quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2017:

Queridos amigos

1946 foi um ano prolífico de eventos em torno das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Creio haver matéria de interesse nesta conferência do Major Dimas Lopes de Aguiar: o valor que atribui ao soldado guineense; a exaltação que faz das missões o Exército e da Marinha, sem estas instituições a Guiné portuguesa teria desaparecido do mapa; as suas opiniões sobre a economia e demografia merecem atenção, o conferencista não andava sozinho quando clamava por trazer mais cabo-verdianos e brancos metropolitanos, não esconde que era a desfavor da procriação de mulatos, havia que trazer para a Guiné um número equiparado de brancos e brancas...

Um abraço do
Mário



Guiné Portuguesa: Terra de Lenda, de martírio, de bravos feitos…

Beja Santos

Em 25 de Maio de 1946, na atmosfera das comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, o Major de Artilharia Dimas Lopes de Aguiar, professor da Escola do Exército, profere nesta instituição uma conferência intitulada “Terra de lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro”.

Enceta a comunicação com um punhado de dados históricos, referências ao clima e ao mosaico étnico. É claro nas suas apreciações: 

“Inicialmente, não nos interessámos pelo desenvolvimento económico do território que hoje é nosso e foi considerado apenas como útil centro de recrutamento de escravos para o povoamento de desenvolvimento de Cabo Verde”

Ao referir-se genericamente aos atributos das diferentes etnias, elogiou o militar guineense: 

“Militarmente falando, têm excepcionais qualidades para serem aproveitadas como valentes e bravos soldados, por neles predominar espírito belicoso, tem grande resistência física, conveniente formação moral sem lhes faltar bravura e elevado sentido da verdadeira camaradagem no combate, os Fulas, os Mandingas, os Papéis e os Balantas. Os Bijagós são óptimos marinheiros. É preciso, porém, para com eles se fazer a guerra enquadrá-los com oficiais e alguns sargentos europeus, uns e outros convenientemente instruídos na política indígena e em hábitos de higiene tropical… os indivíduos portugueses-guineenses têm especial vocação para a nobre profissão das armas, pois gostam de uniforme, adoram os distintivos garridos, são sóbrios, resistentes, bons observadores e exímios exploradores”.

É um orador que não teme o tratamento de questões sensíveis e aborda com liminar clareza as especificidades do esforço da ocupação: 

“Cabe exclusivamente ao Exército e à Marinha a grande honra de terem salvo a Guiné das cobiças estranhas que rondavam os nossos domínios. Na verdade, como nos meados do século XIX faltavam na Guiné as grandes instituições morais da civilização ocidental, como não existiam os elevados interesses económicos, como era fraca a assimilação rácica e quase nula a cultural, se a reduzida força armada de que dispúnhamos tivesse falhado na sua missão de soberania, não flutuaria hoje ali a bandeira das quinas”.

Detém-se o conferencista na hábil política de Honório Pereira Barreto, e atira uma outra verdade: 

“Como não teve continuadores, como falhámos a seguir na política indígena, perdemos algumas posições preponderantes a favor da França”.

É uma época de abatimento, de completa deriva:

“A despeito da resolução da questão de Bolama, o nosso prestígio estava muito abalado e logo em Janeiro de 1871 houve a revolta dos grumetes da velha praça de Cacheu, massacrando o Governador, Capitão Mário Teles Caldeira. A partir de 1895, aproveitando-se um período de paz relativa, esboçou-se a plano para pacificar a Guiné com a colaboração dos régulos nossos amigos. Foi sol de pouca dura. Em 1897, o Governador Pedro Inácio de Gouveia assume o comando das forças que partem de Bissau para Caió, a fim de castigar os Manjacos sublevados. Cumprida a missão, pensa em pacificar o Oio, leva consigo os chefes Lamine Indjai e Quecuta Mané que morre em combate”.

Fará referências às operações dos governadores Júdice Biker e Oliveira Muzanty, bem como a sublevação do Oio que se reacendeu em 1910, seguem-se as campanhas de Teixeira Pinto e mais à frente tece um comentário a Abdul Indjai: 

“A sua desgraça veio da situação de preponderância que criou na Guiné, do seu espírito irrequieto, da fraqueza de algumas autoridades, da duvidosa actuação de outras e da sua inadaptação a uma política fraternal para com os pacificados seus irmãos de sangue. Deve-se, sobretudo, ao facto de não ter sido nomeado governador da colónia após a ocupação efectiva o seu ídolo: João Teixeira Pinto”

Importa referir que está presente na sala o filho, também militar, do herói João Teixeira Pinto. Em jeito de apreciação final ao controverso Abdul Indjai e ao seu banimento, comenta: 

“Diremos que o triste fim do herói teve origem na sua índole irrequieta, na inveja provocada pela situação de preponderância que tinha criado, na falta de prestígio das autoridades administrativas, na duvidosa actuação do comandante militar de Bissorã e Farim e na falsa compreensão do que é deve ser uma boa política indígena”.

Começara, então, uma nova era, após a pacificação e refere a rede de estradas, as 43 empresas de transporte fluvial e o peso económico que a colónia pode vir a ter no futuro, enuncia as produções e exportações de amendoim, coconote, couros, cera, borracha, óleo de palma, arroz e madeiras. 

Não ilude, dentro da problemática religiosa, a insignificância do catolicismo dizendo que existem seis missões católicas com quatro filiais, oito missionários e doze auxiliares. A referência aos efetivos militares esconde veladamente uma crítica, pois em 31 de Dezembro de 1944, o Exército tem 10 oficiais e 59 praças, englobando sargentos, cabos e soldados; a Marinha está reduzida a 1 oficial e 4 praças e a polícia tem o magro efetivo de 2 oficiais, 6 chefes e subchefes e 30 guardas.

O Major Dimas Aguiar mostra-se muito preocupado com a pouca população, sugere uma operação para atrair os descendentes dos indígenas que fugiram durante as campanhas de ocupação, era importante trazer as famintas populações cabo-verdianas e mais brancos metropolitanos. Era uma situação demográfica que precisava de terapêutica urgente, não podia haver tão poucos brancos. Pelo censo de 1940, existiam na colónia 1419 indivíduos brancos, sendo 899 do sexo masculino e somente 520 do sexo feminino. E sentenciou: 

“Não se pode concluir que estejamos no caminho de evitar a condenável e aviltante procriação de mulatos, que já então se contavam por 2200 almas”.

Atendamos ao nível das mensagens, aos juízos expendidos, aos alertas demográficos, ao cuidado posto na atuação do Capitão Teixeira Pinto e ao seu valoroso colaborador Abdul Indjai, sobre o qual o orador é indulgente, como se fosse possível que o principal ajudante do herói das campanhas de ocupação não se pudesse ter transformado num homem da guerra, vaidoso e tirânico. Para que conste, e fique na análise das mentalidades há 7 décadas atrás.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21268: Historiografia da presença portuguesa em África (227): Aleixo Justiniano Sócrates da Costa - Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (2) (Mário Beja Santos

6 comentários:

António J. P. Costa disse...

Bom dia Camaradas

Esta recensão e o livro do major Dimas fica à consideração dos saudosistas empedernidos sempre a tentar justificar o injustificável.
Relembro que, naquele tempo, havia censura, bem dura e, por ventura, mais acerada no meio militar. Pelo menos a "vigilância" era maior e mais atenta...
Ao que se vê, o texto veio a público numa conferência - não sabemos perante quem - destinada a celebrar os "centenários", um ataque de patriotismo à medida da ideologia do tempo.
Trata-se, por consequência, de um texto totalmente fiável, quando diz o que queremos (ou não) ouvir. Atenção à "chancela" que me parece ser militar.
Fica à consideração dos estudiosos. Façam bom uso dele e não se percam em distorções e análises enviesadas, que só valem como exercício mental.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Isto de ser contra a procriação de mulatos, penso que nem Norton de Matos ou outros africanistas tiveram tal pretensão.

Sempre andamos a copiar os outros , mas neste caso nunca seguimos os nossos vizinhos colonialistas.

É que ficava muito caro levar mulheres para acompanhar militares, funcionários, agricultores, mineiros, e comerciantes, etc.

Aprendi (ao vivo) que os belgas que fossem para o ex-Congo Belga, caso fossem casados e tivessem crianças para criar, e para evitarem de levar a família, o Governo proporcionava, caso pretendessem, o direito a uma "empregada doméstica" branca, (não li a norma, foi de ouvido).

Ou seja, tinham direito a "lavadeira branca", nos nossas "normas" coloniais desde Bartolomeu Dias.

Como comprovei isso? quando foi da independência do Congo Belga (junho de 1960), os belgas fugiram porque começou uma guerra imediatamente que durou mais anos que a de Angola, e fizeram de Luanda um ponto de refúgio, enquanto não veio a ponte aérea.

Foram mobilizados hoteis, pensões, espaços escolares, e estranhou-se tantos casais sem filhos, e tantas mulheres dadas à paródia, e veio a explicação.

Ou seja, havia um certo apartheid natural no Congo Belga, mas aquilo já tinha uma exploração mineira que dava para ter "lavadeira importada"

Hoje, e já naquele tempo, os africanos não achavam muito mal, como se possa pensar, que os africanos estranhassem o apartheid.

Ao fim e ao cabo era a vivência natural mais semelhante à vida tribal.

Com os belgas "retornados" não vinham nem crianças nem adultos mulatos.

Será que este major estava certo?





António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Esta situação que o Rosinha descreve, se calhar, era um sinal premonitório do que se iria seguir. Era um alerta para os residentes em Angola e para os governantes portugueses. Uns não viram, outros não quiseram ver. Ambos assobiaram para o lado.
As coisas estavam a correr mal com a Bélgica sem condições para evitar que o rei perdesse uma propriedade privada. Era o sinal de que as colónias iam separa-se das "metrópoles", a bem, se tal fosse aceite por ambas as partes, ou a mal, em caso contrário.
A questão das "lavadeiras" é mais uma curiosidade da vida nas colónias daquele tempo. Não creio que, cá em Portugal, pudesse esta situação ser aceite sem levantar questões de ordem "moral", agora nas colónias... era diferente: ninguém via e um problema resolvias-se.
Naquele tempo ékéra!

Um Ab.
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

Pereira da Costa
'..cá em Portugal,....ser aceite...levantar questões de ordem 'moral',...'
Ora essa, consta que o Padre Costa de Trancoso teve 299 filhos de 53 mulheres, incluindo a própria mãe e três irmãs, dizia que era para o povoamento da região.
Isto passou-se no séc. XV, mas continuou por séculos com as criadas dos padres e doutros muito católicos senhores, sem ser por se sentirem sozinhos.
Não deu mulatos mas deu muitas caras parecidas com "a cara chapada do padre" ou "tem mesmo a cara do patrão".

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Ok Camarada

Mas tu sabes como eram as coisas.
A moral acima de tudo...
Éramos um país de elevados padrões morais.
E ainda hoje somos. Olha-me só aquela manifestação de fé em Fátima!
E o noço sinhor kudiga!

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O major de artilharia Dimas Lopes de Aguiar, professor da Escola do Exército, não era um simples soldado de Portugal... Fez parte da direção da Censura à Imprensa ni Estado Novo, justamennte no período de 1945 e 1946.

Leia-se o artigo:

http://livrarialumiere.blogspot.com/2014/01/aguiar-dimas-lopes-de-portugal-imperio.html

Aliás, parece ser um homem da inteira confiança política do Estado Novo. Já era censor em 1935, ainda com o posto de capitão:

http://malomil.blogspot.com/2012/03/este-postal-ilustrado-de-1935_23.html


Encontrei mais referênias ao seu nome... Por exemplo:

Aguiar, Dimas Lopes de – Portugal, Império Ultramarino é Obra de Soldados – Lisboa, 1951. In-8.º; de 77-III págs. Ilustrado a p. b. Br. € 20,00


Separata da «Revista de Infantaria».

Conferência proferida no dia 11 de Maio de 1951 na Escola do Exército, durante a sessão solene integrada nas comemorações da «Semana do Ultramar».


http://livrarialumiere.blogspot.com/2014/01/aguiar-dimas-lopes-de-portugal-imperio.html