domingo, 8 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Canção de Natal

Sábado à noite, dia vinte e um, vésperas do Santo Natal.
O frio enrugava os ossos. A rua de Santa Catarina era um rio de gente, um rio de águas desencontradas sem destino nem rumo, umas correndo para baixo, outras para cima e mesmo para os lados, se algum dia se viu! Gente por cima, gente por baixo, gente saindo e entrando não se sabe bem onde. Tanta porta aberta, tanta porta fechada, não se sabe ao certo.
Pessoas em cima de gente embrulhadas em pessoas e sacos e mais gente e mais sacos pendurados nas mãos, nos ombros, no pescoço, nas orelhas, nos olhos.

Uma velha andrajosa, suja e gorda, - de doença seria a gordura e não de fartura! Uma provável anasarca cardíaca - que faz do doente uma espécie de boneco Michelin rebentando de inchaços.
Uma velha gorda excrescente tumoral (de trapos seria a gordura também! O frio enroscara-lhe o corpo com todos os farrapos do lixo).
Uma velha feia tentava subir a rua por entre a multidão limpa. Com grande agonia, arrastava pelo chão, puxada por um cordel, uma caixa de papelão que dentro continha outras caixas e restos de caixas e mais papelão (provavelmente toda a sua mobília de quarto que haveria de montar nesse arrastado andar lá para o meio da noite no vão de uma porta muito acima do 575, mais fora dos olhos dos enxotadores de pobres).

A velha, cuja idade lhe mirraria as carnes se os inchaços se escoassem, não ia bem-disposta, nem dava ideia de estar bem no meio daquele mar de gente, antes de tudo, sentia-se afogar, não era inveja dos sacos nem dos cheiros nem dos casacos nem do luxo (sabia lá ela o que era o luxo! Importava-se lá ela com todo o papelão dos outros todo o papelão que ia dentro daquele mundo de sacos!), ela só queria o seu papelão e que não estorvassem os seus bocados de passos que juntos não dariam mais passos do que dez à hora.
Ela só queria que aquela gente toda ali, parida pelo diabo, não a impedisse de arrastar a sua casa, então praguejava bem alto:
- Vão todos pró caralho, vão-se todos foder.

Ouvia-se como música de fundo um lindo cântico de Natal...
- Filhos da puta, deixai-me passar, vão-se todos foder.

Dois putos atiçaram a velha: - Vai-te foder, tu, velha ranhosa, ao mesmo tempo que ironizavam à gargalhada:
- Avariou-se o Mercedes à gaja!

A velha não se agastou mais do que já vinha, estava treinada na cena para não perder energias com a inutilidade de erguer a voz e ripostou num grunhido cavo:
- Vai levar no cu, paneleiro de merda.

A melodia de Natal escorria pelos ouvidos cheios de sacos de paz e harmonia.

Já quase exausta, com voz mais cava, a velha dizia: - Deixai-me passar, bandalhos.

Lá em cima, Deus não deve ter levado a mal.
Como reza o Divino Testamento, dos pobres é o reino dos Céus.
Em breve, ela estaria com Ele para usufruir da eterna justiça e.… na altura devida, Ele lhe daria com ternura um puxãozito de orelhas.
Deus não é bandalho.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25902: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (33): "Na senda do poema azul"

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