quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25936: Humor de caserna (74): " O "Biró-lista", atirador de... morteiro (Alberto, Branquinho, "Cambança final", 2013, pp. 105-107)




Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos.  Lisboa,Vírgula,  2013, 224 pp.  

Sinopse:

«Cambança Final» foi, para muitos que fizeram a guerra na Guiné, a passagem desta margem de vida para a outra: essa que é definitiva.

«Cambança Final» foi, para a maioria, o regresso, dois anos depois, ao outro lado de onde tinham partido. Regressavam endurecidos, feitos homens em movimento sofrido e acelerado. (Entrementes, muitos iam regressando, mutilados no corpo ou na alma.)

Este livro é composto de pequenas histórias que abordam não só aspectos dramáticos da guerra, mas também situações pícaras ou bizarras e encontros/desencontros de culturas que foram obrigadas a conviver no mesmo espaço geográfico em tempo de guerra. 

(Fonte: Sítio do Livro)




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".



1. Reli, recordei, e voltei  a achar um piadão a mais este microconto do Branquinho: é uma  das joia de humor de caserna do seu livro "Cambança final", de que eu selecionei uns tantos em mais de 6 dezenas.  

Merece ser destacado, nesta série, até por que me fez lembrar a figura popular da minha terra e da minha infância, que era um cauteleiro,que vinha de um concelho vizinho (talvez Bombarral) e a quem toda a gente  chamava... o "biró-lista" (à moda do Porto!): "Oh, biró-lista, anda cá, p'ra ver se foi desta que eu largo a porca miséria do ofício", dizia-lhe o meu velhote, que todas as semanas comprava uma cautela... ("Só calha a quem joga!", justificava-se ele; claro que nunca teve a "sorte grande" em vida)...

Não sei se o "biró-lista" do meu tempo chegou a fazer algum "milionário excêntrico". Na maior parte das vezes, calhava apenas a terminação aos mais afortunados. Mas este "biró-lista" da tropa do Branquinho é um humaníssimo retrato do nossos "soldados básicos", alguns de facto sofrendo de "deficiência intelectual... Mas, "em tempo de guerra, não se limpa(va)m armas" e o exército tinha que aproveitar "todo o peixe que vinha à rede".

É um microconto escrito com muita ternura e compaixão humana, sempre com  aquele humor fino, não desbragado, do Branquinho que, além de um duro e bravo combatente da CART 1689, não alienou a sua condição de "primus inter pares". Além do mais, é uma prosa castiça: quem é que se iria lembrar de expressões como esta,  uma "taleiga cheia de notas, amarrada à cintura" ?! ("Taleiga", do árabe árabe ta'līqa, "saco").



Humor de caserna > Biró-lista, atirador de... morteiro 

por Alberto Branquinho


No Porto, chamavam “Ver-a-lista” aos homens e rapazes, habitualmente aleijados ou diminuídos mentais, que andavam pelas ruas vendendo lotaria. Por exemplo, alguém que estivesse sentado numa esplanada, ao avistar um vendedor de jogo, chamava:

− Ó Ver-a-lista!

O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.

Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada. Parecia ter sido arrancado de um quadro de Hieronymus Bosch.

Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “Ver-a-lista”.

Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:

 Que é que queres, ó rapaz?

Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o
 atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspeto, constatou que devia ter um atraso mental.

− Qual é a tua especialidade?

− Atirador… de… de… morteiro.

− Espera aí.

O sargento bateu na porta ao lado.

 Meu capitão, dá licença?

Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.

− Então não cumprimentas o nosso capitão?

Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:

− Cumprimento militar!

− Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá,  rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?

O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:

−  Então como é que fazes fogo com o morteiro?

Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:

 Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!

 Está bem. Podes ir embora.

Saiu.

− Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.

(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “Apurado para todo o serviço militar”).

Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.

Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?

− Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?

− Xim, xenhora!

Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.

 Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?

 Xei calquer coijita.

− Tu não recebes correio. Não escreves à família?

−  Nã, xenhora.

− Queres que eu escreva ou que te ajude?

− Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.

Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:

 
− Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!

− O quê?!

− Os gajos estão a atacar!

− E ós’póis? O qu’é qu’eu fiz de mal p’ra ter que fugir?

Teve que ser empurrado para dentro.

No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes. Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos? Estava mais esperto e mais risonho, não 
só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - "Fogo de rajada com... morteiro". In: Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos.  Lisboa,Vírgula,  2013, pp- 105-107 pp.  


(Título,  revisão / fixação de texto, itálicos: LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25924: Humor de caserna (73). "Trombas do Lopes" (Jorge Cabral, 1944-2021)

4 comentários:

José Botelho Colaço disse...

O ex-furriel Hélder Valério em Bissau farto de ouvir tanta história de ataques, também respondeu eu num ataque no mato também meti a bazouca de rajada e os turras fugiram todos.

Anónimo disse...

E ainda há quem se atreva a apoucar (poucos) este blog ! Em boa hora teve o Luís Graça a ideia e a capacidade de construir este blog, elogiado por gente que percebe destas coisas. Mas, independentemente, do prestígio que goza, praticamente em todo o mundo, mas especialmente na Europa e na América, o mais importante foi e é o que nos deu e dá , a nós combatentes, o blog Luís Graça e Camaradas da Guiné. Foi através dele que se restabeleceram convivências amortiçadas pelo tempo e se reataram amizades que se julgavam perdidas de todo. Foi através deste blog que se se desenterraram memórias de emboscadas, minas ataques aos aquartelamentos, mas também de momentos de alegria com que se remediavam tristezas e angústias. Por minha parte, considero o Luís merecedor da nossa admiração e gratidão. É que não é fácil gerir este espaço de convergências mas também de divergências, animando os mais passivos e freando os que ultrapassam as linhas fundacionais do blog. Se alguém duvidasse ainda da utilidade deste blog, bastaria ler este conto do nosso camarada Alberto Branquinho, uma delícia, inserto no seu livro " Cambança Final".

Carvalho de Mampatá.

Anónimo disse...

O humor é dos géneros mais dificeis (e perigosos...), do cartun ao conto... Nem todos os seres humanos infelizmente têm sentido de humor... O Branquinho honra-nos com o seu talento... e torna a nossa "caserna" mais amigável e até habitável... Luis

Alberto Branquinho disse...

Obrigado Luís, pela publicação e pela apreciação.
Obrigado Carvalho e cumprimentos ao pessoal.
Abraço
Alberto Branquinho