terça-feira, 12 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú


Dar um aspecto mínimo de conforto e segurança ao local, onde haveríamos de permanecer cerca de 2 anos, foi a primeira decisão, e em boa hora tomada, pelo comando da Companhia. Recordo o entusiasmo com que todos, desde o responsável máximo até ao elemento mais modesto, tomou em ombros essa tarefa, já que não havia tempo a perder: construção de abrigos com cobertura de palmeiras, à prova de morteiros e LGF, junto das casernas e quartos; colocação de chuveiros feitos de bidões em espaço aberto para todos; abertura de poços com água suficiente para as necessidades, que eram muitas; compra e instalação de um gerador de electricidade; postes de iluminação eléctrica em toda a extensão à volta do quartel que nos permitia ver até bem dentro da mata, que fora desbastada num perímetro considerável; um cais acostável e uma pista para aeronaves larga e com extensão suficiente; um forno de cozer pão e outras infra-estruturas melhoradas ou feitas de novo. Será de todo imperioso realçar o esforço hercúleo dispendido por todos os elementos da Companhia, sem as máquinas e as ferramentas eléctricas ou mecânicas que hoje existem, mas à força de braços e equipamento rudimentar, para que a nossa “fortaleza”, como lhe chamo, nos garantisse o mínimo de segurança e fosse um lugar, de certo modo, agradável para se viver.

Enfim, foram tomadas medidas que se provaram fundamentais para o êxito da missão. A frase “VISITE CABEDÚ”, pintada nos telhados das casernas, funcionou durante todo o tempo como chamariz demonstrativo da simpatia com que seriam recebidas todas as pessoas que nos visitassem. São estes pequenos pormenores que, por vezes, fazem a diferença, pelos efeitos positivos que se conseguem. Todos os pilotos achavam graça ao convite e era a Cabedú que sempre iam de bom grado.

Foto 3 > “Fortaleza” de Cabedú

i-Acções militares.

Os primeiros tempos envolvem normalmente um misto de curiosidade e algum receio da realidade existente, mas não conhecida em toda a sua extensão, mais a mais, num contexto de guerra de guerrilha, que começava a tornar-se complicada para as tropas portuguesas, em todo o território da então província da Guiné. E isso notava-se nas acções que voluntariamente empreendíamos ou a que éramos forçados a responder. Pertencíamos ao famoso grupo dos “maçaricos” (nome do conhecido pássaro, muito abundante na Guiné, de cor esverdeada, como o nosso fato camuflado, ainda novo e limpo). Denominação que, evidentemente, repudiávamos, por ser um insulto à nossa condição de militares “experimentados” e “corajosos”. Todavia, cumprindo as regras assumidas na gíria militar, ainda levaria algum tempo até que deixássemos de o ser.

Foto 4 > Visita do Comandante-Chefe a Cabedú: o General Schulz com o Cap Ritto

Pouco tempo após a nossa chegada começámos a ser “visitados” por grupos de guerrilheiros, como se estivessem ansiosos por nos darem as “boas vindas”. Fustigavam, durante horas, o quartel, já com armas de calibre apreciável, que incluíam o famoso morteiro 82 de fabrico russo, criando algum alvoroço nos primeiros tempos, mas que, passada a surpresa do primeiro choque, se transformou em rotina, apesar de nos obrigarem a uma resposta à altura das circunstâncias, que, normalmente, se saldava por alguns mortos deixados no campo de batalha, da parte do inimigo, acompanhados de muito material, igualmente abandonado. Apesar deste cenário se repetir ao longo do tempo em que permanecemos em Cabedú, as vítimas do nosso lado foram mínimas, não obstante numa dessas investidas, um soldado africano ter sido atingido mortalmente. Não me recordo de mais situações dignas de registo.

Num dos ataques ao nosso aquartelamento, tomou parte, como sabemos, o actual Presidente da Guiné- Bissau, Nino Vieira, na altura comandante, penso, da região sul, na estrutura da guerrilha. Foi ferido e veio um helicóptero da vizinha Guiné Conacri recuperá-lo num local bem perto das nossas posições. Foi visível a aeronave baixar e levantar de seguida, com toda a certeza levando a bordo o Nino, na altura já uma personalidade importante na hierarquia do seu partido. Comunicado o facto ao comando de Bissau, foi mandado, se não estou equivocado, um avião de combate em sua perseguição que, no entanto, não chegou a tempo de interceptar o hélio, escapando assim Nino Vieira de ter caído nas nossas mãos. Uma guerra faz-se de êxitos e fracassos, mas também de acontecimentos curiosos e este foi, sem dúvida, um deles.

Foto 5 > Grupo de Combate em acção de reconhecimento

As flagelações ao nosso quartel eram feitas sempre de noite e a altas horas. Querendo surpreender-nos a horas mortas, pensando que a vigilância seria menor da nossa parte, a verdade é que esses ataques, que eram feitos com muitos efectivos e com grande quantidade de material, nunca constituíram um grande problema para a nossa defesa. O sistema estava bem montado, mesmo antes de termos o pelotão de artilharia, que a determinada altura veio reforçar a estrutura militar de Cabedú. Eram sempre repelidos com perdas importantes de homens e de material, visíveis ao nascer do dia, quando se fazia o reconhecimento dos despojos da refrega, deixados no terreno. A partir do conhecimento de que o inimigo tinha morteiros, e aconteceu pouco tempo após a nossa chegada a Cabedú, a instabilidade emocional das nossas tropas cresceu um pouco, na medida em que eles podiam ter feito muito estragos, se a precisão de tiro fosse melhor, o que, felizmente, nunca aconteceu.

A zona de intervenção da nossa Companhia era, como todos sabemos, das mais activas, no que à guerrilha diz respeito, dado os dois grandes centros de concentração de efectivos do PAIGC, Ilha do Como e Cantanhês, (onde, alternadamente, tiveram sempre grande domínio), se encontrarem perto da nossa base. Foi um problema com que tivemos de conviver, durante todo o tempo da nossa permanência aí, com soluções à medida das necessidades.

Inúmeras operações militares foram desencadeadas pela nossa Companhia, quer individualmente (só a 555 ou alguns dos seus pelotões), quer em conjunto com os pára-quedistas, fuzileiros, marinha e força aérea. A operação Tornado, em plena mata do Cantanhês, foi disso um exemplo, na medida em que envolveu toda essa panóplia de efectivos, durante alguns dias. Recordo a Companhia de fuzileiros, comandada pelo já famoso (nem sempre pelos melhores motivos) 1º tenente Alpoim Calvão, militar que, mais tarde, no princípio da década de 70, já no tempo do General Spínola governador e comandante-chefe, se haveria de destacar ao comandar a força que invadiu a Guiné-Conacri e libertou os militares portugueses que estavam nas prisões de Sekou Touré, não conseguindo, no entanto, todos os objectivos a que se propusera.

Tenho presente ainda duas acções militares, de alguma envergadura, em que tomámos parte: a operação Remate que foi desencadeada pela nossa Companhia em conjunto com os Fuzileiros navais e que correu bem, pelo menos no que diz respeito aos nossos militares; igualmente me recordo da operação Tufão, aqui com a Força Aérea e a Marinha, não havendo, mais uma vez, danos físicos para a Companhia.

Chegados a Cabedú, demos conta de uma grande operação na Ilha do Como, de que ouvíamos apenas os rebentamentos e tiros constantes e as aeronaves a cruzarem o espaço aéreo do nosso aquartelamento de Cabedú. Soube tratar-se da importante operação Tridente, uma das maiores feitas na guerra da Guiné, em que tomaram parte forças do Exército, Marinha e Força Aérea. Como o teatro de operações não era muito distante da nossa zona, tivemos oportunidade de acompanhar, embora à distância, o desenrolar desses combates, servindo, inclusivamente, para ficarmos cientes, se é que ainda não estávamos, da zona perigosa em que a Companhia estava inserida na função de quadrícula. Porém, lá no fundo, pelo menos alguns de nós, estávamos a gostar e sentíamo-nos, de certo modo, vingados com o tratamento impiedoso que estavam a ter os guerrilheiros do PAIGC, que nos tinham atacado poucos dias antes, ao passarmos de barco em frente à Ilha. Aliás, foi a partir daí que o Como deixou de ser uma zona importante, como local de refúgio, e que os independentistas ocuparam grande parte do Cantanhês (vidè Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes), trazendo complicações para os aquartelamentos de Bedanda, Catió e Cabedú. (Tinha que sobrar para nós!.)

Foto 6 > Içar da bandeira portuguesa em Cabedú

Na minha modesta opinião, umas das razões - talvez a mais determinante - no relativo sucesso da Companhia ter regressado com um número mínimo de baixas, sem deixar de cumprir as missões que lhe foram atribuídas, foi o bom senso demonstrado pelo seu comandante, ao longo de toda a comissão, e que se traduziu em nunca nos ter arrastado levianamente para situações que poderiam ser complicadas, e até com desfechos dramáticos, como aconteceu, infelizmente, com companheiros de outras companhias, em vários pontos da Guiné. Cumprir com seriedade, sem falsos heroísmos, foi o lema, com o qual todos saímos beneficiados. É o que penso, admitindo que outra ou outras razões se sobreponham à que aqui expresso.

Em dois anos foram muitas, como acima refiro, as acções militares desencadeadas por nós, algumas delas não deixando sequer memória, por serem de pouco aparato ou envergadura, ou então por terem corrido bem, não deixando sequelas nos efectivos comandados por António Ritto. De qualquer modo, ponderando toda a missão, na área de intervenção do nosso grupo, os resultados são, sem dúvida, positivos. Nem tudo do que aconteceu nos podemos orgulhar (é assim em todas as guerras); todavia, dadas as circunstância em que decorria a nossa acção, o que a Companhia fez, seguindo as orientações de Lisboa através de Bissau, é de molde a deixar-nos minimamente com o sentimento do dever cumprido.

ii-Relações sociais

No aspecto social – relação dos militares com as populações das tabancas vizinhas – os contactos tiveram sempre um carácter amistoso. Havia a relação institucional do comando da Companhia, no âmbito da chamada acção psicossocial, com os “homens grandes” representantes das etnias que constituíam a sociedade indígena, que estava, como sabemos, muito dependente da tropa. Penso que essa relação funcionou sempre bem e até com frutos para o nosso lado. Porém, o que aqui merece ser realçado, digamos assim, é o relacionamento das populações com todos os elementos da Companhia. E esse, como se disse, funcionou sempre bem, tirando alguns, poucos, episódios desagradáveis, que foram sanados rapidamente (lembremos até alguns castigos bastantes duros aplicados a companheiros nossos, por assédio sexual sobre bajudas, usando a força da sua condição de militares).

Foto 7 > Convívio entre jovens das duas comunidades

De entre todas aquelas pessoas havia duas figuras para mim incontornáveis, representantes de etnias muito significativas da localidade: o velho Mansoa, de etnia balanta, e Seco Aidara, líder influente dos Sossos. Outros líderes havia, mas importa falar um pouco sobre estas duas personalidades interessantes, que me marcaram bastante, embora de modos diferentes. Mansoa, com muitas “chuvas” contadas, com um rol impressionante de mulheres no activo, ao longo da sua vida (a poligamia era normalmente praticada), em que a mais nova do grupo que então pertencia ao seu “harém” era uma jovem que, à vontade, podia ser sua neta, bebia “cana” como nós bebemos água, o que lhe garantia a embriaguês permanente. Diziam os seus amigos ou vizinhos que o velho homem que um dia (que ele já não conseguia recordar) chegou a Cabedú, vindo da cidade de Mansoa – daí a sua alcunha – só tinha apanhado uma bebedeira, que ele conseguia manter com toda a boa disposição e eficácia, ao longo da sua já longa vida. Claro que Mansoa teria outras qualidades, que o tornariam útil no seio da sua comunidade, pois a sua importância não derivaria apenas das aqui referidas, mas que nós desconhecíamos.

Seco Aidara, de um comportamento social irrepreensível, era, provavelmente, a pessoa que o comandante mais ouvia e com quem mais contava para um bom relacionamento, que, ao fim e ao cabo, sempre se desenvolveu entre os militares e a comunidade indígena. Seguidor da região islamita (os balantas eram animistas), já tinha ido a Meca, o que lhe outorgava um estatuto que nem todos possuíam. Este homem, recordo, teve sempre a preocupação dum relacionamento próximo, quer com o comando da Companhia, quer mesmo com muitos outros militares. Sabendo da minha paixão pela caça, um dia foi ao quartel oferecer-me uma perdiz, que tinha caçado na sua plantação de mancarra. Fiquei-lhe eternamente grato, como devem calcular, pois merecer uma honraria destas não acontecia todos os dias.

Estes dois personagens despertaram-me sempre a atenção, por razões particulares e nem sempre coincidentes. Todavia, outros ”homens grandes”, como já referi, havia, e com importância no seu meio: Lamina Sissi, Braima Camará, Bacra e muitos outros, que exerciam autoridade nas suas comunidades.

As bajudas (jovens ainda virgens) e as mulheres mais velhas com os seus trajes coloridos e, por vezes, exóticos, davam um ar festivo ao quartel, durante as suas visitas para vender produtos e comprar panos e outros artigos necessários à sua vida, nas casas comerciais (Gouveia e Ultramarina) que se mantinham abertas no interior das nossas instalações. Jovens do sexo masculino ou mesmo homens novos escasseavam nas tabancas, o que teria a ver com o recrutamento (muitas vezes à força), que a guerrilha fazia, principalmente para tarefas de apoio logístico aos grupos de combate.

A este respeito, convém lembrar que a situação das populações civis que viviam no mato, perto das bases da guerrilha não era, nem de perto nem de longe, satisfatória. Se colaboravam connosco sofriam represálias, de certo modo violentas, dos independentistas; se a sua atitude era de apoio à causa nacionalista, tinham-nos “à perna”. Restava-lhes manter o equilíbrio, sem se comprometerem muito, mas dando a entender a um lado e ao outro que estavam com eles.

Foto 8 > Militares entre a comunidade indígena

De entre os produtos que nos eram vendidos, saliente-se animais criados nas suas tabancas, como porcos, carneiros, mas também camarão e outros mariscos recolhidos nas bolanhas, aquando da baixa-mar. Se se tratava de Balantas, o dinheiro (pesos) era, quase na sua totalidade, gasto na compra de “cana”, bebida no local e levada para casa, onde afogavam as mágoas que os atormentavam.

Todo este intercâmbio servia as duas comunidades, no que respeita à vida do dia-a-dia das pessoas envolvidas, mas também tinha outro efeito, para mim mais importante, que era o facto de estes contactos servirem para manterem a nossa sanidade mental em bom estado, em virtude de induzirem um ambiente de alguma normalidade, como contraponto ao isolamento a que estávamos sujeitos. É preciso não esquecer, e penso que já foi referido, que alguns de nós entraram em depressão: estou a lembrar-me do nosso companheiro “Toirão” (Eleutério dos Santos Marçal) que, atingindo um nível demencial relevante, fugiu para a margem dum rio, relativamente distante do quartel, e só foi localizado com a ajuda de um helicóptero. Foram momentos de muita preocupação para todos nós, que, embora tristes com a situação do nosso companheiro, terminaram em bem.

iii-Actividade lúdica

O divertimento é sempre muito importante, seja em que situação for que se encontrem as pessoas que dele podem usufruir. Em situações de guerra, então, é fundamental ter-se momentos de descontracção e lazer, que ajudem a suportar outros de enorme responsabilidade e preocupação. Estes momentos de disponibilidade eram sempre vividos com uma grande entrega, de modo a tirar deles o máximo de prazer e bem-estar. Numa comunidade de cerca de centena e meia de pessoas, com alguma diversidade no âmbito cultural e nos interesses sociais, dificilmente se consegue uma identidade total entre todos os seus elementos. De modo que se formavam sempre grupinhos, maiores ou menores que, pela maior identidade de pontos de vista, se sentiam mais próximos. Jogos de cartas pela noite fora, jogos de futebol, em que, muitas vezes, as equipas se faziam tendo como base a simpatia pelos grandes clubes portugueses; outras por pelotões, e até por especialidade!.. Tudo servia, o importante era jogar.

Não me esqueço das conversas (cá estão os tais grupinhos que referi) até tarde, em que se falava de tudo: de cinema, de música (ter em conta que os Beatles apareceram nessa altura), de política (pouco, que as paredes tinham ouvidos), de mulheres, claro. Passeios pela parada, em que se discutiam maneiras de salvar o planeta, de vivermos (todos os seres humanos) em paz e felicidade, de acabar com as injustiças no mundo. A juventude tem destas coisas: é sempre bem intencionada, solidária, mas infinitamente ingénua. O cepticismo, o calculismo e, sobretudo, o realismo chegam mais tarde.

Foto 9 > O descanso dos “guerreiros”

Ainda acerca dos momentos de ócio, tenho uma vaga ideia, correndo o risco de estar enganado, de que, pelos menos, uma vez fez-se um jogo com jovens das tabancas, os que o PAIGC ainda considerava muito novos para levar para a mata.

Tanto talento era exibido nessas “peladinhas” e quantos “fora de série” se perderam pelo caminho!..No que respeita aos jovens indígenas, observava-se claramente um jeito inato para o desporto. A etnia africana, no seu conjunto, foi sempre, e será, um alfobre de predestinados para o futebol. Todavia, e agora centrando-me nos nossos camaradas, havia muita gente com jeito para a bola. Não me lembro de todos os que, nas minhas observações (era para isso que eu tinha mais jeito), referenciei como tendo algumas qualidades para a prática do futebol, mas, pelo menos, o Nunes (condutor), o Júlio Fontes, o João de Matos (apesar de ter mais queda para o rugby), o José Oliveira, o “Mestiço” (João Manuel Moreira da Silva) e o “Porto” (António da Costa Baptista) não eram toscos de todo.

A caça, que desde os primórdios da humanidade sempre ocupou os homens, exerce um fascínio muito grande em muita gente que, desde a juventude, experimentou esse desporto, hoje cada vez menos interessante, dada a escassez de espécies cinegéticas. Por isso, alguns levaram de cá esse vício e, logo que foi possível, ei-los a demonstrar as suas aptidões na caça às gazelas, galinhas de mato, perdizes, patos e pombos verdes. O Joaquim Rézio, eu próprio, o “Bigodes” (Agostinho Félix), o Vidaúl Andrade e não sei se mais alguém, demos algum desbaste nessas espécies, para nosso gáudio mas, sobretudo, para satisfação de todos, em virtude do rancho melhorado em dias de caça grossa.

Foto 10 > Está visto que o almoço do domingo seguinte foi arroz de pato..

A alimentação do espírito também conta muito, particularmente para os crentes, sobretudo em situações de aperto, que o mesmo é dizer, de perigo iminente, a que estávamos expostos. O capelão do batalhão (padre Pinho, se não estou equivocado), sedeado em Catió, de quando em vez, lá estava em Cabedú a celebrar missa ao ar livre, em plena parada, para muitos militares que, normalmente, seguiam o sacerdote com uma certa atenção.

E quem não se lembra dos filmes que vimos em sessões, igualmente, ao ar livre, e com agrado geral? O Costa do Castelo, o Pátio das Cantigas, o Leão da Estrela, com actores que ainda hoje fazem as delícias de quem gosta de cinema: António Silva, Ribeirinho, Vasco Santana, Milú e tantos outros talentos portugueses, que fazem corar de vergonha alguns que hoje exercem essa profissão. Eram, sem sombra de dúvida, momentos de grande satisfação e divertimento para mais de uma centena de pessoas, entre as quais havia quem nunca tivesse visto um filme.

A chegada do barco com os mantimentos era sempre recebida com grande alvoroço e emoção. Pudera, era a sobrevivência garantida por mais um mês!...E o correio, com os “bate-estradas”, trazendo notícias da família, e as cartas, em papel de seda, da namorada ou da madrinha de guerra? Tenho presente a imagem da rapaziada à volta do Encarnação, que lia o nome ou número do militar a quem se dirigia a missiva: quantos saltos de alegria e quantas lágrimas teimosas a despontarem, quando a esperada notícia não chegava!...No dia da aterragem da avioneta, pilotada pelo Honório, pelo Melo ou outro qualquer piloto, que ia a Cabedú (dito por eles) sempre com muito agrado, olhava-se para o céu à hora prevista, procurando descortinar no horizonte qualquer pontinho que denunciasse a chegada iminente de algo que nos aquecesse a alma ou repusesse o ânimo perdido por dias de incerteza. Enfim, tentava-se “matar” o tempo o melhor possível, contando os dias, ou melhor, descontando-os no calendário, tendo na mente os momentos de fim de comissão.

Foto 11 > Chegada do correio: “assalto” da rapaziada, ávida de notícias, à avioneta

Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


Além disso, tínhamos direito a trinta dias de férias, que, normalmente, se gozavam na Metrópole, com a família, ou em Bissau. Houve muitos (a esmagadora maioria) que nem sequer as aproveitou e acabou por não sair de Cabedú, em todo o tempo da comissão. Uma viagem até Lisboa de avião ficava bastante dispendiosa, e havia a circunstância de o regresso à guerra, após as férias, ser muito penoso, de modo que poucos utilizaram essa alternativa. Passá-las em Bissau também era agradável e não havia os inconvenientes apontados. Conseguia-se, se assim o desejássemos, alojamento gratuito nas muitas instalações militares que havia na capital da Província, ou então tínhamos hotel ou pensões, a preços não muito elevados. No que a mim diz respeito, as férias do primeiro ano foram passadas na Metrópole com a família; as segundas, em Bissau, que, se bem me recordo, foram óptimas, e guardo delas boas recordações.

Para isso, claro, tínhamos que sair de Cabedú. E como? Conseguia-se com certa facilidade transporte para Bissau na avioneta que ia levar o correio ou fazer outro serviço, marcando com antecedência, já que havia sempre muita concorrência nos quartéis do mato onde a aeronave fazia escala. Nesse aspecto, os pilotos eram normalmente atenciosos para o pessoal de Cabedú, e raramente negavam uma boleia a quem dela necessitasse. Era, por sinal, um passeio sempre muito agradável o que se fazia de avioneta, de onde se desfrutava uma deslumbrante vista sobre o território da Guiné, com a sua vegetação compacta e completamente verde, recortada pelos inúmeros canais e rios e salpicada de bolanhas e tabancas, que lhe davam um aspecto curioso, mas infinitamente belo.
Igualmente se podia viajar para a capital da Província de barco (batelão ou lancha da marinha), que, pelo menos uma vez por mês, tocava o nosso porto. Porém, pelo tempo que demorava e pela perigosidade que oferecia (lembremos o ataque em frente à Ilha do Como), não era aconselhável, e raramente se optava por este meio.

Mesmo em ambiente de guerra se podem fazer coisas que, em princípio, estão vocacionadas para tempos de paz e de estabilidade emocional dos protagonistas. À partida seria impensável que em plena zona de conflito, no interior da mata africana, se poderia improvisar uma escola, em que os professores e os alunos, nas horas de descanso dos seus afazeres militares, se dedicassem (uns a ensinar, outros a aprender) a essa nobre tarefa de tornar homens mais úteis à sociedade. Estimulados pelo comandante da Companhia, criou-se um pequeno corpo de professores, oriundos do quadro de graduados, pessoas que na sua maioria, para não dizer na sua totalidade, nunca tinham exercido essa função, estando, no entanto, à altura de ensinar as matérias exigidas.

Eu próprio, o Joaquim Moura Lopes, o Joaquim Rézio, o António Ferreira, de entre um conjunto de elementos que, francamente, não consigo identificar na totalidade, dava o melhor de si para, como disse, valorizar aqueles homens que, nas circunstâncias descritas, quiseram aproveitar denodadamente o que lhes era oferecido.

Então, apareceram soldados que pretendiam completar a instrução primária (4ª classe) e até cabos que se candidataram a fazer o primeiro ciclo (2º ano) dos liceus. É certo que uma parte desistiu ou não conseguiu passar no exame; porém, o resultado foi francamente positivo. A esta distância temporal é praticamente impossível contabilizar com exactidão o número dos que concluíram com êxito os seus estudos. Todavia, penso que posso afirmar, sem receio de faltar à verdade, que vários acabaram a instrução primária e, pelo menos, dois fizeram o 2º ano dos liceus: o Joaquim Flores Bispo e o José da Silva Correia.

Como é expectável, foi uma alegria muito grande para os principais interessados, aqueles que viram os seus esforços coroados de êxito, mas também para os que para isso contribuíram, quem ofereceu tempo do seu período de lazer para que isso fosse possível.

Os exames realizavam-se em Bissau, e para isso os nossos homens tinham que se deslocar à capital da Província, a fim de prestarem as respectivas provas.

Desconheço se mais alguma unidade sedeada no interior, em zona de guerra permanente, se mobilizou no sentido que acabo de descrever. Porém, se tal aconteceu, os casos afirmativos devem contar-se pelos dedos duma mão. Uma coisa era a tropa que estava em Bissau, essencialmente em funções administrativas, e que até podia frequentar aulas com professores diplomados, outra bem diferente era o que os nossos companheiros fizeram, em plena zona de guerrilha, nas situações físicas e psicológicas que todos conhecemos. Também nesse aspecto fomos diferentes: deve-se ao comandante, mas também, penso eu, ao bom grupo de militares que se conseguiu reunir.

Num dos capítulos deste trabalho farei referência a um dos elementos da pequena matilha (3 cães) sedeada no nosso quartel, concretamente ao sempre muito útil Galinheiro. Porém, de modo algum poderia deixar de falar desse carismático cão, verdadeiro líder dos seus pares, chamado Zorro. Era um bonito exemplar de cor branca, tamanho médio, meigo e companheiro de quem, no seu insondável critério canino, o merecesse. Nunca consegui compreender, confesso-o, por que este cão, já de uma idade avançada, só acompanhava com graduados. Como facilmente se entende, esta atitude garantia-lhe a hostilidade, mais ou menos velada, da esmagadora maioria da Companhia e o carinho dos poucos que faziam parte da sua selecção de amigos. Recordo com alguma saudade os passeios que com ele dei pelos terrenos adjacentes ao aquartelamento, mas, sobretudo, as noitadas de ronda às sentinelas que velavam pela nossa segurança, tendo como companhia o velho Zorro. Ele fazia questão de estar sempre por perto quando se iniciava essa importante tarefa, parecendo que conhecia a própria escala de serviço. Estes cães foram-nos legados pela anterior companhia e, do mesmo modo, os transmitimos a quem nos sucedeu em Cabedú.

(Continua)
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Nota de CV

(1) - Vd. Primeiro poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

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