quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21268: Historiografia da presença portuguesa em África (227): Aleixo Justiniano Sócrates da Costa - Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
É um dos documentos mais esclarecedores do olhar colonial prevalecente sobre o sistema de alianças que se iria impor no final do século XIX entre a potência colonial e os Fulas. Não faltam os preconceitos de que o negro era calaceiro e selvagem, ignaro e insubmisso aos valores da civilização europeia. Exaltam-se os valores dos Balantas mas a questão da época era o peso militar dos Futa-Fulas, impunha-se a negociação, o aliciamento, daí a proposta de grandes alianças com eles, era o Rio Grande que mais importava, daí a ênfase posta na prosperidade agrícola e nas experiências de novas culturas que competia ao governo introduzir.
Sócrates da Costa abominava Bolama e procederam a um trabalho exaustivo sobre as condições higiénicas e de saúde de Bissau, que ele considera deploráveis e cuja erradicação era tida por muito dispendiosa, daí ele propor o Ilhéu do Rei como a melhor solução para a capital da colónia.
Impossível estudar este período ainda de ténue ocupação sem atender a este precioso e incontornável documento que o médico produziu para a Sociedade de Geografia de Lisboa e onde não se ilude que ele tem pretensões políticas na região.

Um abraço do
Mário


Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (2)

Beja Santos

O seu nome é Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, era médico militar goês, prestou serviço em Cabo Verde e na Guiné, sócio ordinário da Sociedade de Geografia de Lisboa e nos boletins da instituição, 4.ª série, n.ºs 2, 3 e 4, de 1885, lançou-se ao trabalho para descrever aos seus confrades da Sociedade de Geografia, o que era a Guiné. O facultativo esmera-se por repertoriar todas as questões consideradas essenciais para uma boa política ultramarina, como vimos anteriormente, nada lhe escapa, desde a religião, passando pelos elementos etnográficos e etnológicos, até ao tema que mais o preocupa que é a saúde e a higiene. Mas que estudar a agricultura e as atividades comerciais é patente do seu escrito, é um homem com preconceitos e não destoa da mentalidade colonial da época, como se pode ler:
“Procurar agricultura em Guiné, na terra clássica dos negros, isto é, da raça conhecida em todo o mundo pela sua invencível tendência à ociosidade e vagabundagem, é quase o mesmo que buscar agulha em palheiro. Agita-se actualmente, em todos os pontos da monarquia, na imprensa e no parlamento, e com vivíssimo interesse, a gravíssima questão do trabalho rural africano, de que dependem a sorte no futuro das nossas vastas possessões.
É coisa assente que a primeira e capital dificuldade, e dificuldade que se antolha invencível e faz desesperar os mais filantrópicos amigos dessa degenerada praça e quase que descoroçoa os mais ardentes propugnadores da sua emancipação e liberdade: esta dificuldade está em sujeitar o negro ao trabalho.
Essencialmente selvático, de uma preguiça abjecta, vegetando em crassa ignorância, e bebendo com o primeiro leite as tradições do mais estúpido e feroz gentilismo, o negro é apenas um cancro hediondo no corpo social: nutre-se da corrupção, e tudo corrompe, destrói tudo!
Pretender sujeitá-lo ao trabalho, é para ele o mais revoltante dos despotismos, uma aberração sem nome, um enorme atentado, um mal pior do que a morte. Procurai trazê-lo à civilização, e ele fugirá para o mato, porque lá tem tudo quanto deseja, e que a natureza, tão fecunda e tão pródiga até para com os mais ínfimos dos seus filhos, lhe fornece em larga cópia sem trabalho nem sujeição alguma. Todavia, há excepções.

Vemos os republicanos Balantas, a mais laboriosa tribo da Guiné, cultivando em larga escala o arroz e fornecendo deste precioso género, não só todos os distritos daquela vasta região mas ainda muitos outros mercados da África e Europa. O Balanta, porém, apesar do seu carácter laborioso, ama tanto a terra que o viu nascer, que não larga as margens do opulento Geba, e, se por ele desce em suas canoas, não passa além de Bissau.
Nos últimos anos, uma revolução feliz, sob o ponto de vista do desenvolvimento da agricultura em Guiné se operou no Rio Grande. Dominava naquela região, uma das mais férteis da Senegâmbia, a tribo Beafada, modelo do negro indolente e vicioso. Esta tribo avassalava, de há longo tempo, a dos Fulas, que viviam em perfeita condição de escravos, cultivando o solo em proveito dos seus dominadores, e sendo oprimidos por eles com as mais cruentes exações. Ultimamente, em 1873, a política sagaz, embora bárbara, do chefe de uma poderosa tribo do interior, a dos Futa-Fulas, procurando sujeitar os Beafadas nos últimos territórios ocupados por estes, compeliu e auxiliou os Fulas a uma revolta, com que de escravos se tornaram senhores, dominando hoje em quase toda a região até então ocupada pelos Beafadas. Ora, a tribo dos Fulas, ou por condição natural, ou por hábito adquirido na servidão, é quase tão laboriosa, senão tanto como a dos Balantas: de sorte que, sob o ponto de vista agrícola e comercial, se pode prever grandes vantagens para aquela importante zona do Rio Grande, talvez a mais fecunda da Guiné, ocupada como está por um povo agricultor.


Sem aconselhar propriamente a intervenção armada entendo que se deve, primeiro do que tudo, tratar com os novos senhores do terreno, e especialmente com os seus aliados e protectores, os Futa-Fulas. E não vai nisto desdouro algum, mormente quando se considere que a Inglaterra paga ao chefe dos Futa-Fulas um estipêndio anual de três mil pesos para que favoreça o comércio inglês, ou, por outra, o deixe livre e sossegado; e o mesmo procedimento segue o governo francês.

Haveria manifesta desvantagem em ceder ao orgulho e empregar a força, porque não se tratava já de punir insultos como na Abissínia, Argélia, etc., mas sim de impedir perturbações comerciais e atalhar os efeitos de ardilezas que estão muito na índole de todos os gentios da Guiné. Os Futa-Fulas são hoje talvez a nação mais poderosa daquela região. Mantendo em permanente pé de guerra dez mil homens de cavalaria, aguerridos e exercitados, dirigidos por um general tão hábil como político e sagaz, são eles o terror de todos os gentios da Senegâmbia. Pretender dominá-los, seria improfícuo e estéril; porque, além da impossibilidade manifesta de o conseguir com as poucas forças de que poderíamos dispor permanentemente na Guiné, o comércio ali obedece a convenções excepcionais, que não são as do orgulho e pundonor ou das leis do direito internacional. Boa política é ter por aliados os mais poderosos, os verdadeiros senhores da terra.
Conseguido este principal resultado, estabelecidas boas e vantajosas relações com os actuais dominadores do Rio Grande, os agricultores fulas, e firmado entre eles o nosso predomínio moral, restar-nos-ia, pelo mesmo método pacífico, mantê-los e dirigi-los nas suas boas tendências naturais, que se encaminham ao máximo desenvolvimento da agricultura naquela feracíssima região, em que já temos não poucas feitorias”.

E discreteia sobre a mancarra, o café, o algodão e o cacau, a purgueira, sugere que o governo distribua sementes, havia que ensaiar todas estas culturas em grande escala, ensaiar a cana-sacarina, o algodão, o tabaco e o cacau, eram culturas preferíveis à da mancarra.

No final do seu extenso trabalho, o não comedido médico, em que momentos há que nos parece um forte candidato a governador, dá sugestões muito precisas para o futuro da governação, e atira-se aos maiores excessos, como se pode ler:
“A Guiné Portuguesa é a chave d’oiro que nos abre as portas do continente africano. Bem aproveitada, aquela possessão pode tornar-se para nós um segundo Brasil: porque em nenhuma parte temos tanta facilidade de nos estendermos em território e domínio como ali. Constituí a Senegâmbia Portuguesa um vastíssimo território muito importante, mas completamente inexplorado. A Guiné precisa de uma administração inteligente e de um braço robusto que possam erguê-la da prostração em que jaz. Conviria transferir a sede do governo para qualquer outro ponto mais conveniente. Sem bons empregados não há administração, não há prosperidade possível. Mas como havê-los, onde não existem os cómodos indispensáveis à vida, onde não há saúde, onde tudo enlanguece e morre? Ora, Bissau, sobre este ponto de vista, é o ponto mais impróprio que se poderia escolher para capital do distrito. O seu saneamento não é de todo impossível, contudo importaria em um grande consumo de tempo, de dinheiro e, o que é pior, de vida. Se na escolha do lugar para a nova sede do governo, houvermos de atender àquele que oferece melhores condições, eu escolheria o Ilhéu do Rei. Situado no ponto mais central do distrito, este ilhéu está quase a meio do curso do rio Geba. A constituição do seu solo e a sua situação e salubridade dão-lhe imensa vantagem sobre Bissau”.
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Nota do editor

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