sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25872: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: um futuro promissor, com mais de 60% da população abaixo dos 30 anos


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2023 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral no recreio com os miúdos da ESFA (Escola de São Francisco de Assis)

Foto © Rui Chamusco (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018. Foi companheiro de viagem o seu amigo luso-timorense Gaspar Sobral. Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra.

De Timor Leste o Rui mandou-nos na altura as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024). Achámos agora oportuno e relevante publicar no nosso blogue uma seleção. Elas ajudam-nos a perceber melhor a idiossincrasia timorense, a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos.

O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malpaca, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis, em Manati / Boebau, frequentada por cerca de 150 crianças locais.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores,  na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,

Recorde-se algumas datas da nossa história comum:

  • os portugueses chegaram a Timor no início do século XVI no âmbito das suas navegações globais;
  • a primeira referência à ilha é atribuída ao capitão de Malaca em carta de 1514 para o Rei D. Manuel:
  • a partir do fim do século XVII Portugal começou a nomear governadores de Timor, dependentes do Vice-rei da India;
  • em meados do século XIX Timor passou a ter o estatuto de colónia portuguesa que manteve até 1975;
  • no final de 1975 a Indonésia invade e ocupa o território, anexando-o no ano seguinte como sua vigésima sétima província; 
  • a 30 de agosto de 1999 a população de Timor votou em referendo a favor da independência; o país esteve então sob administração transitória das Nações Unidas;
  • a 20 de maio de 2002 é formalmente proclamada a independência de Timor-Leste na presença dos Chefes de Estado de Portugal e Indonésia; nesta data  é reconhecida internacionalmente a independência de Timor-Leste. (Fonte: adapt. de  República Portuguesa > Portal do Governo > Portal Diplomático  > Timor Leste) (com a devida vénia...)


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte XI - Um futuro promissor


Dia 20.05.2018,  domingo - Restauração 
da Independência...


É uma data que não se esquece, até por que a memória ainda está muito fresca.

E neste dia logo de manhã anunciado pela música que se fazia aqui ouvir, convém que, mesmo em clima de festa, se recorde o passado, se viva o presente e se prepare o futuro. 

Mas quem sou eu para fazer comentários ou considerações? Por mais que me digam que tenho alma timorense, o corpo não engana. Sou um malaio, um estrangeiro que vem de fora e que pouca ou nenhuma autoridade moral tem para falar de um povo, de Timor Leste. Por isso tudo o que eu disser terá um valor relativo. No entanto, não quero deixar de dar o meu contributo com esta análise que me é dado fazer no dia de hoje.

Timor Leste é um jovem país independente 
que  depois de se libertar do domínio português e da opressão indonésia está dando passos gigantes no caminho da sua autonomia e independência. O seu crescimento demográfico leva-nos a ter esperança de que este não voltará atrás, apesar das crises de qualquer crescimento. A sua grande riqueza são as pessoas, sobretudo os jovens. Mais de sessenta por cento da sua população tem menos de trinta anos.

Edgar Morin, sociólogo francês, já nos anos 80 dizia que há três grandes fatores para o desenvolvimento de um país, de uma região, de uma terra, a saber: escolas, fábricas e igrejas.

 Se olharmos para a realidade timorense constatamos que existe uma razoável rede escolar, que há bastantes igrejas, mas as fábricas são quase inexistentes. O país está muito dependente dos outros (sobretudo Indonésia e China) naquilo que diariamente consome. No entanto toda a gente sabe que Timor Leste é um país rico graças aos recursos naturais e particularmente o petróleo.


Dia 23.05.2018, quarta feira - um estilo de vida diferente


Para nós ocidentais, há comportamentos e estilos de vida destas gentes que podemos estranhar e até nos podem incomodar. O modo de encarar as coisas é bem diferente do nosso: pontualidade, marcação de encontros, ausências... nada disto tira a calma a um timorense. Por tudo e por nada se falta à escola, por tudo e por nada se chega atrasado, por tudo e por nada se desmarca um encontro.

 Razão tinha o amigo D.Basílio do Nascimento quando dizia: “ O timorense pega na guitarra e vai vender bananas ao mercado. Á sombra da bananeira vai tocando a viola enquanto espera os compradores. Se vende, tudo bem. Se não vende, come a banana, toca a guitarra, volta para casa e tubo bem também.”

É esta filosofia de vida que nós ocidentais perdemos ou nunca tivemos. Será bom, será mau? O que é certo é que nós estranhamos e custa a habituar-mo-nos. Até nem sei se serei capaz de viver com estes padrões. Mas como quem chega é que tem de se aculturar  não nos resta senão “comer e engolir”. E quem não está bem que se mude. 

Agora imaginem quando o cenário é ao contrário: um timorense que, em Portugal, na Suíça ou noutro país onde o contra relógio é rei, o esforço que terá de fazer para se adaptar. Por isso nada de julgamentos antecipados. O respeito mútuo é muito lindo...




O "malaio" Rui Chamusco
 e o luso-timorense Gaspar Sobral.
 Foto: LG (2017)

Dia 24.05.2018, quinta feira - E agora, Gaspar ?!...


Hoje o Gaspar conseguiu o que queria. Foi recebido pelo Reitor da UNTL (Universidade Nacional de Timor Leste) e, segundo ele nos diz, tem a porta aberta para no próximo ano letivo dar aulas neste estabelecimento de ensino.

E agora? Imagino o seu dilema interior: “Venho ou não venho? Aceito ou não aceito? Em todo o caso ele vai apresentar por escrito as suas pretensões e só depois, já com o contrato formalizado, se poderá dizer se vai ou não vai lecionar as disciplinas que pretende que, a meu ver, terão de ser disciplinas em que ele possa falar muito e à vontade. O Gaspar é um homem muito culto e sabe demais. Por isso, atenção alunos porque quando ele liga o motor nunca mais ninguém o para...

Quanto a mim, só vendo é que acredito. Já me vou habituando a perceber que nem tudo o que agora se diz terá força de lei. Poderá ser, e poderá não ser. Veremos...

Mas fico contente que o meu camarada tenha conseguido o que há muito tempo sonhava. Avante
camarada, avante!...


Dia 25.05.2018, sexta feira  - Inocência...curiosidade...  ou outra coisa qualquer



O tempo de “não fazer nada” dá para tudo. Aqui estamos nós, em Ailok Laran, à espera de que o tempo passe até fazermos pequenas coisas: ir à cidade, ir a Liquiçá, ir a Boebau, e ir para Portugal. 

Já disse anteriormente que os nossos relógios não são iguais. Esta gente não tem pressa de nada. E por isso, o que para eles é normal para nós, os apressados ocidentais, é impaciência, nervosismo, preocupação. O que se não fizer hoje faz-se amanhã. O que é preciso é manter a calma, o que nem sempre é fácil para quem pensa o contrário:”Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje.

Hoje ao mata bicho, pequeno almoço, a conversa derivou para relatos de episódios hilariantes. O Eustáquio, que esteve quase dois anos ao serviço dos médicos sem fronteiras como chauffer, contou-nos que durante muito tempo estranhou um certo material que as senhoras francesas traziam consigo. Algo parecido com um cigarro de filtro, com um fio para puxar. Intrigado durante dias com aquele objeto estranho, decidiu perguntar à senhora o que era aquilo, ao que ela lhe respondeu: “não posso dizer”. 

O Eustáquio veio depois a saber que o tal objeto estranho fazia parte da higiene íntima das senhoras. Fartámo-nos de rir, e ele também, alguém comentando a seguir: ”tiveste uma sorte!... Fumador como tu és, olha se te dava para chupares o dito cigarro?!...

Inocentes são as crianças. Nós, os mais crescidos, parece-me que é mais a curiosidade ou outra coisa qualquer, por exemplo malandrice.


Dia 26.05.2018, sábado  - Lágrimas pela Prety...


Esta vai custar a digerir...

Prety é (era) a cadela cá de casa, que em fevereiro passado foi mãe de cinco lindos cachorros e dos quais só o mais pequeno sobrevive. Agora que já estava refeita dos achaques da maternidade, desapareceu para sempre, segundo convicção geral. 

Morreu? Não, mataram-na!... E venderam a sua carne para consumo. A Adobe e a Eza choram inconsoláveis, mas foi este o destino deste canídeo.

Então é assim. A invasão indonésia trouxe consigo muita coisa boa e algumas coisas más. O consumo da carne de cão, por mais repugnância que tenhamos, é um hábito nestes países sul asiáticos. Pelos vistos este costume veio para ficar, aqui em Timor. 

Verifica-se que a carne de cão tem um preço e apreço elevado. Não é para todas as bolsas nem para o comum dos mortais. Há restaurantes referenciados que fazem deste prato uma iguaria muito procurada.

Estão mesmo a ver no negócio em que isto se transformou. Cão que se distraia tem os dias contados. Há caçadores de cães furtivos, mas especializados em técnicas de captura e de morte. Aqui todos sabem quem é o prevaricador. Até lhe chamam “Naok ten Asu” (ladrão de cão) e “Asu Ulun” (cabeça de cão), mas ninguém ousa denunciá-lo até porque têm medo dele, e pena pois dizem que é pai de duas crianças deficientes. 

Ou seja, “come e cala”  mesmo que sintas muita pena dos teus “fiéis amigos”. E, já agora, aqui fica a técnica da apanha de cães: preparam um balde com carne lá dentro, circundam a abertura do balde com um laço, sobem para uma árvore com o fio, e quando o animal meter a cabeça à procura do alimento, puxam o artefacto que fica logo degolado. Nem ai nem ui, o vivo passa de imediato a morto.

E agora, em jeito de comentário: Como se pode ser tão cruel para com um animal que nos olha nos olhos, nos faz festas e meiguices, cujo epíteto é a fidelidade ao dono? Deus nos livre!... E Deus lhes perdoe...



Dia 28.05.1018,  segunda feira - Olha a chibinha, mé...mé...mé...


Quem já conhece Timor ou outros países similares da Ásia, da África ou da América com certeza que já se deu conta do tipo de transportes terrestres que por cá podemos encontrar. Motores (motorizadas, táxis, microletes e angunas) são os mais comuns. 

As microletes, veículos pelos quais tenho enorme simpatia pois é o transporte de todos e particularmente dos mais pobres, têm uma versão maior que em Timor chamam “ Bis “ e internacionalmente Bus, destinados a transportes de maior percurso. 

Durante o dia e a qualquer hora na cidade de Dili, é um ver se te avias para apanhar o “bis” desejado. Quem tiver paciência para tal e possa observar o fenómeno, vai dar-se conta da quantidade e variedade de passageiros e seus pertences que, de forma mais ou menos organizada (o que interessa é que todos possam viajar) circula por estas estradas.

Hoje, enquanto esperávamos pelo Gaspar, tive a oportunidade de me manter ocupado observando o trânsito que passava em frente do Timor Plaza. E eis que avisto um “Bis” com algo insólito sobre o seu telhado: Uma cabra ou chiba toda airosa e de pé, cabeça ao vento, como se fosse ela a controlar a situação. Sem qualquer esforço de equilíbrio, mantinha-se altiva e desafiadora, como a querer dizer-nos: “Eh pá! Isto aqui é que é bom!...”

Não sei é qual foi o destino deste caprino. Dote de casamento? Faca e garfo? Talvez continue a sua vida nas mãos de outro dono e noutra região. Talvez um dia nos voltemos a ver ou encontrar. Que sejas feliz. irmã cabra (bibi)!...



Dar flor, dar fruto e... morrer


Mais uma lição de vida. A caminho de Maubara, a paisagem é dominada pelas palapeiras, uma árvore da família das palmeiras que tem uma particularidade: só dá flor uma vez na vida, da qual nascem alguns frutos, e a seguir seca...morre. 

Esta árvore que enquanto só dá ramos e folhas é tão utilizada para colmos das casas e para confeção de algum artesanato local, tem esta nobre missão: florir, dar fruto e morrer, de pé, porque como declamava a nossa Palmira Bastos já na fase final da sua vida artística “ As árvores morrem de pé!”.

No imenso palapal que acompanha a estrada de Liquiçá para Maubaura são muitas e muitas heroínas, que já mortas ou quase mortas imperam na paisagem junto ao mar, como que a querer dizer-nos adeus e a lembrar-nos de que a vida é assim. 

Nascer, viver, dar frutos e morrer vale a pena, porque se assim não fosse a vida não se renovava, o devir não acontecia. “Se o grão de trigo não for lançado à terra e não apodrecer não poderá dar o seu fruto”. Todos nós somos grãos de trigo.

(Continua)

(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25858: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte X: "Obrigadu, malae" João Crisóstomo!

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rui, quase dois terços da população jovem... também pode ser um "barril de pólvora"... Tal como em África, aumenta o abandono do interior e o crescimento urbano... E é preciso dar de comer, escola, cuidados de saúde, habitação, trabalho... a essa juventude toda, sob pena de se estar a criar novos "lumpen"...