domingo, 30 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21304: Blogues da nossa blogosfera (137): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (48): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


UM BRAMIDO DE RAIVA

ADÃO CRUZ

© Pormenor de quadro de ADÃO CRUZ


Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas, 
tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da 
inglória velocidade rebentando a dor direito à morte que está 
em pé na berma do cais, pela mão de uma criança.

O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol 
e sem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada 
com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de 
ferro, parido pela força de um desumano progresso contra o 
qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em 
contramão.

Meu menino sonâmbulo, de olhos negros e pálida doçura 
quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade 
desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma 
sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um 
pai ou de um avô milionário, desiludido porque a sua fortuna 
não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de 
ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada 
mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas, sem força 
nem entreactos que te enxergassem melhor sorte do que a 
morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o 
ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, 
a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil 
cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso 
silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu o menino que estava no curto 
caminho da morte pela mão de um pai que não dominava 
a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um 
pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se 
perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti 
um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a 
Deus.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21006: Blogues da nossa blogosfera (131): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (47): Palavras e poesia

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