Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º Cabo enfermeiro Teixeira, um operacional a tempo inteiro (... hoje um notável contador de estórias).
Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.
Texto do José Teixeira (1º cabo auxiliar enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) com mais uma das suas estórias:
TARDE DE DOMINGO COM SORTE
por Zé Teixeira
O Reencontro
Trinta e sete anos depois do regresso, reencontrei o camarada Nuno Rosa. Para além da grande alegria pelo encontro, selada com um forte e comovido aperta costelas, surgiram logo de imediato as estórias do costume. Lembras-te daquele ataque … e daquele… das formigas que nos acordaram de noite … das malditas abelhas… etc, etc.
Algumas das estórias já estavam no sótão da memória, provavelmente cheias de pó. Outras continuam activas a bailar no consciente, só que há pormenores que nos escaparam. Assim as estórias tomam outra dimensão, talvez mais realista e sobretudo, após este desfiar de flashes por vezes bem dolorosos, acabam por se deslocarem para o sótão, até ao descanso eterno do guerreiro.
Uma emboscada ao domingo
Estávamos em Buba, no fim do Verão de 1969. O Joaquim Agostinho, com 26 anos devorava etapas na Volta A Portugal. Era o ciclista prodígio, o fora de série que tinha sido descoberto em Torres Vedras. Como o grosso do pessoal da CCAÇ 2381 era Ribatejano, não se falava de outra coisa na caserna.
Era domingo. Logo após o almoço, depois de um Sábado passado em patrulhamento para os lados da bolanha dos passarinhos, surge nova ordem de mobilizar para novo patrulhamento para os lados de Sinchã Cherno e emboscar algures na estrada que se andava a construir até Aldeia Formosa (Quebo), muito perto do local onde cerca de um mês antes tínhamos sofrido uma emboscada, junto a um campo de minas, uma das quais roubou a perna ao Miguel. Este, logo após o acalmar do fogo levantou-se e . . . descobriu que estávamos a pisar um campo, onde foram levantadas 27 minas A/P. e localizados buracos, tipo campas abertas com cruzes e com papéis escritos do género: "Tugas é isto que vos espera”, “Ida para a vossa terra” etc.
Bolsa de enfermeiro às costas, cantil cheio... Os efeitos da velhice não só dava, em resultado das experiências vividas, para um redobrar de atenção e um poder de reacção e desenrasque maior, como também, em certas ocasiões, para um aventureirismo exagerado com graves riscos para a pele.
Naquele dia, partimos à desportiva, bem dispostos, bem bebidos, quando muito, chateados pelo quebrar da rotina, pois em Portugal ao domingo não se trabalhava.
No primeiro local seguro (?) que encontramos, montamos tenda, quer dizer, a emboscada e preparamo-nos para ficar ali o resto da tarde. De repente ouve-se um tiro muito perto e o ruído de algo a cair de uma árvore. Como velhinhos ficamos quietos na expectativa, apenas redobramos de atenção, e eis que surge um dos furriéis com um magestático pato bravo, com seis/sete quilos, que o mesmo tinha abatido a tiro de G3.
A isto chama-se brincar em serviço, pelo que levantamos de imediato a embosca e partimos para outro sítio algures mais à frente. Sem saber que estávamos a cair para a boca do lobo, lá nos colocamos de novo em posição de combate. Agora sim, um pouco abandalhados. O homem que levava o prato do morteiro 60 não ficou junto do morteiro e o municiador do lança roquetes trocou o lugar por mim.
O Nuno com o seu colete de roquetes estava preocupado, pois faltava-lhe o municiador, o qual também trazia uma fornada de granadas. Ao comentar a sua preocupação eu respondi-lhe:
-Não te preocupes que se os turras atacarem, eu municio-te.
O IN que estava emboscado um pouco à frente, deixou-nos pousar e aproximou-se com cuidado ( Creio mesmo que se avançássemos mais uns cem metros, tínhamos caído no seu campo de mira).
De repente o ambiente aqueceu com o IN a cair em cima de nós com toda o seu potencial de fogo, ao qual se segui a nossa resposta rápida. Uma das primeiras roquetadas IN foi rebentar numa árvore por cima da minha cabeça. Os seus estilhaços barreram as folhas das árvores e este camarada procurou de imediato um lugar mais seguro. O roqueteiro bem olhou para trás, à minha procura, mas eu tinha voado para junto de uma árvore, mais segura.
Acabado o desafio, um autêntico Porto/ Benfica de que resultou um empate, ambos os contendores pensaram em fugir, o que foi a minha sorte.
Chega-me a informação de que há um ferido. Logo me aproximo e verifico que o homem do morteiro não hesitou em enviar umas morteiradas, colocando o cano do morteiro na terra mole, de que resultou ter ficado com um rasgão na mão, pois o morteiro ao enterrar-se pelo impacto, pela terra dentro, deixou marcas. Passo a palavra de que há um ferido ligeiro e logo ali me disponho a fazer o tratamento como era o meu dever.
O alferes é que não esteve com meias medidas e decidiu retirar de imediato. Acabado o tratamento, logo verifico que estávamos sozinhos. Duas hipóteses, ou ficar quietos, aguardar algum tempo e depois regressar a Buba, ou correr atrás dos camaradas que iam a 400/500 metros algures na mata!
Como já era fim de tarde, resolvemos procurar seguir os colegas que, entretanto, para mais rapidamente se afastarem, seguiam já na estrada que se avistava ao longe. Até porque ouvíamos ruídos e vozes por perto ( penso que era o IN a afastar-se, caso contrário podiam ter feito ronco e apanhar-nos à mão ou enviar-nos para casa no sobretudo de madeira).
O nosso roqueteiro, o Nuno Rosa, relembrou-me agora, na altura teve um pressentimento de que estava a ser seguido e olhou para trás. Dois dos seus colegas vinham lá longe. Então ajoelhou, colocou as últimas granadas, pois como bom ex-comando, nunca gastava todas as munições que levava, e bateu a mata que ficava à nossa retaguarda, impedindo o IN de qualquer veleidade.
Os outros camaradas continuaram apressadamente o seu caminho com o alferes à frente e o Furriel a sonhar com o arroz de pato, que nunca mais largou
Assim ficaram três homens desarmados, no meio da mata; um morteiro sem granadas, um roqueteiro sem roquetes e um enfermeiro, num fim de tarde domingo que toda a gente queria calmo e pacífico.
Quando em 2005 tive oportunidade de voltar à Guiné, estive muito próximo deste lugar, mas confesso que nada me veio à memória.
Obrigado, Nuno, por teres partilhado esta aventura comigo.
Zé Teixeira
_____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1614: Estórias do Zé Teixeira (14): Voluntário na tropa... nem para comer!
10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1059: Estórias do Zé Teixeira (13): A Maria-tira-cabaço-di-branco
7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1055: Estórias do Zé Teixeira (12): O Balanta que fugia do enfermeiro
4 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1044: Estórias do Zé Teixeira (11): As vitaminas abortivas
4 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1043: Estórias do Zé Teixeira (10): O embalsamador amador
4 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1042: Estórias do Zé Teixeira (9): camaleões, putos e cobras
26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCVI: Estórias do Zé Teixeira (8): Do tan-tan ao pum-pum, um casamento em Mampatá
20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIX: Estórias do Zé Teixeira (7): Síndrome de guerra
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXVIII: Estórias do Zé Teixeira (6): um atribulado regresso
21 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLVIII: Estórias do Zé Teixeira (5): as abelhas, nossas amigas
21 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLVII: Estórias do Zé Teixeira (4): o lugar do morto
15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVIII: Estórias do Zé Teixeira (3): a festa da vida
11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXIII: Estórias do Zé Teixeira (1): Dôtor, Bô ka lembra di mim ?
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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