quinta-feira, 17 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Padre Puim, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, em 1971, tal como outros (o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, membro da nossa tertúlia). 

Infelizmente, é a única foto que possuímos do ex-Padre Puím, hoje enfermeiroo no Hospital de Ponta Delgada, segundo a informação que tenho. Obrigado ao Abílio, pela evocação desses tempos difíceis de Bambadinca (é o adjectivo mínimo que posso aqui utilizar), coincidindo com a parte final da minha comissão da serviço, como se dizia eufemisticamente. Obrigado também por te lembrares do Henriques, um gajo apanhado, e honrá-lo com a tua amizade. Sei que andou por aí algures, a tentar esquecer... Mas, de facto, não se esquece a Guiné (1)


Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


Mensagem do Abílio Machado (ex-Alf Mil da CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72) (2), enviado com data de 31 de Março último:


Meu Caro:

Vê, por favor, o texto em anexo. Aparte o trecho final sobre o Puim, foi escrito - se bem tenho presente - logo na semana seguinte à minha presença no almoço da [CART] 2716 do Xitole, o ano passado, aqui no Porto . Encontrei-o aqui nas minhas coisas. Era já nessa altura minha intenção enviá-lo para o teu blogue . Mas perdi o endereço e por aqui ficou esquecido. Carecerá de actualizações mas vai mesmo assim.Vale o que vale e o que a memória deixa.

Um abraço

Abilio Machado

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O pudor em falar da guerra...

por Abílio Machado


Tenho a ideia de ter lido há muito, muito tempo – cada vez mais o tempo é pouco - num dos cadernos do Expresso - passe a publicidade - uma referência a algo cujo título se parecia muito com o tema deste blogue.

É uma reminiscência longínqua, confusa, que nada terá de real, eivada, portanto, dos erros e partidas que a memória nos vai pregando ao longo da vida. Relaciono essa leitura com uma época em que, por efeméride ou acaso, vários textos de ficção sairam sobre a guerra colonial.
Não é demência senil - espero - será antes o propósito confesso de esquecer.

A participação numa guerra é sempre uma baliza que ficará a marcar o campo onde as nossas vidas se jogam ou jogarão: mais ainda se a oposição a essa guerra é já uma ideia construída e consciente, como era o caso de muitos de nós.

Esta contradição de estarmos numa guerra de que ideologicamente, politicamente, discordávamos não foi, por certo, a menor das “culpas“ que tivemos de carregar e solucionar no íntimo de cada um de nós. Talvez por isso se contem pelos dedos - como eu me lembro de contar pelos dedos : quando uma mão não chegava, socorria-me dos lábios para continuar a contagem da outra – as vezes que falei às minhas filhas da guerra em que o pai estivera engajado.

Já o meu avô, velho combatente da 1ª Grande Guerra, nunca contou aos filhos as agruras que passou nas trincheiras, o que comiam (tudo o que mexia ), a fuga desordenada para a rectaguarda dos sobreviventes após o desastre da Batalha de La Lys, os gases tóxicos. A minha mãe pasmava, de olhos desorbitados :
-Quem te contou tudo isso?

É impressivo em demasia para ser contado… É uma reserva íntima. Assunto para ser guardado em baú de sótão, como as velhas fotografias de família.

Mas vamos ao que interessa. Por que acedo a este blogue? Não escondo que o faço sentindo que a emoção se me escapa para os dedos e para o teclado. Lá onde quer que a emoção habite …
Num almoço-convívio recente da Companhia sedeada no Xitole, para que fui convidado, o Guimarães deu-me conta e endereço do blogue e de quem se esconde por trás de um nome tão inócuo como Luís Graça.

Meu caro Henriques (desvenda-se o mistério do nome ) : os nomes serão inócuos, as pessoas que eles ocultam, nem sempre o são. E há-as bem carregadas de contra-indicações e efeitos secundários. E incómodas, como o diabo...

Aquela noite em Bambadinca … Ainda lembras ou também queres esquecer? Ainda hoje não sei - ou sei - como escapaste à psiquiatria … O que, naquelas circunstâncias, seria, apesar de tudo, o mal menor. Antes louco que preso. Seria ?

O exemplo do padre Puim - já não é padre: quem o é nos tempos de hoje? Uma instituição caduca! – é o paradigma do que poderiam ter feito naquela situação. E não o terão pensado?

O Puim. Outro exemplo impressivo. Memória perene. Porque há actos que, por dolorosos, queremos rejeitar, mas pelo exemplo não podemos esquecer. E ficam-nos como um padrão, ou uma tatuagem, ou um ferrete. Recortados no horizonte ou cravados na carne a frio são uma referência ou uma lembrança.

A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar. Já corriam, porventura trazidos pela brisa que vinda de certa Casa ribeirinha se espalhava às vezes serena, às vezes inquieta pela parada do quartel, uns ditos de que o padre Puim se desmandava nas homilias.

Os textos, ditos ou escritos, não eram visados pelo lápis azul. O Puim saberia disto? Não vou revelar o que penso, não quero ser inconfidente… E choveram relatórios para Bissau, por certo. Alguém que era regular nas missas.

E chegou o dia 1 de Janeiro – Dia Mundial da Paz. Ainda é ? Era-o em 1971. Ao que me disseram ( eu não ia à missa : as minhas missas com o Puim eram grandes conversas, edificantes, pela noite fora ), o Puim falou sobre a Paz.

Nessa semana, à socapa – houve um silêncio quase opressivo ou é efabulação minha? - aterrou uma DO. Alguém discreto fez-me chegar a nova de que algo se passava com o Puim. Fui ver. Encontro o Puim sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de … Abriam, fechavam gavetas, apressados … Acabei retirado do quarto.

E levaram-no com eles . Vi-o passar. Parecia mais sereno . Chegou-nos que teria sido mal tratado em Bissau até pela própria Igreja . E que teria sido exilado para a sua terra: haverá coisa pior? Um exílio no próprio chão que o viu nascer?

Ninguém é profeta na sua terra nem fazem milagres os santos que conhecemos. Mais tarde soubemos que estava de facto nos Açores. E que despira o hábito … Mas abraçara outro sacerdócio … A igreja será agora o Hospital de Ponta Delgada.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de Dezembro 08, 2005 > Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné (Luís Graça)

(2) Vd. post de 29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1635: Amigos, enquando vos escrevo, bebo um Porto velho à nossa saúde (Abílio Machado, CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72)

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