça... O tédio dos dias, o pesadelo das noites, a solidão e o sentimento de abandono não me deixaram saudades do Udunduma .. A paisagem era deslumbrante, mas os mosquitos devoradores... Era um dos melhores sítios da região para se apanhar uma valente carga de paludismo... O pior de tudo, é que nem dos cães grandes ali nos livrávamos (3)...
Foto: © Humberto Reis(2006)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Foto: © Humberto Reis (2006).
Já deixámos, porém, aqui provas do nosso bom humor, já aqui contámos estórias, mais pícaras, mais divertidas ou mais banais, tentando dar cor, cheiro e sabor àqueles 700 ou mais dias das nossas vidas que passámos na Guiné... O próprio Jorge deu o exemplo, deliciando-nos com as suas pequenas estórias que eu chamei cabralianas... O Jorge sempre teve uma maneira muito própria, desalinhada, talvez até marginal, de ser e de estar na tropa e, por extensão, na guerra...
O nosso convívio, na Guiné, era esporádico (quando íamos a Fá ou ele vinha a Bambadinca) mas foi o suficiente para eu o sinalizar como uma das figuras impagáveis me cruzei na Guiné... Felizmente, que o Jorge está de regresso e que podemos relembrar, em conjunto, velhas estórias, e descobrir, encantados, novas estórias saídas da sua talentosa pena...
Luís Graça
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Notas de L.G.
(1) Vd. também post anterior (P1130), com data de 29 de Setembro de 2006.
(2) O Pel Caç Nat 53, que será mais tarde comandado pelo Alf Mil Paulo Santiago, no Saltinho, esteve no Xime, no início da comissão do BCAÇ 2852 (que veio em Agosto substituir o BART 1904), tendo passado para Bambadinca em Outubro/Novembro de 1968 e por lá ficou pelo menos até Agosto de 1969. Em Setembro foi transferido para o Saltinho.
(3) Vd post de Luís Graça, de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma (leia-se Udunduma)
"Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi (...).Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba"...
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