segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo



Guiné > Região de Tombali > Pendão da CCAÇ 728, Os Palmeirins (1964/66)

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2006). Direitos reservados.




VI Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66). Jurista de formação, está reformado da CGD. Hoje reparte o seu tempo entre Lisboa, Aveiro, Berlim... e, mais recentemente, a blogosfera, o nosso blogue (1) .


2.8. O Capitão Morato, o novo comandante

Pouco antes do meio dia, chegava a lancha costumeira da água de Catió. Era uma tarefa desejada pela rapaziada, apesar da casca de noz em que seguiam, Corubal (2) fora, através de margens densas de arvoredo.

Umas horas na vila de Catió davam para uma escapadela furtiva às tabancas…ver gente apetecida.

Um indivíduo estranho vinha com eles. Muito aprumado, no seu caqui amarelo, conservava ainda a cor branca da metrópole. Viera, de propósito, de lá, para render, lesta, a baixa escandalosa do capitão acobardado. Aos comandos militares, convinha abafar, depressa, aquele gesto de rebeldia …
- É o novo comandante!

A notícia espalhou-se inflamada. Toda a gente acudiu a ver o novo capitão. É da arma de cavalaria. Não se sabe porquê. Tem aspecto sereno e agradável. Por dentro deve estar apardalado com o espectáculo nada confortável que o esperou.

Naturalmente sorridente, depressa cativou a companhia. Já não é maçarico na guerra. Cumpriu uma missão em Angola. Inspira confiança. Foi guardar o saco de viagem com as suas coisitas, na tenda vaga do comando e seguiu-se logo o almoço.

A apreensão natural vai-se desfazendo com a abertura comedida que demonstra. Uns dias depois, vê-se bem que o pessoal anda mais sereno. A sua linha de comando passa, sobretudo, pelo conforto e pela segurança. Depressa se soube que era homem de certa influência nos comandos de Bissau, ao contrário do capitão anterior.

Por isso, as visitas da avioneta tornaram-se mais frequentes e a qualidade de vida melhorou.
O material necessário às novas casernas iniciadas sob a orientação de um homem da arte, o cabo corneteiro do meu pelotão, o 49, começou a chegar.

O pessoal entusiasmou-se e em menos de um mês estavam erguidas as três casernas, em cimento armado e tijolo. Um quarto para os alferes e um quarto para os sargentos, mais um bar.
Até parecia um quartel verdadeiro.

A inauguração ficou na história. Uma festa de arromba. Uma vitela apareceu de Catió a regalar com o perfume dos seus ricos bifes, o rancho da rapaziada e ainda deu para uma vitelada à padeiro para a mesa dos oficiais e sargentos. O vinho tinto do barril e a cerveja correram desprendidos.

O comandante bem recomendou cautela aos mais prudentes, não fosse o diabo tecê-las… Foi o bastante, mas não impediu o impulso de alguns mais entusiasmados…mesmo dentro dos alferes.

O Sasso, por exemplo, percorreu todo o caminho da festança, com fados e desgarradas, e acabou numa crise de metafísica e pranto, aos meus pés.
- Eh! Gomes, não sabes como invejo a tua fé…Para mim, só vejo o nada e desespero à minha frente…

Nesse dia, até o Gonçalves cantou pela sua passarinho…de Campo Maior e, com o gáudio de todos, em especial, os do seu pelotão, até suplicou ajuda para saltar um simples rego de água, ao lado do bar…
- Nah! É o Geba, com jacarés…exclamava ele, cambaleante, mas convencido e de olhos a reluzir.
Para não falar do furriel Gomes e do Brás, dois castiços tripeiros de gema.


2.9. Capitão Silva e o pacto com o Diabo


A presença do capitão Morato, na 728, foi passageira, infelizmente. Foi só enquanto encontravam o verdadeiro sucessor do capitão que disse não. Levou bastante tempo. A tal ponto que a Companhia viu com desgosto sair aquele oficial, sereno e seguro, que, insensívelmente, levaria todos, até onde quisesse. Quem viria depois dele?

A cena voltou a repetir-se. A minúscula lancha da água, uma vez mais, foi portadora de um novo capitão, certo dia, de manhã. Desta vez, porém, a Companhia apareceu a cumprimentá-lo e a dar as boas vindas, devidamente formada na parada do quartel.

O aspecto jovem do recém-chegado e o seu ar desafectado contribuiram, em muito, para a bonita recepção que aconteceu. A Companhia compreendeu bem a ida embora do capitão Morato e recebeu, de braços abertos, o definitivo sucessor do valentão das paradas de Évora, do outro, o desaparecido…

Uma semana de sobreposição deu para se trocarem o testemunho, entre ambos. Habituada à dureza e distância do desertor capitão, era difícil piorar, qualquer que fosse a mudança. Mas, o capitão Silva, foi, de facto, bem acolhido, só pela sua maneira de ser. Desafectado, acessível, aprumado e responsável. Não custou nada a ser encarado como o nosso definitivo comandante. E foi-o…

O seu programa foi manter o que estava montado e enriquecer o nosso convívio e bem-estar.
Sobreviver era preciso…acima de tudo. A solidão era, rigorosamente, total. Duzentos homens livres, mas, encarcerados numa ilha, dentro de arame farpado, dispensando bem a visita dos vizinhos…

Olhar a mata cerrada, 500 m à frente, em cada manhã, era o nosso alívio. Cada noite, um longo pesadelo. Não se sabia o dia nem a hora… para um ataque, que sabíamos bem ter de aguentar sozinhos… Os reforços ficavam longe, em Bissau… Catió nada poderia fazer, para além de flagelar com a sua artilharia pesada, fixa. O que era muito pouco.

Os meses foram-se passando, na mesma rotina, alumiados apenas pela avioneta do correio que havia de chegar… Podia faltar tudo. Menos o correio… Tudo parava, quando se ouvia ao longe, no alto das nuvens, do céu, sempre pardacento, o sonoro roncar da Dornier…

Se o tempo estava bom, a companhia inteira corria em rebanho, ao aeroporto. Só de ver o camarada piloto, vindo de Bissau, terra considerada… livre, animava a rapaziada. Os sacos do correio eram trazidos, em triunfo, pelo cortejo de olhos brilhantes, mas indecisos. Coitados dos que nada recebiam… No centro da parada, era feita a chamada. Um silêncio total. A cada nome, mais um que se afastava, pressuroso.

Na hora seguinte, a companhia, do capitão ao corneteiro, ficava deleitada com as letritas que lhes segredavam os seus… Longo silêncio, seguido de uma brisa de ar fresco nas almas bem saudosas. Ali, é que se via a fortuna da amizade, que pode caber num simpes papelito, uma grama de papel, o aerograma!…

Dias depois, o tão esperado, aconteceu. Uma salva de metralhadora, saída da fauces da mata sombria, foi o cornetim da alvorada. Estremunhados, toda a companhia correu para os abrigos. Pelas fendas frágeis da paliçada tenra de palmeiras, as nossas G-3 desfecharam torrentes de metralha sobre a mata atrevida.

Fez-se silêncio…Nada vinha de lá. Só a desconfiança da rapaziada os manteve em alerta… As nuvens do terror tinham calado…e o sol da bonança começou a raiar. Os ânimos ficaram exaltados… Foi apenas um estremecimento, sadio, que deu para despertar e quebrar a monotonia da cadência dos dias que iam passando, serôdios.

De novo, a 728 caíu na paz desesperante do dia a dia, sem sobressaltos. Nada pior para os nervos dos combatentes do que essa modorra morna…

Finalmente, em surdina, correu a explicação. Nos quadros da companhia, havia um elemento que era filho de um grande comerciante instalado em Bissau, desde os bons velhos tempos, da África-Brasil… E lá continuava, rendendo ricos tributos para os dois lados…

A ideia fantasista de que enquanto lá estivesse o nosso vague-mestre, nada nos aconteceria, serenou o ânimos da felizarda companhia . E, assim, foi. Certo dia, um telex do alto comando de Bissau tudo mudou… A 728, já ambientada no terreno, estava madura para a peleja. Teve de avançar para Catió, em substituição da castigada 556, a companhia de intervenção, adstrita ao batalhão

2.10. Os Treze Meses de Pesadelo

Catió, depois de Bissau, seria, na zona sul da Guiné, o centro populacional e administrativo mais importante.

Situada num exacto ponto de confluência das vias fluviais, marítimas e terrestres poderia ser considerada a capital da parte sul aonde acudiam, para distribuição, as mercadorias e toda a produção agrícola da região.

A presença administrativa, escolar e eclesiástica eram bem representadas, a seu modo. Um administrador e a sua mansão colonial era o regente máximo, polivalente, nas áreas administrativas e judiciais; um administrador apostólico regia a presença da igreja católica tradicional, numa igreja bem enquadrada e evidenciada no centro da vila, perto da administração civil; um centro de saúde, razoável, com enfermeiro permanente; uma meia dúzia de casas comerciais, onde sobressaía um grande armazém comecial, generalista e uns dois bares por conta de emigrantes da longínqua Ásia Menor, sirianos e libaneses, o Tombali e o ….

Uma avenida central, coberta de grandes mangueiras arrancava da praça da administração e do largo da igreja e avançava, por entre matas densas rumo às distantes terras de Bedanda, Guilege, depois de atravessar um campo de bolanhas e as tabancas onde reinava o soba real .

As tropas estavam aquarteladas nos edifícios do centro de saúde e na casa de um grande comerciante.

O comando do batalhão entregue a um tenente coronel, os serviços de disciplina e de administração militar; uma força fixa de artilharia e outra de cavalaria faziam a guarda permanente do batalhão e a flagelação à distância dos quartéis turras e da sua movimentação dentro das matas, além do apoio às diversas acções desenvolvidas em redor.

A companhia de infantaria, com os seus três pelotões era a guarda avançada, sempre pronta a sair, só ou enquadrada por outras forças da zona, em acções concertadas, sobre objectivos bem determinados.

À minha companhia competiria esse papel de intervenção permanente, durante os tempos mais próximos. O contacto real com o inimigo iria ser uma constante. Agora é que iam ser elas…
Seja o que Deus quiser…

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Notas de L.G.:


(1) Vd. posts anteriores:





(2) Lapso do autor, que queria dizer possivelmente Rio Cumbijã e não Rio Corubal... A Ilha do Como é banhada a sul, pelo Oceano Atlântico, e a leste pelo Rio Cumbijã (Vd. carta geral da província; vd. carta de Catió e carta de Caiar).

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