segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
O assunto dos Capitães do Fim não é propriamente uma novidade para ninguém, quem combateu a partir de 1970 sabe perfeitamente que em Mafra se fizeram fornadas de oficiais milicianos, fazia a recruta e a especialidade, eram promovidos alferes, lançados num teatro de guerra durante quatro meses, regressavam como tenentes e iam formar companhia.
A radiografia estatística que António Nogueira publica traz uma maior claridade sobre as origens, a escolaridade, a idade, o agregado familiar e eventuais profissões desenvolvidas, à data da incorporação. Ficamos igualmente com a informação se desenvolveram, ou não, contestação à guerra do Ultramar, o que pensam da instrução e dos instrutores que tiveram em Mafra, os critérios que foram utilizados para a sua seleção, como atuaram num teatro de guerra, quais as formas de protagonismo, como foram, na hierarquia militar, reconhecidos o seu trabalho.

E ficamos a saber um pouco mais das consequências da guerra para os capitães do fim, o que deles pensam os seus subordinados.

É uma radiografia que não deixa indiferentes. O que a Academia Militar não fornecia foi colmatado por eles. Centenas de mancebos têm toda a legitimidade em clamar, com orgulho, que não faltaram ao dever.

Um abraço do
Mário


Uma radiografia dos capitães do fim

Beja Santos

António Inácio
Correia Nogueira
“Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira, Chiador Editora, 2017, apresenta-se como uma obra complementar a que o autor dera à estampa no ano anterior sobre a história de capitães milicianos submetidos a uma formação acelerada. 

Como observa o autor, nos anos terminais da guerra colonial, a Academia Militar deixara de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Como a política do Estado Novo era intransigente na defesa do Império, custasse o que custasse, um dos expedientes encontrados foi a dos capitães do fim: em cerca de 14 meses fazia-se de um mancebo, muitas vezes em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um capitão combatente para atuar num dos três teatros de guerra. 

Com ironia cáustica, alguns apelidavam estas novas elites 
de “capitães de proveta” ou de “aviário”. Reconheça-se que António Nogueira é mais justo ao recorrer à expressão “capitães do fim”.

De um modo geral, esta geração respirou outros ares bem diferentes dos oficiais milicianos que combateram ao longo da década de 1960. Vêm mais experimentados pelas lutas estudantis, coabitam, com maior ou menor intensidade, com agentes contestatários à guerra, da esquerda à extrema-esquerda. Enquanto uns desdenhavam a formação destes jovens capitães, a instituição militar apostava seriamente neles: o comandante de companhia tinha um papel fulcral na guerra, a guerrilha mostrava-se cada vez melhor apetrechada e com material de combate mais evoluído, enquanto as forças armadas permaneciam mal equipadas e pouco adaptadas ao crescimento da nova realidade miliciana. O autor preambula com eixos teóricos da guerra, mostra os períodos e fases do fenómeno subversivo, tal como eles eram apresentados aos cadetes em Mafra.

A base da obra de António Nogueira tem a ver com a construção de questionários, inquéritos que foram enviados e que obtiveram um considerável acolhimento, permitindo uma base aceitável de trabalho para a obtenção de uma radiografia de quem eram e em que se transformaram estes capitães do fim.

Vieram de todo o país, com preponderância para Coimbra, Lisboa, Porto e concelhos limítrofes, eram jovens com origens sociais, culturais e económicas muito diversas, jovens predominantemente nas idades entre 24 e 27 anos, nada de anómalo, os oficiais oriundos da Academia Militar eram promovidos a capitães com idades próximas. 

As habilitações académicas destes capitães eram díspares, essencialmente todos com frequência de cursos universitários, mais de 50% estavam entre o terceiro e o último ano de um curso superior. 70% eram solteiros e 30% casados. Exerciam a profissão de engenharia 13% dos incorporados, profissão prestigiada devido à industrialização iniciada na década anterior.

Fala-se detalhadamente da incorporação na EPI – Escola Prática de Infantaria (instrução, instrutores, ambiente, contestação à guerra). Não deixa de ser uma curiosidade o que se fica a saber sobre a seleção e formação de capitão: 

(i)  44,3% respondem desconhecer o motivo por que foram selecionados;

(ii) 18,3% declaram ter sido por já possuírem uma licenciatura;

(iii)  14,8% indicam ter sido escolha do instrutor;

(iv) 11% estão convictos de que foi por ocuparem os primeiros lugares da seriação psicotécnica;

(v) 5,2% por terem mais idade;

(vi) 4% pelas competências já adquiridas na vida civil. 

O autor comenta: 

“É estranho este conhecimento fracionado e superficial dos modos de seleção. É lacuna grave a forma como se comunicava na instituição militar. Mas surpreendente é a indiferença com que os questionados permaneciam desinformados sobre factos que condicionariam a sua vida militar futura”.

Após o círculo formativo de seis meses na EPI, a continuidade do processo era um estágio num dos teatros de guerra, com a duração de quatro meses, com o posto de alferes, e na qualidade de adjuntos dos comandantes de companhia do local onde eram colocados: 66% estagiaram em Angola, 28% na Guiné e 6% em Moçambique. 

De acordo com o inquérito, cerca de um quarto dos estagiários enfrentaram situações de guerra muito difíceis. Depois de regressarem do estágio, os futuros capitães do fim, agora promovidos a tenentes, frequentavam um curso de comandantes de companhia, também na EPI.

A radiografia estatística incide também sobre a formação e instrução da companhia, como decorreu esse comando em teatro de guerra, se houve protagonismos na guerra, se os capitães de algum modo participaram na conquista da democracia ou nos atos finais da descolonização. Um número elevadíssimo de capitães (mais de 90% foram louvados, cerca de 9% tiveram a atribuição de uma medalha ou de uma condecoração).

E temos agora as consequências da guerra para os capitães do fim: 

(i) 65% considera ter sido a participação na guerra gravosa para a continuidade dos seus estudos;

(ii)  para cerca de 13% o reatamento foi impossível;

(iii)  36% consideram que a guerra lhes acarretou problemas de saúde e instabilidade emocional que prejudicaram os seus relacionamentos familiares, na profissão e com os amigos. 

Mas há respostas afirmativas, quanto ao enriquecimento humano e profissional, reconhece-se valor à experiência das relações humanas, enriqueceu-se com a chefia de homens em situações adversas, houve enriquecimento cultural e sociológico. Quanto à passagem à disponibilidade, o grosso das respostas é eloquente: “Um imenso alívio”.

Nesta radiografia estatística também se procurou obter o contraditório dos comandados. 83% manifestam-se agradados com os desempenhos do seu capitão do fim.

Ao findar, o autor dá como comprovado que os capitães do fim tiveram desempenhos e protagonismos meritórios na guerra, na obtenção da paz e da democracia, e conclui com uma parte do poema de Ary dos Santos intitulado Retrato do Herói: Homem é quem tombando apavorado / dá o sangue ao futuro e fica ileso / pois lutando apagado morre aceso.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21262: Notas de leitura (1298): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

É um tema curioso e importante.
O fenómeno que deveria ter sido entendido por quem mandava como um indício técnico de que a guerra estava a atingir uma situação de ruptura.
O método utilizado par "produzir" comandantes de companhia é tapar o Sol com a peneira.
Podemos perguntar o que faltaria aos decisores do tempo para verem que a solução não estava à vista e ia cada vez ficando pior e sem solução...
Se a AM não fornecia os capitães necessários para alimentar a guerra e era necessário optar por uma solução deste tipo, algo de impossível estava para vir.
A partir desse momento o número de profissionais em cada companhia reduzia-se a dois sargentos: um, o que respondia e o outro, "carregado" num Gr. Comb. pela idade acabava em funções administrativas.
Claro qu há so que dizem que "'tava na maula", "'tava tudo combinado", decorriam "conversações", a guerra estava mais ou menos "controlada" e outras aleivosias de última hora que por aí circulam, mas esta prova é irrefutável.

Um Ab
António J. P. Costa

Fernando Ribeiro disse...

O camarada Beja Santos afirma que o livro "Capitães do Fim… Uma Radiografia Estatística" veio complementar o «que o autor dera à estampa no ano anterior (...)», mas não identifica este outro livro do ano anterior. Pois foi um livro chamado "Capitães do Fim... Do Quarto Império", publicado pela Âncora Editora, Lisboa, 2016. Um e outro livro resultam de uma tese de doutoramento em Sociologia elaborada pelo antigo capitão miliciano António Inácio Correia Nogueira.

Ler o livro "Capitães do Fim… Uma Radiografia Estatística", assim a seco, com tabelas e dados estatísticos atrás uns dos outros, poderá ter muito interesse científico e académico, mas pouco ou nada diz ao leitor que estiver, sobretudo, interessado em tentar entender o como e o porquê da existência, em tão grande quantidade, de capitães saídos do Curso de Oficiais Milicianos nos anos finais da guerra dita do Ultramar. Para se conseguir ter esse entendimento, leia-se primeiro o livro "Capitães do Fim... Do Quarto Império" e depois, então, se poderá ler este que aqui é referenciado e comentado pelo Beja Santos. Nunca o contrário.

Eu não fui capitão, mas sim alferes miliciano, porque ainda não tinha idade suficiente para frequentar o Curso de Comandantes de Companhia (CCC), a qual era de 24 anos em 1972. Mas estou em condições de informar que, durante o segundo ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, a intrução ministrada aos soldados-cadetes destinados a serem capitães era em tudo idêntica à que era ministrada aos soldados-cadetes que viriam a ser alferes, como eu. Era uma instrução alegadamente apropriada para um futuro oficial miliciano atirador de Infantaria e mais nada.

Quando o segundo ciclo do COM terminava, os destinos de uns e de outros divergiam. Enquanto os futuros alferes milicianos eram encaminhados para as suas novas unidades como aspirantes (no meu caso, o RI 16, em Évora), os futuros capitães milicianos eram encaminhados para um estágio de quatro meses junto do comandante de uma companhia operacional num dos teatros de guerra, Angola, Moçambique ou Guiné.

O que se passava durante este estágio é magnificamente exemplificado no livro (esgotado) "Capitães do Vento", pelo seu autor, o ex-capitão miliciano Pedro Cabrita, que estagiou no Mucondo, no norte de Angola, em finais de 1970 e princípios de 1971. O livro está esgotado, como disse, mas o autor disponibilizou o texto relativo a este estágio no blog da C.Cav. 2692, do B.Cav. 2909, que foram a companhia e o batalhão onde o seu estágio teve lugar. À parte os aspetos de caráter pessoal, eu estou em condições de confirmar tudo quanto Pedro Cabrita descreve em "Capitães do Vento". E digo mais: não só confirmo os detalhes de tudo quanto ele viu no Mucondo, Santa Eulália e Zemba, como manifesto o meu assombro por ele exibir uma tão grande capacidade de descrever tantos pormenores, com tanto detalhe e tanto rigor, como na verdade o faz. Tudo aquilo era mesmo assim, tal e qual, sem tirar nem pôr. Quem estiver disposto a ler a narrativa do estágio de Pedro Cabrita, pode fazê-lo nos seguintes endereços:

http://ccav2692susaeles.blogspot.com/2020/04/parte-1-do-livro-capitaes-do-vento.html

http://ccav2692susaeles.blogspot.com/2020/04/parte-2-240-dia.html

http://ccav2692susaeles.blogspot.com/2020/04/parte-3-270-dia.html