Crachá da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74)
Luís da Cruz Ferreira (n. 1950, Benedita, Alcobaça)
1. Continuando a leitura do livro do Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025, il., 184 pp,) (ISBN 978-989 -33.7982-0) (*).
Oriundo co contingente geral, vamos encontrá-lo na recruta, no RI 7, Leiria, 4º turno de 1971 (out/dez 1971).
Fará depois a especialidade de auxilitar de enfermeiro, em Coimbra, no RSS (Regimento de Serviços de Saúde) (jan/mai 1972)
Irá de seguida formar batalhão, o BART 6521/72, no RAL 5, Penafiel (jun / set 1972).
Daí partirá, de autocarro, em 22 de setembro de 1972, de noite, para o aeroporto militar de Figo Maduro,em Lisboa. Embarcará num Boeing 707 para Bissau, onde chega no dia 26/9/1972 (uma pequena divergència quanto à data de chegada ao CTIG).
O exército levava quase um ano a formar um militar que depois seguia para o ultramar (Angola, Guiné ou Moçambique), em rendição individual, ou integrado num contingente.
As suas observações críticas (mesmo que "anedóticas"...) sobre o quotidiano da tropa naquela época merecem, só por si, uma nota de leitura à parte. O livro foi destinado, antes de mais, aos camaradas da sua subunidade, tendo sido publicado (a 1ª edição) para comemorar, em 2/8/2024, os 50 anos do regresso da 2ª C/BART 6521/72 (Có, 1972/74).
Com 11 anos de guerra, em Angola e 9 na Guiné e em Moçambique, o serviço militar obrigatório era vista, pelos jovens portugueses de então, como um tempo completamente perdido das suas vidas, que se podia prolongar por 3 ou mais anos. Muitos desses jovens já tinham saído das suas famílias, trabalhando ou continuando a estudar fora das suas terras.
A qualidade da instrução militar (recruta e especialidade) ressentia-se da necessidade, sobretudo do Exército, em mobilizar e preparar rapidamente dezenas de milhares de jovens para um conflito de longa duração, a milhares de quilómetros de casa e de baixa popularidade. Técnica, tática, física e culturalmente, os militares portugueses iam mal preparados para uma guerra dita de contra-guerrilha (ou "contra-subversão"), num terreno difícil, de clima tropical.
Capa do livro
2. Luís da Cruz Ferreira é natural da Benedita, Alcobaça. Nasceu em 2 de março de 1950, mas só foi registado seis meses depois, em 4 de outubro.
De alcunha o "Beatle", quando jovem, profissionalmente já estava ligado à restauração, tendo trabalhado em diversos estabelecimentos conhecidos da Linha, e nomeadamente em Cascais, a começar pelo famoso Muchaxo (Guincho).
Na tropa e na guerra, foi 1º cabo aux enf, tendo sido mobilizado para o CTIG, integrado na 2ª C /BART 6521/72 (Có 1972/74). O batalhão estava sediado no Pelundo. Também foram dos últimos soldados do Império, tendo regressado a casa já em finais de agosto de 1974.
Antes da suas relativamente tranquilas "peripécias" da Guiné (onde acabará pro ser sobretudo professor do Posto Escolar Militar nº 20, em Có), vamo ver o que ele nos conta sobre o seu tempo de recruta e instrução de especialidade, bem como de formação de batalhão. (Em Bolama, o batalhão haveria ainda de fazer, durante mais de um mês, a sua IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, antes de ser colocado na zona oeste, Sector 07, com sede em Pelundo e abrangendo os subsectores de Có, Jolmete e Pelundo.)
Comecemos pela distribuição do fardamento no RI 7, em Leiria;
Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 9.
Num quartel gigantesco (que albergaria, segundo autor, c. 1500 homens, um regimento), ficou aboletado numa caserna para 30 recrutas, com camas duplas, em beliche. Tocou-lhe o 1º andar. Tinha direito a um cacifo com o respetivo cadeado.
Em Leiria, um quarto dos recrutas do contingente geral eram cooptados para o CSM (Curso de Sargentos Milicianos). Com três disciplinas que lhe faltavam para acabar o 5º ano do liceu, o jovem recruta, com 21 anos e 6 meses de idade (ou só 21 anos, segundo o registo civil), tinha algumas esperanças de ser um dos "eleitos"... Não o foi, alegadamente por não ter nenhuma "cunha", revoltou-se mas depressa se resignou, a viver naquele espaço "onde tudo quanto mexia, (...) era de cor verde" (pág. 11).
Visto por um "extraterrestre", aquele era um espaço de segregação, destinado apenas a homens, "onde não havia mulheres" (pág. 11), e onde esses homens, com postos hierárquicos bem diferenciados, tinham de se saudar uns aos outros, quando se cruzavam:
Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 11
Lembra os instrutores (cabos milicianos, furriéis, aspirantes...) que o tratavam com uma inesperada e desnecessária "rudeza". A instrução era dada "em passo de corrida". E havia a ideia de que um homem só era homem depois de ter ido à tropa, e de ter suportado, ci,m sucesso, muitas privações, contrariedades, humilhações, afinal "demonstrações de coragem, destemor e capacidade de sofrimento, além de muitas outras coisas inúteis" (pág. 11).
Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (ediçáo de autor, 2025), pág. 12
Havia "palestras" ou aulas ao ar livre. Mas o mais importante era o "exercício prático", com a omnipresente companhia da inseparável G3. Recorda a "ida à carreiro de tiro de Marrazes", onde cada recruta fez tiro a 100 metros, em várias posições, gastando cada um carregador de 20 balas...
Equipara o RI 7 a uma "prisão", onde escasseavam os apoios sociais...Beber uma café na cantina, foi coisa que nunca conseguiu, e que muita falta lhe fazia. Estava habituado, na vida civil, a tomar, depois do almoço e do jantar, o seu "Tofa 404 e, mais tarde, o 505 embalado em vácuo" (pág, 13). Tal como era difícil comprar cigarros. Ir à cidade eram 2 km. Com o tempo ameno, nesse outono de 1971, ainda chegou a lá ir e ver nas esplanadas algumas meninas da sua terra, Benedita, Alcobaça, que estavam a tirar o curso do magistério primário. Capital de distrito, Leiria também tinha liceu.
Relembra ainda a semana de campo nas "matas de São Pedro de Moel" e "a tenda de quatro panos" que ele e mais 3 recrutas montaram. Passou o tempo doente, na tenda, e de tal maneira que passou a odiar o campismo para o resto da vida.
Depois do juramento de bandeira, na parada do quartel, ficou a saber que lhe tinha calhado em sorte ir para Coimbra "tirar a especialidade de enfermeiro" (pág, 17).
De Coimbra, onde o colchão já era de espuma (em Leiria era de palha...), não guarda boas recordações da tropa, e muito menos do "rancho": tratavam os futuros enfermeiros "como presidiários com algumas precárias pelo meio para lavarmos a roupa que tínhamos bem suja à custa de nos fazerem ajoelhar, chafurdando nas terras enlameadas" (pág. 21).
Os transportes na época eram um pesadelo. Eram escassos, morosos e caros. Pouca gente ainda tinha carro. Aprendeu a andar à boleia, na estrada nacional nº 1. O célebre restaurante "O Bigodes", aberto 24 horas por dia, era paragem obrigatória, quer de camionistas quer dos militares que andavam à boleia. (Ainda hoje existe, IC2 / N 1 Km 81, 2475-034 Benedita),.
Um dia apanhou boleia até à Figueira da Foz, onde chegou às cinco da manhã. O comboio para Coimbra era só às sete. Com medo de chegar tarde à formatura, teve de ir de táxi, viagem que lhe custou uma pequena fortuna, 150 $00, o equivalente a 10 jantares (ou a 42 euros, a preços de hoje).
Comia-se tão mal no quartel, que era um antigo convento, que o Luís e um colega decidiram fazer, mesmo sem estarem desarranchados, as suas refeições por conta própria.
Quanto ao que aprendeu em Coimbra, entre janeiro e maio de 1972, foi muito pouco. E também ali não se falava do "conflito do ultramar"...
Fonte: Luís da Cruz Ferreira, "Os Có Boys" (edição de autor, 2025), pág. 25
Passou ainda pelo Hospital Militar Principal (HMP) na Estrela, em Lisboa, e pelo quartel da Carregueira. Ainda conseguiu fazer mais um disciplina do 5º ano, o inglês, faltando-lhe agora duas: fisico-químicas e matemática.
É pena que, passado mais de meio século, sobre o seu tempo de instrução de especialidade, em Coimbre e depois no HMP, à Estrela, haja poucas referências ao que ali aprendeu. Diz-nos apenas que foi pura perda de tempo. Mesmo assim, da sua passagem pelo "serviço de cirurgia plástica" do HMP, diz-nos que "através de observação, aprendi alguma coisa, não muito" (pag. 27).
Sabemos que o curso de esepeciaçlidade para 1º cabo auxiliar de enfermeiro, ministrado nas Escolas Práticas do Serviço de Saúde Militar (não existiam formalmente, eram anexas aos hospitais militares (Lisboa, Coimbra, Porto), durava cerca de 3 meses.
O conteúdo era sobretudo prático, comporeendo matérias como: (i) noções básicas de anatomia e fisiologia; (ii) higiene e profilaxia de doenças tropicais (paludismo, disenterias, infecções cutâneas); (iiii) técnicas de enfermagem geral (curativos, injeções, soros, etc.); (iv) socorrismo em combate (estancar hemorragias, imobilizações, transporte de feridos, reanimação); (v) administração de medicamentos de rotina (quinino, cloroquina, antibióticos comuns); (vi) evacuação sanitária e triagem.
Portanto, o Luís deve ter recebido uma formação intermédia entre o socorrista civil e o enfermeiro profissional, com forte ênfase na autonomia e na improvisação em condições adversas (recorde-se que, na Guiné, tanto o furriel enfermeiro como o alferes médico, ambos milicianos, raramente saíam para o mato, sendo cada vez afetos, no tempo do gen António Spínola, aos serviços de saúde da província, prestando cuidados primários (e secundários) não só aos militares como à população civil.) (Os casos mais graves careciam de evacuação para o HM 241, em Bissau.)
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > 1973 > CCS/ BART 6523 (Nova Lamego, 1973/1974) > O 1.º cabo aux enf Alfredo Dinis, a "tratar de graves queimaduras do Filipe, resultantes da explosão de um gerador de energia, no quartel".
Foto do álbum de Alfredo Dinis (já falecido) –
P6060, com a devida vénia. Ver, também, "Memórias de Gabú (José Saúde): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis" – P14106.
E entramos na reta final, que foi o RAL 5, em Penafiel, distrito do Porto, onde se foi juntar ao BART 6521/72, que estava em formação. De Penafiel até tem boas recordações, mas não dos transportes para lá se chegar na época. Eram 3 enfermeiros que sairam da Carregueira com destino a Penafiel:
(i) "por volta das 11 horas meteram-nos numa camioneta de carga que era utilizada para fazer a ligação entre o quartel e a estação do Cacém e lá nos largaram" (pág. 34);
(ii) em Braço de Prata, informaram-nos que tinham um comboio-correio para o Porto às 15h00, mas parava em todas as estações e apeadeiros;
(iii) chegaram ao Porto, Campanhã, seis horas e meia depois, às 21h3o;
(iv) foram dar um giro pelos arredores e "comer um bom bife com batas fritas a um preço acessível", mas acabando por perder o comboio da meia-noite;
(v) apanharam o das 2h00, chegaram a Penafiel às 3h00;
(vi) extremamente cansados, pousaram os sacos no chão, a servir de almofada, e assim se ajeitaram para retemperar as forças, só despertando ao toque do corneteiro a anunciar a alvorada.
A manhã começaria com a azáfama própria de um quartel de mobilização de tropas para o ultramar. Nesse mesmo dia conheceu o seu futuro comandante, um jovem capitão miliciano, bem como o alferes, também miliciano, do seu pelotão. Ficou então a saber que "pertencia ao 2º pelotão da 2ª companhia do Batalhão de Artilharia nº 6521" (pág. 38) (**).
(Continua)
______________________
Notas do editor LG:(*) Vd. postes anteriores >
27 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27259: Notas de leitura (1842): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte I: Apresentação sumária (Luís Graça)
29 de setembro de 2025 > 7 de outubro de 2025 >
Guiné 61/74 - P27291: Notas de leitura (1847): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte II: "Ó Beatle, queres mesmo ir para a Guiné ?", perguntou-lhe o antigo patrão, o sr. António Muchaxo... (Luís Graça) (**) Ùltimo poste da série > 13 de outubro de 2025 >
Guiné 61/74 - P27314: Notas de leitura (1850): " Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Segundo a Wikipedia, a primeira unidade militar sanitária do Exército Português foi a 1ª Companhia de Tropas do Serviço de Administração Militar. Foi criada em 1869. Era uma unidade que pertencia à administração militar mas destinava-se ao serviço de saúde. Em 1911, foi criado o 1ª Grupo de Companhias de Saúde em Lisboa e o 2ª Grupo de Companhias de Saúde em Coimbra
Para responder às necessidades criadas pela guerra do ultramar, será criado em 1965, em Coimbra, o Regimento do Serviço de Saúde (RSS) com base no antigo Regimento de Infantaria nº 12 (RI 12), e que absorveu as missões dos então extintos 1º e 2º grupos de companhias de saúde.
O RSS foi a primeira unidade de serviços do tipo regimento, no Exército Português. Durante o resto da Guerra do Ultramar, o RSS aprontou e enviou para Angola, Guiné Portuguesa e Moçambique diversas unidades sanitárias, a maioria delas sendo destacamentos de inspeção de alimentos, de inspeção de águas e cirúrgicos.
O RSS foi extinto em 1975, deixando de exitir qualquer unidade mobilizadora do Serviço de Saúde no Exército Português.
Em 1981 será criado o Batalhão do Serviço de Saúde, aquartelado em Setúbal. Em 1993, o BSS foi transferido para Coimbra. Na sequência da reorganização do Exército de 2006, o BSS foi extinto.
Um dúvida: a formação (instrução de especialidade) dos nossos furriéis enfermeiros, 1ºs cabos auxiliares de enfermeiros, e soldados maqueiros (ou de primeiros socorros) era só feita no RSS, de Coimbra, ou também nos hospitais militares de Lisboa, Coimbra e Porto ?
Enviar um comentário