segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedu
1963/65


1. Mensagem do nosso camarada Norberto Gomes da Costa, Mestre em História, enviada no dia 17 de Julho de 2008 e dirigida ao nosso Editor Luís Graça.

Meu caro Luís,

Vou enviar-te, então o texto de que te falei. É um trabalho despretensioso que tenta, na primeira pessoa, abordar a guerra pelo lado humano, relatando memórias soltas, sem qualquer preocupação cronológica, (neste caso, dum microcosmos constituido por uma companhia de cento e tal homens, inserida numa determinada região e que se relaciona com uma pequena, mas multi-étnica, comunidade indígena, referindo, ainda assim, pois era para isso que lá estávamos, algumas escaramuças mais complicadas. Aliás, tu como sociólogo e de reconhecidos méritos, também estás, estou certo, mais interessado nesse aspecto - e basta ver os blogs, ao aceitar testemunhos dos dois lados da barricada, para o comprovar - , do que na parte bélica (quem matou mais ou menos, quem ganhou ou perdeu).

O trabalho está dividido em capítulos que correspondem aos temas que decidi abordar, não tendo, apesar disso, esses capítulos, autonomia própria, pois fazem parte de um todo. Porém, o que tu e os nossos amigos que contigo colaboram na edição de textos decidirem está bem decidido. O texto já tem várias fotos integradas, umas estão relacionadas com os temas, outras nem por isso.

À parte, envio-te, como me pediste, duas fotografias minhas (uma desses tempos, outra de agora).

Para qualquer assunto que aches necessário entrar em contacto comigo, além do e-mail que conheces, o meu telefone e os meus telemóveis. (*)

Um abraço (já agora, um alfa bravo).
Norberto Costa



2. Memórias da CCAÇ 555 - Parte I



Guerra da Guiné > Memórias da CCAÇ 555 > Cabedú, 1963/65

por Norberto Gomes da Costa



Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


ÍNDICE

1 - Nota

2 - Introdução

3 - Guiné (1963/65)

4 - Cabedú


i-Acções Militares
ii-Relações Sociais
iii-Actividade Lúdica
iv-Alimentação
v-Acontecimentos Marcantes
vi-Dificuldades/Contras
vii-A despedida

5 - Conclusão

6 - Glossário

7 - Mapa da Guiné


1 - Nota


Por sugestão do nosso amigo capitão António Ritto (**), aventurei-me nesta “viagem” por terras da Guiné e, concretamente, por uma pequena localidade chamada Cabedú, no sul da Província, considerando o período temporal que vai dos fins de 1963 a Setembro de 1965, aquando da nossa estada aí, em tempo de guerra.

É de todo justo referir que o fiz com grande prazer. Foram cerca de dois anos de memórias que tive que procurar neste “arquivo” mental que, quer queiramos quer não, cada vez é mais fragmentário e, pior que isso, menos fiável.

Como digo na Introdução, a visão plasmada é a minha, as memórias foram aquelas que eu vivi, o quadro exposto é o que resulta da síntese que construí, enquanto militar da CCAÇ 555, e ainda guardo ao cabo deste quase meio século passado.

Refiro nomes, poucos, de companheiros que, duma maneira ou de outra, entram nas histórias que conto, ressalvando sempre, como é obvio, a omissão de outros, porventura tão ou mais intervenientes que estes, mas que se esfumaram (apenas nos acontecimentos, é claro) na poeira dos tempos.

A todos os companheiros dessa aventura e meus amigos (porque são todos meus amigos, quer constem ou não do documento que agora apresento), as minhas desculpas pelas eventuais insuficiências do trabalho, que são da minha inteira responsabilidade, e o meu muito obrigado.

Lisboa, Janeiro de 2008

Norberto Gomes da Costa


2. Introdução

O Estado Novo tinha como ponto de honra do seu programa político a conservação de todas as parcelas africanas integradas no todo nacional. Quando Salazar, no seu famoso discurso de Abril de 1961, afirmava que para Angola dever-se-ia “andar rapidamente e em força”, assumia, de maneira inequívoca, a intenção de jamais dar a independência aos territórios africanos ligados à Pátria Portuguesa.

Porém, o problema residia no facto de Portugal se encontrar, nesse aspecto, isolado, mesmo no contexto dos países da Europa Ocidental. Todos já tinham descolonizado e, como Salazar dizia, Portugal encontrava-se “orgulhosamente só”. Era inevitável a autodeterminação daqueles espaços e, como se constatou, era uma questão de tempo.

Nesse contexto, os movimentos independentistas apoiados, principalmente, pela União Soviética, pela China e outros países comunistas, preparavam-se para dar início às hostilidades, com o objectivo de tomar o poder pela força em Angola, Guiné e Moçambique. Em Março de 1961 rebenta a insurreição armada em Angola; em Janeiro de 1963, na Guiné; em Setembro de 1964, em Moçambique. Estava traçado o destino daquelas províncias ultramarinas portuguesas, como à altura se denominavam.

Este meu trabalho não pretende, de modo algum, fazer a história da guerra de África, nem tão pouco a da Guiné, mas tão só recuperar memórias da CCAÇ 555, memórias essas do dia-a-dia da Companhia, dos seus momentos difíceis, dos tempos de ócio, da vivência que cimentou a amizade e a solidariedade entre aquele grupo de jovens que um dia o destino quis que partissem para as bolanhas da Guiné, para defender um território que a História e o poder político diziam ser seu.

É um período temporal que vai do final de 1963 (o primeiro grupo chega a Cabedú nos últimos dias de 1963; o segundo e último, nos primeiros de 1964) a Setembro de 1965, partida para Bissau, a aguardar embarque para Lisboa.

Esta reflexão tenta distanciar-se, quanto possível, da relação institucional que todos mantínhamos com a Companhia, que pertencia ao batalhão que estava sedeado em Catió e que, por sua vez, estava enquadrado no sector sul, em última análise dependente do comando de Bissau. A história da Companhia, em certa medida, já foi feita e existe um texto, da autoria do capitão António Ritto, que trata pormenorizadamente todas as acções militares da CCAÇ 555, as relações institucionais com as autoridades civis das populações indígenas, toda a acção psicossocial desenvolvida, enfim, uma síntese do que foram, para o comando, os dois anos passados em terras da Guiné.

Por isso, chamo Memórias da CCAÇ 555 ao trabalho que me proponho desenvolver, memórias escritas, essencialmente, na primeira pessoa, soltas e não seguindo uma metodologia rígida, não cuidando de relatar tudo o que aconteceu – o que seria impossível, dado o espaço temporal que nos afasta dos acontecimentos (mais de 40 anos) -, dando uma visão, a minha visão, do que se passou, nas mais variadas situações do dia-a-dia, diversa com toda a certeza, em alguns aspectos, da que terá outro qualquer companheiro meu.

Estas memórias, que procuram não seguir a documentação amavelmente disponibilizada pelo comandante da Companhia, já que, como disse, esse trabalho já foi feito e bem feito, são baseadas recorrendo, quase exclusivamente, ao “arquivo” mental, que tento preservar, mas que, em cada ano que passa, se torna menos preciso. Ainda assim, e tendo como máxima que em história, com documentos escritos ou sem documentos escritos, não há certezas absolutas no discurso que se produz, procurarei a maior aproximação possível à realidade.

Se o conseguir, dar-me-ei por satisfeito. Falharei aqui e ali nos pormenores, mas o essencial está garantido, visto que as situações descritas aconteceram na realidade.


3. Guiné (1963/65)

Em Janeiro de 1963, seguindo uma estratégia delineada pelos movimentos independentistas com os apoios atrás referidos, o PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, um engenheiro agrónomo formado em Portugal, assalta o quartel de Tite, a sul de Bissau, e dá início às hostilidades contra a soberania portuguesa.

Foto 2 > 4 de Novembro de 1963 > Chegada a Bissau


Cedo se tornou óbvio que a guerra na Guiné viria a ser um “bico de obra” para o Estado português, que pretendia, como se disse, manter na sua posse todos os espaços do território africano, que a História, desde as descobertas do século XV, lhe conferia.

Pequeno território com uma grande fronteira terrestre aberta à entrada e saída de guerrilheiros sedeados no interior e fora da Província; terreno pantanoso, recortado de rios e canais, por onde o mar entra na preia-mar, ocupando cerca de dois terços do seu solo e tornando difícil a mobilidade das tropas portuguesas; clima quente e húmido e, portanto, insalubre e causador de muitas doenças, tornavam a Guiné um teatro de guerra extremamente perigoso e, por conseguinte, pouco apetecido para os militares lusos mobilizados para a guerra de África. Estas são algumas de entre muitas dificuldades que a minha memória guarda, a acrescentar a um inimigo razoavelmente bem equipado e treinado, em comparação com o que se passava noutras províncias do Ultramar.

É, portanto, neste ambiente e contexto difíceis que um grupo de jovens oriundos do Norte a Sul do País, passando pelas Ilhas atlânticas, comandado por um igualmente jovem capitão do exército, desembarca em Bissau no dia 4 de Novembro de 1963.

O governador da Província, se bem me lembro, era um homem da Marinha, o comandante Vasco Rodrigues. Como comandante-chefe estava o brigadeiro Louro de Sousa. Não muito depois, o general Arnaldo Schulz é empossado nos dois cargos, que ocupa, pelo menos, durante todo o tempo da nossa comissão.

O palco estava montado. Qual seria o nosso destino no teatro de operações? Como iriam decorrer os dois anos que se seguiriam? Eram as perguntas que todos fazíamos a nós mesmos, já que o principal objectivo a alcançar, em consciência, era regressarmos sãos e salvos para junto da nossa família e amigos. Se fosse possível cumprir, com alguma coragem e dignidade, os desígnios que superiormente nos eram impostos, tanto melhor.

A CCAÇ 555 chega assim à Guiné numa fase muito crítica do processo político-militar por que passavam as nossas colónias em África. A guerrilha estava presente em quase todo o território: tirando Bissau e uma área não muito extensa à sua volta, a Ilha de Bolama e o arquipélago de Bijagós, todo o resto sofria já ataques de alguma envergadura, pois, como se disse, o material que o inimigo possuía já era significativo.

Cerca de 2 meses em Bissau serviram para nos ambientarmos, para tomarmos consciência do que se passava no mato, enfim, para chegarmos à conclusão que não estávamos ali para passar umas férias numa qualquer estância de turismo. Mas, instalara-se o desânimo na Companhia? Nem pensar!..Tanto quanto me é permitido recordar, todos estávamos bem dispostos e minimamente preparados para o que “desse e viesse”. Claro que havia sempre os que, pelas circunstâncias de psicologicamente não serem tão fortes, se iam um pouco abaixo. Nada que os entertainers da Companhia (que os havia, sem dúvida!..), com umas brincadeiras à sua maneira, não resolvessem. A reserva moral do grupo, essa, estava no comandante da Companhia, como é evidente: o capitão Ritto esteve sempre à altura, na manutenção da coesão, na elevação da moral, sem violentar nenhuma consciência, nem tão pouco exercer autoritarismos, nas circunstâncias descabidos.

Um primeiro grupo rumou então a Cabedú, para fazer a transição da Companhia que íamos render, para a nossa. Terá sido nos últimos dias do ano de 1963, se, e mais uma vez, a memória não me falha. O restante, (dois pelotões?), de que fazia parte o signatário, embarca num batelão ou numa lancha da marinha (não posso precisar) no dia 31 de Dezembro do referido ano, fazendo uma viagem que havia de considerar-se perigosa, na medida em que os “turras” privilegiavam muito as margens dos rios e canais para fazerem os seus flagelamentos.

Então, junto da famosa ilha do Como, à altura considerada pelo PAIGC território libertado, fomos atacados com alguma violência, de que resultou um ferido grave, que estava (penso que a dormir) na coberta do barco e não recolhido, como a esmagadora maioria, no seu interior. Foi evacuado para Bissau e, posteriormente, para Lisboa. Foram momentos de certo pânico, mais pela descontracção que no momento reinava a bordo do que pela intensidade de fogo.

A uma distância temporal considerável, ainda hoje, tirando a infelicidade do nosso companheiro, considero ter sido um bom baptismo de fogo, que nos foi útil para o que se iria passar depois. Por coincidência, ou talvez não, o ataque dá-se precisamente no momento em que um grupo festejava a passagem de 63 para 64, saboreando uns belos paios e um bolo que me tinham sido enviados de Lisboa por familiares, acompanhados dumas boas cervejas.

Os “irresponsáveis” (deviam estar atentos às movimentações do inimigo, num lugar daqueles, e não a satisfazer as necessidades do estômago e da alma) na sua totalidade não os posso referir, mas há três de que tenho a certeza da sua presença: eu próprio, o Mário Ribeiro e o Alves. Não chegámos, como é óbvio, ao fim do repasto, ficando o resto das iguarias para mais tarde. A resposta foi boa e, passado algum tempo, tudo serenou e mais nada digno de realce aconteceria até ao nosso destino: o ainda desguarnecido aquartelamento de Cabedú, onde nos esperavam os nossos companheiros.

(Continua)

______________

Notas de CV:

(*) Números de telefones suprimidos na edição do texto, mas que se fornecem, particularmente, aos camaradas que nos contactarem para o efeito.

(**) Vd. poste de 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Norberto Costa,
Estive na C.CAÇ. 763 em Cufar, gostaria de saber se o alferes Calvário era da vossa Companhia caso contrário,qual a companhia que vos rendeu em Cacine. O Calvário também tem estórias interessantes em Catió.


Um abraço,

Mário Fitas

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Ó seu pirata Gomes da Costa

Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. e foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...
Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...
Fico à espera de mais...
Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)