sábado, 29 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Ponte da Barca fora a minha fronteira em duas deambulações anteriores, partindo do Gerês e passando pelo Soajo. Fiquei maravilhado com a ponte e com o tratamento paisagístico derredor.
Agora era diferente, tratava-se de uma peregrinação limiana em homenagem a um querido amigo que mesmo cego queria saber com a maior regularidade possível o que se passava na terra-berço e concelhos limítrofes. Catorze anos consecutivos de leituras de jornais como Aurora do Lima, Cardeal Saraiva, Notícias da Barca ou Notícias dos Arcos, leituras onde se chegava mesmo a esmiuçar toda a necrologia, tinham forçosamente consequências em desenhar a peregrinação a redondezas limianas.
O meu saudoso amigo tinha várias obras sobre o românico minhoto, indiscutivelmente apegado ao que se fazia em Oviedo e terras da Galiza, mas que, como ele sublinhava atroador e abaritonado, era ali que estava o bilhete de identidade do nosso perdurável sentimento religioso. Por isso se foi a Bravães e no dia de hoje passeei por Ponte de Lima acenando-lhe entre o céu enevoado.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4)

Mário Beja Santos

Saí do arraial minhoto de Ponte da Barca, o fito é a Igreja de S. Salvador de Bravães, fundada entre 1080 e 1125, terá sido templo de um pequeno mosteiro rural beneditino, e mais tarde dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que terão construído o edifício atual. Não esqueço a importância que lhe conferia o professor de História de Arte em Portugal, Jorge Heitor Pais da Silva, um comunicador espantoso, naqueles anos em que se mostravam slides. Ele explicava acessivelmente o Primeiro Românico, a partir do século IX, associado à Reconquista Cristã, a disseminação dos templos pelas terras portucalenses, a arquitetura da Reconquista, a singeleza da pedra, a escultura e a tumulária, a importância dos monges cavaleiros, como, na rudeza das tomas e retomas de território se impunha uma arquitetura onde o modelo básico da igreja era o basilical. E no caso português, este saudoso mestre ia direito ao Alto Minho, à bacia do Lima, e à importância estratégica de ligar Braga a Compostela. E a sua voz abaritonada subia de volume e entusiasmo quando nos mostrava Bravães.





Agora socorro-me do que se pode ler no primeiro volume da sua História de Arte Portuguesa, Círculo de Leitores, 1995, coordenado pelo historiador Paulo Pereira: “Com uma estrutura arquitetónica de grande simplicidade, é composta por uma só nave e capela-mor rectangulares, sendo de maiores dimensões a primeira, ambas cobertas por teto de madeira. A escultura ornamental encontra-se concentrada na porta principal, inserido num corpo avançado, constituindo um dos mais importantes programas iconográficos do românico português. Nos colunelos, o destaque vai para a representação da cena da Anunciação, com duas grandes estátuas-colunas figurando a Virgem e o Arcanjo S. Gabriel. As restantes colunas são preenchidas com motivos geométricos e zoomórficos, sendo particularmente interessantes os chacais e, sobretudo, o curioso entrançado formado pelas serpentes”.



Porta lateral

Porta lateral

O historiador Paulo Pereira analisa cuidadosamente os conteúdos escultóricos românicos, o Cordeiro de Deus, figuração simbólica do Cristo imolado, os leões, as serpentes (estas representam as forças primordiais/vitais existentes na natureza e que o homem tanto teme); mas também os leões-atlantes, o sol e a lua, a expressão do ser humano, a simbologia dos vícios e virtudes, o uso de pássaros afrontados e de todas as remissões que conduzam à devoção. Contempla-se Bravães, sente-se o berço da nacionalidade, a crença no divino nesta entrada fulgurante do românico português, marcador da nossa identidade. Debruço-me sobre uma inscrição indecifrável, a ver se encontro obra que me diga alguma coisa, regresso ao epicentro desta viagem que teve a sua razão de ser na homenagem que pretendo prestar a um limiano orgulhoso das suas origens, Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo. À chegada, apeteceu passar pela ponte até Arcozelo, houve mesmo vontade de voltar ao carro para visitar as igrejas românicas de Ponte de Lima, Santo Abdão, na Correlhã, Espírito Santo, em Moreira e Santa Eulália em Refoios, talvez fique para mais tarde quando se organizar a visita ao património religioso da vila e da Além da Ponte. Mas não, vou até ao pelourinho de Ponte de Lima.


O pelourinho existia no areal do Rio Lima, símbolo do poder absolutista, estava fora das muralhas. Ganharam os liberais, foi transferido para a Praça da Rainha, seguiu-se um certo caos, houve dispersão dos elementos, a base e as pedras da plataforma foram utilizadas no passeio, o fuste numa hospedaria, o capitel no pátio interior do Asilo D. Maria Pia, o escudo na Fonte do Largo de S. João e a esfera armilar perdeu-se, só em 1936 se fabricou a atual estrutura. Independentemente de todas estas peripécias, há que reconhecer que é muito belo nas suas feições oitocentistas, destacando-se na parte frontal o “corpo de cantaria com escada de dois braços, de acesso ao segundo piso, rasgado inferiormente por vão em arco de volta perfeita”.


Regresso ao meu alojamento para arrumar tarecos, chuviscou e parece que a luminosidade nos transporta ao tempo medieval, não é verdade mas marca os contornos, vinca as linhas dos edifícios, o lajedo rebrilha, é uma consolação para o olhar, escolhem-se dois ângulos possíveis, para mim são impressíveis imagens que não gostaria de esquecer desta peregrinação, olho para aquele enevoado tão típico da terra minhota, e comovo-me.



Ponte de Lima tem lugar ímpar no conjunto dos solares de Portugal. Consegui um mapa que vai de Melgaço às Calhetas de S. Miguel. A parte de leão está na vila mais antiga de Portugal, a saber: Casa da Várzea, Casa do Barreiro, Casa do Crasto, Paço de Calheiros, Quinta da Aldeia, Casa de S. Gonçalo, Casa do Outeiro, Casa do Anquião, Quinta da Roseira, Quinta da Agra, Casa das Torres, Quinta de Santa Baía, Quinta do Casal do Condado, Quinta do Rei, Casa da Lage. Estamos a falar de solares que permitem alojamento, outras casas há que estão abertas ao público, e são solarengas, mas só se pode visitar o interior e os jardins. É o que se passa com a Casa de Nossa Senhora de Aurora, que mais tarde irei visitar. É esta profusão de solares, alguns deles palácios na verdadeira acessão da palavra, convocam o ouro e o açúcar vindos do Brasil, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. E daí a espantosa profusão de brasões, não deve haver vila portuguesa com tanta presença fidalga.


O General Norton de Matos (1867-1955) era limiano, aqui nado e falecido. O seu pai era fidalgo da Casa Real e cônsul da Grã-Bretanha e Irlanda em Viana do Castelo. Militar com uma invejável folha de serviços, ministro e governador de Angola, onde passou a figurar na História, membro proeminente da Maçonaria e candidato presidencial pela oposição nas eleições de 1949, desistiu perante a patente falta de condições democrática. Não esquecer que também vinha aqui na mira de encontrar camélias floridas, deu gosto ver o destemido militar perto de uma cameleira simultaneamente viçosa e fenecente.


Ali perto do busto do General Norton de Matos está uma mansão que é um verdadeiro compósito de castelo e murada, seguramente que o proprietário gostava do neogótico, de merlões e seteiras e despendeu bom dinheiro pondo granito a toda a altura num edifício neorromântico e com pozinhos de Arte Nova. Era irresistível não ficar fascinado pela bizarria.


Quem diz solares barrocos não deve esquecer as capelas e outros templos religiosos, é caso da chamada Capela das Pereiras que se ergueu junto das muralhas, sofreu muito com o terramoto e ali está, no alto da escadaria, a falar forte e feio de traça barroco. Havia a sugestão de visitar o seu interior, no restauro foi encontrada pintura primitiva, encontrei sempre a capela fechada, mas fiquei muito satisfeito com esta imponência e a tocante discrição dos elementos escultóricos. Por hoje basta, estou ansioso por um bom caldo verde e um pãozinho com presunto, e acabar o dia despegado a ver correr as águas do Lima entre os focos de luz. Amanhã também é dia, vou passarinhar por aqui, ver se encontro um antigo combatente da Guiné e passear-me entre camélias.


(continua)
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Nota do editor

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2 comentários:

Julio Vilar pereira Pinto disse...

Apenas um reparo na visita à minha terra não é Refolhos mas sim Refoios.

Carlos Vinhal disse...

Caríssimo Júlio Pinto, muito obrigado pela tua chamada de atenção. Já emendei o nome da tua terra que se chamará Refóios do Lima.
Carlos Vinhal
Co-editor