terça-feira, 10 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25931: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: Não sei explicar o que nos prende a esta gente...




Timor Leste > Liquicá > Manatti > Boebau > Escola São Francisco de Assiz (ESFA)


Foto:  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estamos a chegar ao fim... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco empreenderá a viagem de regresso a Portugal... Desta vez, na sua segunda viagem a Timor, ele partiu em 25 de janeiro de 2018. Foram cinco meses de estadia. 

E foi seu companheiro de viagem o amigo luso-timorense Gaspar Sobral, que vive em Coimbra. Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra.

De Timor Leste o Rui mandou-nos na altura as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024).  Decidimos reproduzir uma seleção dessas crónicas, na medida em que elas nos ajudam  a conhecer melhor  a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos. Laços que o própripo resume nestes termos: "Não sei explicar o que nos prende a esta gente"...

O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,

(Por coincidência, ontem, segunda feira, o Papa Francisco chegou a Timor Leste para uma visita histórica de 3 dias.)





O "malaio" (estrangeiro) Rui Chamusco
e o seu companheiro de vaigem, o luso-timorense
 Gaspar Sobral.

Foto: LG (2017)



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte XII -   Não sei explicar o que nos prende a esta gente.




(...) Dia 01.062018, sexta feira - Dia Mundial da Criança


Neste dia todos temos de ser criança. Porque é um dia especial, não há desculpa para nos alhearmos desta celebração. As redes sociais inundam-nos com publicações sobre o evento. Por todo o lado se ouvem os vivas e as palmas como sinal de festa. Pois que seja uma grande festa!

Sem esquecermos as crianças que, devido à guerra, aos maus tratos, às separações, à fome, à falta de escolas, às dificuldades económicas e tantas outras carências são
privadas dos festejos deste dia.

Cada um, à sua maneira, faça o que pode e deve fazer para que o mundo das crianças seja cada vez melhor. E, quem tiver oportunidade, ao menos neste dia pegue ao colo uma criança, para sentir bem junto a si o dom da vida a nascer e a crescer. 

Ou então como diz a canção francesa: “prend un enfant par la main; pour l’amèner vers demain; pour lui donner la confiance en ses pas; prend un enfant dans tes bras.” [Pega uma criança pela mão; para a levar para o amanhã; para lhe dar confianças nos seus passos; toma uma criança nos teus braços" (LG)].

Hoje tive esta sorte: O Zé (uma criança de um ano de idade,o filho mais novo do Anô) foi trazido para o meu colo onde esteve brincando durante mais ou menos meia hora.

Entre mimos e mais mimos, o Zé ganhou tal gosto e descontração que não resistiu a
deixar-me de presente uma boa mijatada. Com certeza que não o irei esquecer
facilmente.

Dia 02.06.2018. sábado - Por esta 
não esperava eu

Como há dias combinámos amanhã dia 4 de junho regressaremos às montanhas de
Liquiçá, mais propriamente a Boebau, onde espero dar um reforço na aprendizagem do português e da música. Então não é que a minha perna esquerda voltou a estar emperrada nos movimentos! Bem temos tudo feito para que as dores me deixem em paz: massagens, massagens e mais massagens... mas, não sei não. 

Vamos lá a ver se me aguento em cima da mota. Alguma apreensão, mas nada que me tire a boa disposição e a vontade de viajar. Só se for de todo impossível. Prometi que voltaria antes de ir para Portugal e tenho de cumprir custe o que custar. Como se diz, a esperança é a última coisa a morrer...

Dia 03.06.2018, domingo - Tenho que voltar a Boebau antes de partir...

Quando prometo e não cumpro sinto-me interiormente revoltado. Pelos vistos já não foi hoje, nem amanhã, e eu sei lá se conseguirei mesmo ir a Boebau. O raio do joelho está a incomodar-me em demasia. Costuma dizer-se que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Será algum aviso? Mas se não forem oito dias, que seja ao menos dois ou três.

Tenho que ir a Boebau antes de partir... E se não for? Ficarei mesmo desconsolado..
Tenho que dizer aquela gente, aquelas crianças que em breve voltarei, que não as
abandonarei, que a escola de São Francisco tem que funcionar, para o bem delas e para o bem destas povoações. 

Que Deus me dê forças para vencer qualquer desânimo ou tentação de abandono. Quando a cabeça e o coração se entendem também o resto do corpo tem que colaborar. Por isso tenho fé que esta peça que agora faz gazeta depressa se recomponha. E “se o coração não engana, havemos de ir a Viana”.


 Observar e contemplar

Esta tarde, a falta da luz elétrica obrigou-nos a pôr de lado o computador e a sair para o exterior tentando ocupar o tempo. Sentados como habitualmente no hall de entrada, dou comigo a observar uma cena que dá que pensar. Sem que ninguém esperasse, começam a chegar apressados galináceos de todas as idades. Pelos vistos, era a hora da sua refeição. O Eustáquio levantou-se e foi procurar uns punhados de arroz que projetou no chão em frente. Verifiquei então que havia uma hierarquia no acesso ao alimento, e ai de quem ousasse contra. 

Primeiro os maiores, os mais fortes, que penicavam os grãos com sofreguidão, afastando para longe com ataques de picadas os atrevidos invasores. Depois, vinham os de porte médio, os franganitos saciar a sua fome. Os mais pequenos, os pintaínhos, nem sequer ousavam aproximar-se; entretinham-se a esgravatar ao lado o redondel duma pequena planta. Somente os mais pequeninos de todos, os pardais, conseguiam infiltrar-se por entre os grandes. Esses sim. De tão pequeninos, passavam quase despercebidos dos maiores e assim fizeram em conjunto o festim.

Onde é que eu já vi isto? Será que entre os humanos não acontece algo idêntico? Que significado têm as minorias? O caminho é duro, é difícil mas possível, pois não há sistema, sociedade ou grupo totalmente hermético, que não tenha alguns locais de fuga e de infiltração. E daí o provérbio “ os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. O que hoje é grande poderá amanhã ser pequeno; o que hoje manda amanhã terá de obedecer; o que hoje é rico amanhã poderá ser pobre. Todas as “torres de Babel” ao longo da história têm conhecido desmoronamentos; todos os “bezerros de oiro” idolatrados têm passado ao esquecimento.

Entretanto, logo aqui em frente, as crianças brincam alegres e indiferentes às nossas cogitações. Parecem “ bandos de pardais à solta”, os putos...os putos”.


Dia 06.06.2018. quarta feira - Moonlight,  Sonata de Beethowen

Acabo de ver e ouvir no Youtube, interpretada na guitarra clássica pelo artista Michael Lucarelli a Sonata Moonlight de Bethoven, já ouvida várias vezes interpretada sobretudo ao piano.

Por coincidência ou não, a luz da lua cheia faz-se presente, e vêm -me à ideia uma série de imagens e sons que a lua e o luar suscitam: “Andar com a lua”, “lunático”, “aluado” são expressões que utilizamos frequentemente e que revelam a influência que este astro tem nas nossas vidas. 

Até os pescadores e os agricultores se deixam orientar por ela, escolhendo as melhores marés para a faina, as melhores luas para plantar, enxertar, podar, etc. Os poetas e trovadores tecem-lhe “loas”, os amantes projeções, os compositores sonatas. Os homens sempre tiveram grande atração por ela. Enviam saudações, naves, astronautas, e até dizem que já lá estiveram. Já a casaram com o sol, ainda que raramente se encontrem. 

Em jeito de anedota conta-se, que um dia o sol foi pedir o divórcio a Deus, que lhe perguntou porque lhe fazia tal pedido. Ao que o sol respondeu: ”Anda só de quarto em quarto e, de vez em quando, aparece cheia”.

Seja como seja, o seu luar é encantador. É algo que muito se aprecia e usufrui. Recordo-me do refrão de uma canção do norte do Brasil “ Não há, ó gente, ó não - não há luar como este do sertão”. 

Recordo-me do luar de Boebau, nas montanhas de Liquiçá, aqui em Timor Leste. E recordo-me das noites de luar em Malcata, terra aonde a conheci pela primeira vez na minha vida, em que durante a infância, à noite, jogávamos à “Espada Lua”. Há dias foram publicadas pela Joela no Facebbok imagens deslumbrantes dos últimos luares de Malcata.

Por isso, e em atitude de contemplação, utilizo as palavras de São Francisco de Assis para rematar este relato: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas”. (Cântico das Criaturas
 -1224)

Dia 07.06.2018, quinta feira  - Indo eu, indo eu...a caminho de Boebau!


As coisas acontecem, muitas vezes sem muito pensar ou programar. Tendo eu prometido às gentes de Boebau de que não regressaria a Portugal sem que voltasse a esta terra, e estando eu ansioso por cumprir a promessa pois via o tempo a passar, eis que, de um dia para o outro, se toma a decisão de partir.

Assim, neste dia sete de junho, depois dos preparativos necessários, pusemo-nos a
caminho, em carreta alugada, do nosso destino. Eu, o Eustáquio, o Aipeu (dono do
veículo), o chofer e mais dois moçoilos.

Primeira surpresa do percurso: saídos de Dili, mais ou menos a cinco quilómetros de distância, uma roda traseira esvaziou devido a um parafuso intruso. Paragem obrigatória para a mudança do pneu, mas impossível de realizar pois não havia macaco na carrinha..

Mais de meia hora à espera que alguém passasse e quisesse ajudar, até que, finalmente, um cireneu se decidiu parar para resolver a carência.

Depois, até Boebau, foram quatro horas de saltos e sobressaltos, algumas paragens de motor, buracos e mais buracos a decorar o caminho. Compensáva-nos a maravilhosa paisagem que nos era oferecida pelos cafeeiros abrigados pelas soberbas madrecacau em flor  
[ Gliricidia sepium]
 ; as crianças que saindo da escola nos brindavam com o “Boa tardi”; os adultos que nos acenavam e, que bem me soube, a criança que, ainda longe da Escola São Francisco de Assis, me reconheceu e atónito exclamou: “avô Rui!!!”

Já chegados à escola, e depois das saudações calorosas dos amigos presentes, fomos almoçar a casa do Bôzé, onde o arroz com feijão foré, a papaia e o café alimentaram os nossos corpos.

Logo a seguir, mãos à obra, pois o tempo urge. A carreta não tinha faróis em condições para viajar de noite. Colocamos então no lugar certo os acrílicos identificadores da escola, e que dizem “Escola de São Francisco de Assis” em horizontal; e “Paz e Bem”, em vertical. O característico Tau com o qual Francisco de Assis assinava, por ser a última letra do alfabeto grego, e como tal queria ser o último, o mais humilde de todos..

A noite foi compensadora, com um sono repousante. E, como diz uma canção “ O dia chegou ao fim; silêncio... a noite desceu. Boa noite! Paz em Deus...”

Dia 08.06.2018, sexta feira - Acordar 
em harmonia

Se há coisas que a montanha proporciona, é esta sintonia com a natureza o que mais aprecio. Então logo de manhã, antes que qualquer outro ser dê o alarme ou antes que qualquer objeto mecânico se arme em despertador, começa a sinfonia galinácea. Um senhor galo, que bate três vezes as asas e enche o peito de ar, dá o mote com a sua voz potente e bem sonante: “Có-co-ró-có-cóóóó!!!” 

Seguem-se respostas diversas de outros executantes, vindas de todos os lados, a querer fazer lembrar um concerto em estereofonia. Por fim, há um cantante que, talvez por pensar que eu ainda estivesse a dormir, mesmo em frente do local que me destinaram, bate as asas, respira fundo e canta: “Acorda velhote que já são horas!” Ok! Já estava bem acordado, de modo que foi levantar da cama e começar este novo dia com alegria. À socapa para não incomodar ninguém, fomos saindo do habitáculo: eu, o galo e uma galinha com os seus pintainhos.

E toca a andar, que há muito para fazer.

Não sei explicar o que nos prende 
a esta gente
 

Não, nãp sei explicar o que nos prende a esta gente. Cada vez que aqui vimos novos laços são criados, novas razões aparecem para gostarmos cada vez mais do que estamos fazendo. 

Hoje, a professora Rita e o seu marido Julito disseram-me que da última vez que parti daqui, as crianças ficaram muito tristes. A nossa presença é motivo de muita alegria, de confiança e de esperança. Ainda bem que assim é.

Como já sabem que no dia dezasseis regressamos a Portugal, querem saber quando
voltamos a Timor. Sem darmos certezas informamos que, se Deus quiser, talvez na
segunda quinzena de Dezembro regressemos, porque queremos estar presentes no início do novo ano letivo, que será a partir do dia sete de Janeiro.

Quase sem querer, deixei escapar o desejo de pedir a nacionalidade timorense, sobretudo para evitar o pedido de renovação de visto ou de estadia. A alegria do Julito foi notória, dizendo que para o suco de Leotalá e para a gente de Boebau/Manati será uma grande honra. 

E conta como, através do projeto de solidariedade “Uma Escola em Boebau/Manati", esta região saíram do anonimato e do esquecimento. Têm a esperança de que muitas coisas boas poderão ainda acontecer, e que por isso acarinham fervorosamente este meu desejo.

Timorense ou não, continuaremos a prestar o nosso apoio a esta gente, a estas crianças. “ O que fizerdes a estes pequeninos é a mim que o fazeis”. E assim este mundo ficará um pouquinho melhor.


Pronto!... E aí vamos nós de “motor”para a reunião de pais

Sem que ninguém esperasse, logo de manhã, a professora Rita e o seu marido Julito
apareceram de “motor” para me fazerem um convite:participar na reunião de pais e
encarregados de educação que daí a instantes se iria realizar na escola primária de
Bantur/Kelor, a escola mais próxima daqui, a fim de esclarecer a situação da sua
colaboração na escola São Francisco de Assis. Há pais e encarregados de educação que não compreendem a sua colaboração connosco e reclamam a sua exclusividade para a escola dos seus filhos.

Pronto!, disse eu. E aí vamos nós de “motor”para a reunião. Muito bem recebido pelo professor coordenador e pelos presentes, tive a ocasião de explicar o porquê da Escola de São Francisco de Assis, como funciona, porque a professora Rita trabalha na nossa escola e, sobretudo, a vontade que temos de uma colaboração mútua.

Não houve questões, pelo que sou levado a concluir que o assunto está esclarecido.

Mais uma vez me dou conta de que, quando as coisas são bem explicadas, as pessoas são compreensivas e colaboradoras. Espero bem que, com esta ação, estas escolas se entendam e colaborem, para bem de todas as crianças que as frequentam.


(Continua)

(Seleção, alguns dos subtítulos, revisão / fixação de texto, parênteses retos, negritos: LG)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25872: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: um futuro promissor, com mais de 60% da população abaixo dos 30 anos

3 comentários:

Anónimo disse...

Rui, sem querer ser cardeal- diabo, e pensando na história dos último 80 anos de Timor, as vezes até parece que Deus escreve torto por linhas direitas
.. . Foram os japoneses, depois os indonésios... Que raio de vizinhança...

Anónimo disse...

João Crisóstomo
Hoje o Papa Francisco está em Timor, lembra o nosso Luís Graca. Pena que o nosso Rui Chamusco que tanto tem feito pelas crianças e escola S. Francisco de Assis não esteja lá nesta altura . Muitos jovens, crianças ainda ontem, já têm um futuro mais promissor graças a este homem. Outras criancinhas estão agora a entrar para esta simples escola onde recebem algum ensino e aprendem a viver num ambiente de sã camaradagem e amor. Como seria bom que cada escola tivesse a presença, pelo menos de vez em quando, dum Rui Chamusco. O mundo seria melhor! Oxalá estas crónicas sejam um dia compiladas e possam ser lidas por estas mesmas crianças quando adultos.
Eu tento copiar e pô-las todas em papel, mas muito me escapa. Ainda há dias deparei com um dos muitos posts /crónicas do Rui que me têm escapado e deparei com um comentário do Luís Graça que, admirado pelo meu silêncio, fez um pequeno mas bem elucidativo comentário: "Então Joao tu não dizes nada?” Puxa vida , que fiquei mesmo sem jeito! Ele tinha razão. Mas, nem sei já porque motivo, não o vi mesmo . E outros mais. Agora tento “compensar” estando mais atento e fazendo print de todas estas crónicas.
João Crisóstomo, Nova Iorque

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João, é óbvio que não tens obrigação nenhuma de comentar este ou outros postes. De resto, és amigo do peito do nosso Rui eEntendo o teu distanciamento

Mas omo cofundador, líder e ativista do LAMETA, conheces melhor do que nós o dossiê Timor. Qualquer comentário teu é sempre bem vindo. Um abraço, de Candoz até Queens. (As vindimas este ano estão atrasadas...).Luis