terça-feira, 15 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1761: A floresta-galeria na escrita de Rui Ferreira


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > Vista aérea: o esplendedor (e o terror) do Rio Geba e das suas margens.

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

1. Mensagem do nosso camarada Rui Ferreira, coronel na situção de reforma, residente em Viseu, autor do livro de memórias Rumo a Fulacunda (1) e que, apesar dos actuais problemas de saúde, nos deu a honra e o prazer da sua presença em Pombal, no passado dia 28 de Abril de 2007:

Meu caro Luís:

Passei a olhar com mais respeito e a dar mais valor ao meu computador quando aderi de alma e coração à nossa tertília.

Todos os dias cá subo ao meu sotão onde num soberbo aproveitamento me fiz rodear das minhas recordações, livros, discos e cassetes que constituem o meu mundo e acabo fatalmente a abrir o correio e a ver as novas do nosso contentamento.

Tenho todo o gosto que um dia tu ou qualquer um dos outros que, por acaso ou não, visite Viseu me dê o prazer de me fazer uma visita. Aqui fica o convite.

Mas não só por isso te estou a contactar. Penso que para além das historias, peripécias e acontecimentos por que duma maneira geral todos fomos passando e que são obviamente muito importantes e têm por direito o seu lugar garantido, poderíamos alargar horizontes com a introdução de novos temas.

E para te falar deles começaria por sugerir que de uma forma absolutamente pessoal cada um se referisse como viu e como viveu e sentiu quando confrontado com coisas tão simples como os obstáculos naturais, o terreno, o clima, a humidade, o calor, as chuvas tropicais, a floresta, a guerra de minas, o culto da velhice nas sociedades africanas, o choro, a grandiosidade do nascer ou a beleza do pôr do Sol em África, a existência de Deus, o cheiro da terra depois das primeiras chuvas, o silêncio de morte, o medo, a angústia duma mutilação, ou mais terra a terra sobre o anexo do Hospital Militar de Campolide, a inadaptação da hierarquia militar à guerra de Àfrica, as comissões dos filhos e as dos enteados, enfim um nunca mais acabar de assuntos possíveis.

E para inaugurar, se assim o entenderes aqui te vou transcrever o que sobre a floresta escrevi
( In Rumo a Fulacunda, pag 218):

(...) a floresta- essa sim bem especial, pois, em alguns recantos perdidos e remotos da nossa área de acção, ela sendo senhora e soberana, em absoluto interferia na nossa actividade. Virgem, brava e selvagem, sôfrega na conquista dos espaços devolutos, desgovernada na expansão, abandonada ao acaso, perdida nas vastidões inocupadas das terras que não eram de ninguém, intocada, altiva e serena, misteriosa e sombria, era de um profundo espanto observar o contraste entre o soturno melancólico das sombras, dos escuros e dos tons de cinzento e negro do seu interior face ao luxo e ao esplendor do verde deslumbrante que ao Sol se expunha.

Crescendo ao deus-dará, resistindo à penetração e indiferente ao correr dos anos, numa amalgama de formas e tamanhos, numa profusão de variedades e numa imensidão de espécies que, disputando o mesmo espaço, a um tempo se irmanavam no mesmo propósito e antagonizavam na conquista da luz que mais não era que a própria vida.

Enlaçando-se, acomodando-se, coabitando, lutando e crescendo, lado a lado, fetos e arbustos, lianas e trepadeiras, canaviais e palmeiras, ramagens e raízes, frutos e flores, folhagens de recorte tão diverso, do ínfimo ao grandioso, do ridículo ao monumental, árvores novas e de pequeno porte, espinheiras, enfim um verdadeiro e absoluto matagal, intrincado e sem sentido, desordenado e sem solução.

Sobressaindo, tudo culminando e suplantando as demais, majestosas e frondosas, dominando em seu redor, se erguiam árvores de tão grande como inimaginado porte. Junto delas nos sentiamos pouco menos que insectos numa confrontação entre as suas impensáveis alturas e a nossa ridícula pequenez, entre a sua longevidade milenar e a nossa curta passagem por este mundo de Deus.

Na floresta não eramos mais que ínfimos seres desambientados e no seu interior, tão denso como se numa noite cerrada se tivesse entrado, pavorosamente tão sombrio, o que negro já era, se voltava a sentir não os mesmos infantis e inocentes temores da meninice ao escuro associados, mas um imenso e real pavor, tanto mais assustador quanto consciente, face ao desconhecido e misterioso. (...).


E por aqui me fico por hoje . Num grande abraço toda a consideração e a amizade do
Rui

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Nota de L.G.:

(1) Sobre o autor e o livro, vd posts:

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)


1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1718: Lendo de um fôlego o livro do Rui Ferreira, Rumo a Fulacunda (Virgínio Briote)

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