sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25940: Notas de leitura (1726): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1874) (20) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Desta vez, temos um texto literário que explora uma dimensão pouco vulgar, um delegado de saúde que saiu de Cabo Verde e foi à Guiné apurar as condições de vida e os tratamentos de quem ali vivia entendeu que devia pôr ênfase nas relações entre a meteorologia e as doenças, hoje tudo quanto ele escreveu pode ser entendido como um anacronismo, mas o recorte literário da sua exposição é de uma indiscutível beleza, dou-vos somente um exemplo:
"Não posso dar conta dessas modificações atmosféricas por meio dos algarismos que se lêem sobre as escalas dos instrumentos físicos, porque os não tinha; mas vou tentar dar uma ideia daquilo que, sem estes, se pode observar.
Começa-se a ouvir ao longe um estrondo como o surdo bater das vagas a desfazerem-se em rolos na costa; ao mesmo tempo lá na orla extrema do horizonte, do lado de leste e sudeste, e às vezes em outros diferentes pontos, assoma uma escuridão; a princípio pouco intensa, depois mais, depois muito; de repente passa o tufão que sibila irado e parece arrebatar tudo na sua corrente. É então que castelos de nuvens, levantando-se nas asas da procela, sobem para as alturas do céu, e caminhando uns para os outros, estreitam a distância que os separa; são como dois exércitos inimigos que, avançando, se vão topar em cheio." E depois desta dissertação naturalista encontra forma de encaixar um sem número de doenças. Estamos a caminhar para 1875, cresce em mim a tensão em adivinhar como se irá anunciar os acontecimentos associados ao desastre de Bolor que levaram as autoridades de Lisboa a separar a Guiné de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1874) (20)


Mário Beja Santos

O Boletim Official vai enveredando pelo crescimento da parte dita não oficial, há qualquer coisa que lembra o Almanaque Bertrand, tem uma fase profundamente didática, chama a atenção para a importância do eucalipto que, segundo o autor, teria a propriedade de afastar doenças, e este mesmo autor discorre sobre os métodos para a sua transplantação bem-sucedida, há artigos sobre educação infantil, alfaias rústicas, operações agrícolas, aborda-se a longevidade, a zoologia agrícola, a meteorologia, até a criação da cochonilha. Mas vamos à parte oficial e quanto ao que se versa sobre a Guiné.

No Boletim n.º 21, de 23 de maio de 1874, o Governador da Guiné, António José Cabral Vieira, envia o seu relatório simplificado para a Praia através da escuna Mindelo: é satisfatório o estado sanitário do distrito, bem como o alimentício; o comércio em Cacheu continua pouco animado e o de Bissau não tem melhorado; em Bolama continua a colheita da mancarra e a sua exportação, tendo entrado no porto da referido ilha durante o mês passado seis navios para carregar e saíram cinco carregados; terminou a colheita de arroz, mas continua a vir o suficiente para a alimentação do povo de Bissau e do Rio Grande; a tranquilidade pública não tem sido alterada, salvo a continuação da guerra entre os Futa-Fulas, Fulas e Biafadas. E lê-se mais adiante: satisfatório foi o estado sanitário do distrito durante o mês de março; na clínica civil foram observadas as seguintes doenças: quanto às endémicas, há a registar febres, terçãs, febre biliosa hematúrica, úlceras fagedénicas; quanto às doenças comuns, há a registar as asmas, bronquites, conjuntivites, faringites, reumatismos articulares crónicos, sífilis, cancro e tuberculose. No hospital foram tratadas doenças endémicas (caso da caquexia paludosa) e doenças comuns (caso do abcesso e sífilis). Dá também informação sobre o movimento da população na freguesia da Nossa Senhora da Candelária de Bissau: 18 batismos e 7 óbitos. Assina o delegado de saúde, António Augusto Santa Clara.

No Boletim n.º 26, de 27 de junho, o Governador da Guiné envia o seu relatório para a cidade da Praia pelo palhabote Experiência: estado sanitário regular, estado comercial pouco animado; a tranquilidade pública continua regular, a não ser a prevenção que existe a respeito dos Futa-Fulas e Fulas, sobretudo nas margens do Rio Grande na circunstância de se ter visto obrigado a retirar de Buba, por causa das suas exigências, o comerciante Severino Anastácio Vicente. O relatório faz-se acompanhar da súmula da Junta de Saúde em Bissau onde se referem as doenças endémicas: febres, acompanhadas ou não de bronquites; as doenças comuns como apertos orgânicos da uretra, cistites, doença do sono, reumatismo, tuberculose, entre outras. Houve 7 batismos e 5 óbitos.

Há uma novidade a registar no Boletim Official, e é de monta: vão aparecendo com regularidade as listas de degredados que chegam a Cabo Verde e seguramente também com destino à Costa da Guiné.

No Boletim n.º 34, de 22 de agosto, novo envio de informações do Governador da Guiné pela escuna César 2.º: estado sanitário regular no mês de julho e satisfatório em junho; estado comercial pouco animado, estado alimentício regular; não há alteração na tranquilidade pública, talvez esta se possa justificar por se viver a estação chuvosa. Há uma mudança agora de discurso no Boletim Sanitário, sabe-se lá se a razão não é mesmo a estação das chuvas: aguaceiros abundantes estabeleceram perigosas alianças com produtos orgânicos, recrudesceram os focos de emanações; e apresenta-se uma listagem de doenças endémicas e comuns. Assina o delegado de saúde interino, Aleixo Justiniano Sócrates da Costa.

No Boletim n.º 43, de 24 de outubro, o relatório do Governador não traz novidades com significado, mas sublinha haver atonia do comércio e da sua pouca vitalidade dá-se a recente receita pública. Sócrates da Costa passou a delegado de saúde, recompôs o modelo do Boletim sanitário, como se exemplifica:
“Conquanto a febre inflamatória predominasse na patologia endémica, o elemento paludoso parece não possuir essa virilidade de resistência que em outras ocasiões torna majestosas as pelejas que empenha com as armas da terapêutica. E que à violência da pugna sucede o enfraquecimento da mesma, e o organismo cansado do batalhar constante havido contra esse poderoso agente de destruição teve tempo para reassumir, durante o curto armistício, uma parte do seu exausto vigor.
Houve dias em que o calor que nestas regiões chega a ser calcinante, enervadas as forças do corpo conseguiu enervar as do espírito. Apenas, de longe em longe, os bafejos de uma ligeira aragem vieram amenizar este abrasador clima.”


No Boletim n.º 45, de 7 de novembro, reproduz-se um interessante artigo intitulado Última expedição em busca das origens do Nilo, 1870-1871-1872, reproduzido da Revista Marítima e Colonial, publicação do Ministério da Marinha e das Colónias de França. No Boletim n.º 48, de 28 de novembro, temos um texto de digno interesse, intitula-se Apontamentos acerca de Bissau, relativos ao ano de 1873, em cumprimento do que se acha disposto no decreto de 1869. O autor diz que vai dividir o seu trabalho em duas partes; na primeira, faz diversas reflexões que têm por alvo a etiologia e na segunda dispõe a patologia da localidade. Situa o lugar da vila de S. José de Bissau, diz que as ruas principais vêm do Leste para Oeste, as casas são de pequena altura, térreas, mal divididas, mal alumiadas e mal arejadas; muitas têm grossas paredes feitas de uma espécie de barro e todas elas são cobertas de telha. A casa em que está o hospital é insatisfatória em todos os títulos. Descreve a fortaleza e o seu interior onde há uma igreja, o quartel dos soldados, o calabouço e a cadeia civil, a cadeia é mal arejada, húmida e de acanhadíssimas dimensões em relação ao crescente número de presos; o calabouço também não está em melhores condições higiénicas e muito melhores as não tem o quartel em relação ao fim a que é destinado. O artigo continuo no Boletim n.º 49, de 30 de novembro, a tónica da higiene permanece, mas o autor insiste em falar de Bissau, considera Bissau o ponto da Guiné de Cabo Verde que tem mais recursos, por ele passam todos os negociantes estabelecidos noutras partes, por esses motivos aumenta a população, escasseia o terreno, estreitam-se as ruas, acanham-se as casas, aumenta a acumulação dos habitantes. O ar que circula dentro das casas é viciado pela acumulação relativamente grande dos seus habitantes; o que se conhece mesmo no cheiro repugnante que se experimenta quando se entra nas casas.

Não é digno de menor atenção o fosso que rodeia as muralhas; nele cresce a erva com uma rapidez admirável durante o tempo das águas; alguns dos habitantes que moram perto, ali fazem despejos às horas mortas na alta noite; rastejam nele miríades de répteis. Todas estas circunstâncias devem concorrer para o quadro da insalubridade.

O autor expende considerações sobre os sistemas de limpeza, o facto de o cemitério estar muito próximo da povoação, a própria insalubridade do cemitério, e finda a exposição do quadro etiológico apresenta um quadro patológico. Reinam ali doenças endémicas, releva as febres paludosas, caso da febre biliosa, faz uma exposição sobre o tratamento destes quadros febris e dirá em certo momento:
“Tive ali a ocasião de verificar a influência dos fenómenos meteorológicos sobre o organismo animal; em todas as doenças os sintomas exacerbavam-se mais ou menos, mas nos doentes de febres perniciosas e de febres biliosas apareciam muitas vezes cãibras nas pernas, uma certa agitação geral, às vezes subdelírio ou mesmo delírio, e isto ainda quando se não se esperasse exacerbação: coincidiu com uma horrível trovoada que ia passando sobre Bissau, o aparecimento do soluço num daqueles doentes de febre biliosa.”

Não há dúvida que o delegado de saúde que escreve este texto associa, sem margem para dúvidas, a meteorologia à patologia, e a sua exposição é simultaneamente a de um profissional de saúde que gosta muito de escrever:
“Como se mão gigante e invisível rompesse as cataratas do céu, torrentes de chuva se despenham do seio das nuvens e inundam a terra; fuzilam os relâmpagos, estalam os raios, atroam os trovões: pela escuridão da noite a cena é mais sublime, através do densíssimo véu das trevas não se vê entre as nuvens o clarão da lua, e o céu negro da noite não se enxerga o cintilar de uma estrela.”

Texto magnífico, podia-se transcrever ainda muito mais, ainda vai falar do alcoolismo e finda o seu relatório datado de 30 de agosto de 1874, foi escrito na ilha do Sal e é assinado pelo delegado de saúde António Augusto Pereira Leite d’Amorim.



Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796

(continua)

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Nota do editor

Vd. post da 6 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25916: Notas de leitura (1724): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873 e 1874) (19) (Mário Beja Santos)

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