quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
A diferentes títulos, as notas de viagem de João Augusto Martins são incontornáveis. Não é novidade o que nos diz na sua descrição de Bissau nem de Bolama, salvo que aqui António da Silva Gouveia que viera anos antes como Guarda-Fiscal se tornara um potentado económico. Não conheço na literatura colonial nenhum outro deslumbramento pela mulher como o que ele aqui nos deixa, tocado por uma sensualidade pouco usual na época, mesmo se atendermos que ele era um cultor do naturalismo, todo este documento é prova desta corrente literária. E nas conclusões será implacável com a natureza das cedências que fizemos à França, correlacionando estas cedências com o quadro de decadência nacional.
Vale a pena ler este João Augusto Martins na íntegra, ele não era peco em denunciar a lástima a que chegáramos.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (1)

Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Feito o périplo pela Madeira e Cabo Verde, chega-se a Bissau e o autor dá-nos assim notícia da vila:  
“A cidadela a altos muros e a poilões gigantes, o último reduto da vitalidade da Província, hoje o mais importante centro comercial da Guiné. O cheiro nauseoso e acre das suas praias (lodaçal extenso que se evidencia na baixa-mar por dezenas de metros), vinha, arrastado pela aragem da tarde, envolver-nos numa atmosfera sulfídrica, enquanto bandas de pássaros de múltiplas espécies e variadas cores atravessavam marcialmente para os ilhéus, marcando no horizonte rubro da tarde as curvas ondulosas do seu voo, que as trevas da noite foram a pouco e pouco apagando, até deixar-nos sós, isolados e esquecidos, na contemplação estática de quem espera, divisando na sombra as cumeadas altivas dos baobás, escutando o carpir plangente das corujas e dos jagudis, e sentido aos nossos pés como um vagir de criança, o marulhar hipnótico das águas pantanosas do rio”.
Bem interessante o estilo, ultrapassado que estava o romantismo, a escrita assumia o naturalismo e já parecia acolher os assomos do impressionismo pictórico. Adiante.

Chegaram à capital, o autor vai dizer:  
“Em Bolama fomos acolhidos principescamente por Caetano Macedo, cujo nome se prende à história da Guiné por títulos de valiosos serviços reconhecidos. Aí visitámos tudo: os quartéis, as repartições públicas, o hospital, a igreja, a casa do governador e o mais sumptuoso edifício de Bolama, pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aí há nove anos como Guarda-Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho, da perseverança e da felicidade, esse orvalho abençoado, capaz de fazer robustecer a planta mais exótica… Na terra ainda mais ingrata”.

O nosso João Augusto Martins vai revelar-se um cultor da mulher, não sei se há retrato mais sensual e venerador da mulher guineense daquele que ele escreveu:
“Foi-nos dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo o que há de mais irresistível nas atrações do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes de África. Tinha apenas treze anos, e a adolescência irrompia das indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica das suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro-azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo, enfim…”.

Mas este esplêndido elogio da mulher Fula não fica por aqui, a exaltação ainda vai subir de tom, num intercalado lírico:
“A sua límpida fronte pendia para o solo, na atitude melancólica de um sonhar de virgem. As suas mãos pequenas uniam-se na postura de uma súplica infantil e a sua inocência evolava-se na expressão do seu olhar como a alma das flores se evola nos aromas que nos inebriam.
Que tons, que formas, que cores e que curvas!
Oh! Mulher casta, pecaminosa na tua nudez virginal, permite que te relembre emoldurada nessa paisagem fulgurante, permite que sonhe ainda, pensando em ti… Perdendo-me em conjecturas”.
Então, leitor, não temos aqui a expressão máxima de um amor cortês e de uma sensibilidade ao feitiço africano em desmesura?

Veremos que ainda há muitas mais anotações de viagens, delas aqui se fará menção.

João Augusto Martins dirá nas conclusões quem é e a importância que teve a sua passagem pela Guiné, ficam aqui uns tópicos:
“Regressados há muito da Guiné, onde estivemos conjuntamente com os comissários de França e Portugal, para a célebre delimitação convencionada em Paris em 1886, esperávamos ver por escrito a história deste acontecimento dolorosamente ridículo e improducente, para apreciarmos sobre bases oficiais este convénio de lesa-nação, esse golpe fatal com que a diplomacia nos deixava então esquartejar saudavelmente pelos franceses, na Senegâmbia, como o nosso histerismo e o nosso idealismo tradicional nos tem deixado torpe e irremediavelmente espoliar pelos ingleses na África Oriental. Esperávamos ver posto a limpo esse facto monstruoso, que não tem decerto uma alta significação económica, atento o desleixo da administração colonial, mas que representa mais uma das muitas extorsões feitas à sombra da nossa imprevidência e das nossas facilidades, dando lugar a que todo o coração português tivesse mais um motivo a confranger-se em África ante o desprestígio da dignidade nacional.
A delimitação da Guiné, traduzindo uma perda enorme de território, uma regulamentação absurda de fronteiras e um verdadeiro bloqueio à nossa administração e ao comércio português nestas regiões, exprime um ato de leviandade política que não pode deixar de fazer corar de pejo todos os filhos da nação desmembrada”.

Prepare-se o leitor, pois iremos retomar esta catilinária, João Augusto Martins participou na operação de delimitação e tem uma ideia muito própria de que esta oferta à França obedecia a um contorcionismo diplomático um tanto parecido com o Tratado de Lourenço Marques, era revelador de uma política de decadência. Estranhamente, vemos esta exortação à dignidade nacional praticamente esquecida.

(continua)



Imagens retiradas do livro "Madeira, Cabo-Verde e Guiné", de João Augusto Martins.

Baobá-africano
Imagem tirada da Wikipedia, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)

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