sábado, 22 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21281: Os nossos seres, saberes e lazeres (407): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Hoje é dia da primeira saída de Ponte de Lima. É uma estranha sensação ter andado catorze anos a ler periodicamente os jornais de Viana, Ponte da Barca ou de Arcos de Valdevez, entre outros, tudo esmiuçado, até a necrologia, sempre que se falava numa publicação, havia que fazer um telefonema para encomendar a obra, o primo em Viana do Carlos Miguel ficava responsável pelo caudal das compras, casos havia em que eu telefonava para bibliotecas e arquivos, começava um tempo de impaciência até chegarem as obras, tudo quanto se publicava sobre o Alto Minho tinha prioridade.
O Carlos Miguel tinha os seus ciclos nostálgicos, umas vezes dizia-me que não queria morrer sem que lêssemos certas obras, a tudo eu dizia que sim, e lembro-me perfeitamente de um dia ele me ter dito que já não sabia onde tinha posto a Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro, perguntei-lhe se achava bem a minha edição com ilustrações de João Abel Manta, estou ainda a vê-lo com uma pose quase religiosa quando comecei: "Quando se procedeu ao restauro da casa grande, que foi solar dos Meneses e Montenegros, houve que demolir paredes de côvado e meio de bitola em que há um século lavrava a ruína, ocasionando-lhes fendas por onde entravam os andorinhões de asas abertas e desníveis com tal bojo que a derrocada parecia por horas. Num armário, não maior que o nicho de um santo, embutido na ombreira da janela, que a portada, em geral aberta, dissimulava atrás de si, encontrou-se uma volumosa rima de papéis velhos".
E começou uma nova saga de leitura, peripécia vivida ali para os lados de Paredes de Coura.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (3)

Mário Beja Santos

Hoje é dia de Ponta da Barca, mas sem ir ao Lindoso. Dentre as assinaturas que o meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo fazia de jornais de imprensa regional constava o Notícias da Barca, que lhe lia religiosamente quando chegava. Não é a primeira vez que venho à região, em férias no Gerês era inevitável passar pelo Soajo e, sempre que possível, parar aqui para admirar a ponte e o casco histórico em Alto Minho, Carlos Ferreira de Almeida refere: “Rústico, montanhês, mas também fidalgo, o concelho de Ponte da Barca tem uma curiosa evolução. Na Idade Média, quando o transporte fluvial no Lima era relativamente intenso, Barca era, a jusante, o último embarcadouro possível. Desde a foz até aqui, o rio desliza, brando, serpenteando entre margens de salgueiros e bancos de areia. Daqui para montante, o Lima corre em leito geralmente baixo, com bastantes pedras e saltando de degrau em degrau”. Agora percebe-se como é itinerário apetecível para a lampreia. Tudo foi feito para aqui amesendar, o dia está relativamente acinzentado, para fazer horas para o almoço e despertar o apetite nada melhor que subir a ladeira e descer até ao rio. Se é verdade que o lugar relevante do seu património vai para a ponte, há muito a ganhar em visitar a Matriz, deve o seu risco ao engenheiro vianês Manuel Pinto de Vilalobos, harmoniosamente posicionada, com escadaria monumental, capelas laterais, valioso recheio, altar-mor rococó e cá fora brasão. Antes de lá chegar deu-se com quinta fidalga, coisa que não é nada incomum por estas bandas.






Ferreira de Almeida, muito curiosamente, entronca a vida rural circunvizinha a este casco histórico, os Paços do Concelho, dos meados do século XVIII, a Casa dos Farias, com muro fronteiro, ameado e brasonado, e a Casa de Santo António, edifício da segunda metade de 700, dotado de uma bela fachada e capela lateral com retábulo da época. É sabido que há farta discussão sobre a terra-berço de Diogo Bernardes, há a crença de que o bardo, figura-suprema do bucolismo, nasceu na margem direita do Lima, numa casa pertencente à família dos Pimentas, a Casa da Prova de Baixo e a da Prova de Cima, à cautela, e por pura ignorância na matéria, abstenho-me de comentários, seja o que Deus quiser. Segue o passeio e encontram-se belos azulejos a decorar o portão de casa da vila, irresistível não captar a imagem pela elegância dos desenhos e cores. E fica-se especado a contemplar a Capela de Nossa Senhora da Lapa, lá está bem à vista o brasão de armas dos Magalhães, confrange o mau estado relativo deste templo que transita do maneirismo para o barroco, paciência, é elegante e um dia terá obras.



Desce-se até à ponte, e dá-se a palavra ao que escreve Carlos Ferreira de Almeida: “A ponte tem um lugar relevante por ser, no género, uma das mais notáveis obras construídas no Portugal medieval. Ela é um singularíssimo exemplo de quanto uma arquitetura modifica uma paisagem que lhe cria novos volumes e outros pontos referenciais. Aí, nada ficou igual depois da sua construção. Com perto de duzentos metros de comprido de dez amplos arcos, apoiados em fortes pilares com talha-mares, conservando a altura dos primeiros templos, esta obra teve duas grandes reformas, uma nos fins do século XIX que visou o alargamento do seu piso e outra, em 1761, reconstruiu e modificou os dois arcos centrais. Da construção medieval conservam-se oito arcadas, ligeiramente quebradas. São as que se apoiam nos pilares que apresentam olhais. Foi, sem dúvida, uma obra inspirada no prestigiado modelo da de Ponte de Lima”.




Ponte da Barca tem, desde o século XVIII, feira quinzenal, que alterna com a dos Arcos de Valdevez. Junto da ponte há um edifício icónico que alguém da terra disse ser conhecido pelo velho mercado. O que importa é que está muito bem requalificado, e ali bem perto desponta, bem garboso, o pelourinho. Não deixa de ser curioso quando andei a arrecadar literatura avulsa sobre o verdejante Alto Minho encontrei uma brochura alusiva em que era o castelo de Lindoso a proposta mais apetecível para fazer turismo. Será, a visita fica para a próxima, o próximo agora é ir para a mesa e saborear rojões, à tarde quero passar por Bravães e mais alguma coisa, o meu saudoso amigo disse-me um dia que é preciso olhar para Bravães para perceber o sentimento português. Assim seja.


Imagine o leitor, e tome isto como ciência certa, que após o obrigatório caldo verde e a pratada de rojões e um café abagaçado para esmoer as banhas da fritura, se veio para a rua para passeio pedestre à beira Lima e seguir para outras paragens. A roda do destino trocou as voltas, andava-se por ali naquela amenidade a ouvir as águas revoltas do Lima quando se começaram a soltar as notas das concertinas, era festa rija com certeza, talvez romaria ou filarmónica a desfilar. Fui ver, e dali não saí e uma hora passou veloz. Não se percebe o minhoto sem a música e o baile. No interior da farta tenda concentrava-se no centro, em círculo, os mestres da concertina, jovens e adultos de diferentes idades, viola e creio que um reco-reco. A alegria dos bailantes era esfusiante. Como quem não sabe é como quem não vê, cheguei-me a alguém que era nitidamente da terra e que cumprimentava, prazenteiro, quem chegava e quem partia. Que festa era aquela, seria o orago da terra, quando se realizavam os bailes e outras perguntas adjuvantes. O dito senhor mirou o forasteiro e deu-lhe as seguintes explicações ou coisa parecida: “Meu caro senhor, o minhoto sem bailarico não pode andar alegre. O que aqui vê acontece todos os domingos, começa por esta hora e vai até os músicos e os bailantes se cansarem. Está-nos na alma este ritmo, este modo de dar ao corpo, temos diferentes modalidades de música folclórica, dança-se aos pares, as concertinas aceleram e anda tudo num rodopio. Onde há minhoto há concertina, temos ranchos folclóricos em todas as povoações, a música está-nos no sangue”. E ali estive, compartilhando à distância o que de vibrante há nos sentimentos lúdicos minhotos. E agora, não sem algum pesar, deixa-se esta festa para ir até Bravães, convém não esquecer que esta rota de saudade tem por mercê um limiano, um tanto vianês, que amou o seu terrunho até ao último dia da sua vida, e de quem fui cúmplice catorze anos a fio, lendo-lhe os jornais, os livros, as revistas, e ele escutava, fazia comentários, regressava até à Casa da Feitosa, guardava infinitas saudades, as tias, os primos, a consoada. E a viagem prossegue.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21256: Os nossos seres, saberes e lazeres (406): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (2) (Mário Beja Santos)

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