terça-feira, 24 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...

Guiné > Guidage > CCAÇ 4150 (1973/74) > Guidaje, Guileje e Gadamael: todos estes aquartelamentos começavam por G, de guerra: foram um talismã para o PAIGC, e um inferno para as NT...
Foto: © Albano M. Costa (2005). Direitos reservados.

Continuação da publicação das notas do diário do camarada A. Mendes, ex-1º Cabo Cmd da 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74).
Texto: © Amilcar Mendes (2006).

1. Nova mensagem do Amílcar Mendes, acompanhada da última parte do seu diário, onde se relata a escolta que dois Grupos de Combate da 38ª CCmds fez a uma coluna auto que se dirigiu a Guidaje, vinda de Farim, com regresso a Farim, entre os dias 9 e 13 de Maio de 1973.

Amigo Luís, voltaremos a Guidaje mais tarde.Vou seleccionar outras passagens mais leves e daqui a uns dias irei enviá-las. OK ? Com respeito à pergunta que me fizeste, a companhia que sofreu a emboscada perto do Cufeu foi a CCAÇ 19, formada por tropas naturais da província. Não o escrevi para não identificar o comandante. OK ? Fica só para ti.

2. Comentário de L.G.:
Amílcar, entendo o teu sentido de disciplina militar e respeito o teu dever de ética que te obriga(va) ao sigilo... Mas eu já tinha cometido essa inconfidência, ao identificar a Companhia que estava em Guidaje. Essa informação era, de resto, do domínio público. Eu sei que os militares, sobretudo os do quadro, bem como as tropas especiais (os paras, os comanos, os fuzos) ainda hoje, não podem, não devem nem gostam de identificar as unidades combatentes, no teatro de operações do Ultramar.

Acontece é que a Guerra do Ultramar (para outros, Guerra Colonial, e para outrso ainda, Guerra de Libertação) já não é mais um tabu, na sociedade portuguesa. E a prova disso é nós estarmos aqui, com sabedoria, serenidade e responsabilidade - própria de uma geração que já viveu muito! - a revelar coisas que na altura os nossos superiores hierárquicos achavam que deviam ser classificadas, reservadas ou até secretas (olha, por exemplo, a invasão de Conacri, planeada e comandada por oficiais portuguesas)...
Felizmente, a guerra acabou (ou talvez não, para os combatentes e para as populações que sofreram, directamente, a guerra e as suas sequelas, sobretudo as físicas, mentais e psicológicas)... Por outro lado, nós aqui não vamos julgar ninguém, não somos nenhum tribunal, não vamos dar nenhum tiro do pé... Simplesmente andamos à volta com as nossas memórias (incluindo os nossos pesadelos e os nossos fantasmas), e não queremos morrer com eles, queremos partilhá-los: é muito mais útil e saudável, como tu sabes...

Os camaradas da CCAÇ 19 (muitos deles, provavelmente mandingas, a avaliar pela composição étnica da população que vivia em Guidaje) foram valentes e corajosos e pagaram caro - muitos com a vida - a tentativa de resistência à ofensiva do PAIGC sobre Guidaje... A sua memória deve ser aqui lembrada, com dignidade... Tu não identificas o oficial que comandava a força da CCAÇ 19, emboscada perto da bolanha do Cufeu, junto à ponte, em 11 de Maio de 1973, mas relatas o que ouviste e viste, incluindo o seu aparentemente estranho comportamento: cercado por um numeroso grupo IN, e querendo dramatizar ainda mais a situação desesperada em que se encontrava, mandou a aviação bombardear as suas próprias tropas...
Tu estavas lá, ouviste esse insólito e impressionante pedido de socorro pela rádio, e ninguém vai desmentir-te nem muito menos acusar-te de estares a prejudicar a imagem do exército português... Eu sei que ainda há portugueses que nos acusam de termos sido cobardes na Guiné, em Angola, em Moçambique, na Índia, em Timor... Pobres deles, nunca estiveram num teatro de guerra, como tu ou eu ou os nossos camaradas de tertúlia!... Mas o gesto deste oficial não é gratuito: é uma decisão corajosa, quiçá desesperada, embora ele saiba que a aviação não vai poder cumpri-la!... Porque entre mortos e feridos, alguém haveria de escapar... Como escapou!

Tu, que foste um valente e competente comando (tanto quanto eu julgo saber a teu respeito), foste muito sincero quando escreveste, em linguagem simples, nua e crua, e nunca confundindo a ficção com a realidade: "Cinco dias fora. Meu Deus, foram os piores dias da minha vida. Irei tentar descrever tudo o que passei. Os horrores da guerra! Nunca pensei que fosse possível acontecer o que vi. Terrível de mais para ser verdade"...

Tu eras um valente comando, mas também um homem de carne e osso, com sentimentos e sentidos, com os nervos à flor da pele: "Com a chegada da manhã os rostos de tristeza vão-se descobrindo mas é preciso reagir. Com um ano de Guerra, o factor morte já não nos afecta assim tanto, já aprendemos a conviver com ela de perto, só temos de arranjar maneira de a ir iludindo".

Olha, o teu testemunho foi muito importante para que todos nós, combatentes e não-combatentes, passássemos a ver com outros olhos o que foi a parte final da guerra da Guiné, que se acelerou a partir de Maio/Junho de 1973. Obrigado pelo teu desassombro, coragem e honestidade intelectual. Obrigado por teres querido e podido partilhar essa brutal experiência com todos nós, teus amigos e camaradas de tertúlia, mas também com todos os teus antigos camaradas da 38ª que venham a conhecer este blogue e a poder ler o teu texto. L.G.



Última parte da narrativa sobre a escolta a uma coluna auto Farim-Binta-Guidaje, em Maio de 1973, por 2 Gr Comb da 38ª CCmds.


13 de Maio de 1973

Amanhece em Guidage. Logo ao alvorecer sofremos mais um ataque(o 8º).Recebemos ordem de saída para a mata. Vamos montar uma emboscada nos trilhos, já dentro do território do Senegal. Parece uma auto-estrada este trilho tal é o movimento de população. Revistamos ao acaso. Numa mulher encontramos documentação militar que apreendemos. Depois de cerca de três horas de controlo, retiramo-nos para o quartel.

A coluna vai hoje regressar a Binta-Farim. Ao meio do dia mais um ataque ao destacamento. A meio da tarde começa-se a organizar a coluna para o regresso mas durante os preparativos sofremos mais dois ataques e é a confusão, com as viaturas paradas no meio do destacamento e a morteirada a cair.

Assisti durante os ataques a um espectáculo insólito: enquanto durava o fogo, um oficial, nesta caso o Comandante, caminhava sereno pelo meio da confusão dando ordens e tentando manter a calma, alheio aos ataques e aos gritos. Esse senhor era o Coronel Correia de Campos, que comandava o COP3 ao qual a minha companhia ficou dependente enquanto esteve em Guidaje.

O Comandante achou perigoso a coluna seguir nesse dia pois fazia-se noite e concerteza o IN iria estar emboscado à nossa espera. CDurante a noite sofremos mais ataques. Creio que no total e no curto tempo que aqui estivemos, sofremos pelo menos 15 ataques ao destacamento.

Logo ao alvorecer a coluna põe-se a caminho.Fazemos a picada de volta e à medida que avançamos, voltamos a passar pelos cenários de morte. Os corpos estão a caminho de esqueletos, devorados pelos urubus. O cheiro é insuportavel, por vezes dá náuseas. Acho que pelo resto da minha vida nunca mais vou esquecer este local maldito!

Ao fim da manhã já estamos a chegar a Binta quando surge mais um acidente: um militar da tropa da Província pisa uma mina, dá por ela e fica com o pé lá em cima... É uma mina de descompressão e poucas hipóteses tem de lá sair com vida.

Põe-se areia a volta. Cobre-se o corpo de roupa mas ele salta rápido. Não morre mas fica sem o pé. Durante a minha viajem de regresso na Berliet que seguia à minha frente, ia o Filipe com a perna já em adiantado estado de gangrena. Irá sobreviver. Somos amigos, ele vive no Porto e ainda hoje recordamos esse tempo, o que nos dá vontade de chorar!

Chegamos a Binta e o Filipe é logo evacuado! A coluna não pára. Seguimos para Farim e daí logo em direção a Mansoa.

É a alegria geral!Que saudades da rapaziada! Chegamos a casa!...

FORAM OS PIORES DIAS DA MINHA VIDA!- Pensava eu. A malta faz perguntas mas a nós não nos apetecia responder, só para não voltarmos a pensar naquele inferno. Ao diabo com Guidaje!(Como eu estava enganado, mas ainda não o sabia!).

Comentário: Ainda hoje sonho com Guidaje! Algumas coisas do que aconteceram foram tão reais que iriam ficar gravadas na minha memória até chegar ao STRESS!

Sentir na carne não é o mesmo que me sentar a escrever sobre um acontecimento. Isso é ficção e, pelo que vou lendo, há muitos ficcionistas que se arvoram em paladinos da verdade. Paz à sua alma!...

A. Mendes
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Nota de L.G.:

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