segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)


Mulheres, bajudas e crianças na fonte.
Nhabijões, Bambadinca.

© Luís Moreira (2005). Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

Texto de Virgínio Briote:

Caro Luís Graça,

Descobri há pouco tempo o seu interessante blogue. Todos os dias à noite passo por ele e vou-me actualizando, lembrando aqueles tempos. Passei também por aquelas terras. Fui mobilizado, em rendição individual, para a Guiné em Janeiro de 65, para um batalhão que tinha participado na Op Tridente, na Ilha do Como (1), e que mais tarde esteve em quadrícula, sediado em Farim.

Fui colocado em Cuntima, na fronteira norte (2). E, quando o Batalhão se preparava para regressar, ingressei nos comandos em Brá. Corri com o meu grupo a Guiné quase toda. Também fui a Satecuta, ao Galo Corubal (3) e por lá andei 19 dias, na época das chuvas.

Tenho muita coisa escrita, coisas que guardei para mim, que fechei numa mala, quase durante 40 anos. Envio-lhe uma história que ouvi lá.

Um abraço,
V. Briote
_____________

ANSUMANE, O CAÇADOR DE CROCODILOS

A agitação interior que eu sentia, miudinha, contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio.
- Boa noite, patrão! - O Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes.
- Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?

Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo. A agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu.
- O que é aquilo, Braima?
- Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo. Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora...

... Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres. Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar, começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região.

Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe.

Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda.

Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado.
- Tens que ser minha!.
- Não posso, Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou!
- Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei!
- É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher -. Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir:
- Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar:
- Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane.
- Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos!

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse.
- Kadi, Kadi! - A voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria?

A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii…um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se!

Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse!

Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar.

Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar!

Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

... Quando Braima acabou a história, fixei melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar.

O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão! Braima respondeu com um prolongado:
- Eh! eeeeh! - E estalou repetidamente com a língua…
- Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! - Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida (4).

Virgínio Briote
____________

Notas de L.G.

(1) No sudoeste da Guiné, na região de Tombali, abaixo de Catió. A batalha do Como, em 1964, foi um dos momentos mais dramáticos da guerra colonial.

(2) Cuntima ou Cuntim, a oeste de Pirada, na zona nordeste da Guiné ?

(3) A nordestse do Xitole, regulado do Corubal. Vd. anterior post sobre a Op Lança Afiada (Março de 1969).

(4) Para quem gosta dos belíssimos contos tradicionais da Guiné-Bissau, aqui mais alguns, que encontrei no sítio do Instituto de Marquês Valle-Flor, uma ONG muito activa ligada a projectos de cooperação (incluindo o Projecto Guileje).

"O Iran e a Noiva" > Um conto tradicional adaptado pela EB 2/3 da Baixa da Banheira nº3.

«Assim a cabra se salvou duma morte certa» > Um conto enviado pela EB 2.3/S Miguel Torga, em Sabrosa.

«A Assembleia do Reino Animal» > História enviada pela Escola nº53, de Sacavém.

"A Pedra Sagrada" > Uma história de um lobo esfomeado contada pelo povo guineense.

"Tu não podes comigo!" > Uma história da Guiné-Bissau (em duas versões)

Sem comentários: