segunda-feira, 17 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19898: Notas de leitura (1187): “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019 - Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2019:

Queridos amigos,

As picardias do nosso confrade Alberto Branquinho são como o brandy Constantino, já vêm de longe, ele pertence a essa rara linhagem de quem tece com humor, troçando dos escriturários e suas bravatas. Temos aqui uma novela que mete respeito, este major de operações vai passar à história e nunca saberemos, e talvez também não tenha importância nenhuma, o que por ali se passou tem algo de autobiográfico.

O que enriquece esta prosódia é a falta de referência quanto a lugares, nomes reais de sítios, rios, dia, mês, ano. É também deste modo que se lê de forma universal as facécias, os absurdos e os permanentes impasses que atravessam a trama daquela guerra ou daquelas guerras, como Alberto Branquinho gosta de sublinhar, para nosso proveito.

Um abraço do
Mário


Sempre na caçoada, zombeteiro quanto baste, subtil apurado: Alberto Branquinho

Beja Santos

O nosso confrade Alberto Branquinho pertence à linhagem daqueles que trabalham no tear com ponto cáustico, fio mordaz e alguma mofa esvoaçante. De parágrafo económico, cortante, sente-se à légua o seu azedume com os operacionais de escritório, oficiais, sargentos e praças. E não fala da guerra, é tudo no plural, as múltiplas e variegadas guerras, como ele observa: “A guerra, ela mesma, é composta de muitas outras guerras, que também causam baixas: É a guerra entre as hierarquias, a guerra com as hierarquias, a guerra de militares com aspirações políticas, a guerra entre os que planeiam as guerras e os que têm que as fazer, a guerra entre os que fazem a guerra e os serviços de apoio ou de retaguarda, etc.”.

Acaba de publicar “Deixem a Guerra em Paz: Guerra Colonial – Guiné”, Edições Partenon, 2019.

São guerras universais, a topografia é irrelevante, o que parece funcional, lógico, extraído do melhor pragmatismo acaba no teatro do absurdo. Logo no planeamento operacional, o diálogo entre o oficial de operações e o capitão, o que parece claro deixa de o ser, afinal o homem da PIDE mente ou esconde, o funcionário colonial resguarda-se para o futuro, afinal é cabo-verdiano e o racismo na guerra da Guiné também conta.

Enquanto os homens do PAIGC fazem a cambança é hora de saída lá no batalhão, aquela operação terá de dois a três dias, testam-se as transmissões e logo um pouco mais adiante começam os pequeninos entraves, passa por ali um javali, é um restolho que provoca frémitos, surge o lodo e a malta enterra-se até aos joelhos, o guia anda às apalpadelas, fora aprisionado, parece que vai bem amarrado, nisto ouvem-se uns estoiros, mas são bem ao longe. Primeira cena do primeiro ato, ou coisa parecida. Na segunda cena, o oficial de operações anda para ali inconclusivo mas ansioso, precisa de um sucesso retumbante, um ronco, no posto de informações não lhe dão notícias, no mato ninguém se entende com a escuridão, o melhor é que comece a clarear, continua-se a patinhar na lama, o pessoal vai ensonado, faz-se um alto, quem guarda o prisioneiro pede a um camarada que fique em vigilância, o silêncio da noite interrompe-se com rajadas e disparos de RPG vindos da mata à esquerda, um fogo que vai durar vinte minutos. É nisto que se descobre que o prisioneiro deu às de vila Diogo, o capitão está descorçoado, perdeu-se o efeito-surpresa. Nova cena, o solilóquio do alferes Félix, interrompido por morteiradas, anda tudo num arrebol. O capitão toma decisões, não se pode continuar a operação, vai-se bater a zona, regressa-se ao quartel, fim do primeiro ato.

Novo ato, abre em esplendor, um ataque ao quartel, Alberto Branquinho dá-nos aqui uns parágrafos para antologia:

“O furriel Matos, da secretaria do Batalhão, foi apanhado pelo ataque no exterior do quartel, trajando farda de passeio. Como que indiferente à tanta confusão, vinha caminhando lentamente pela rua da povoação, frontal à porta de armas, entre terror e espanto. Não conseguia correr.
- Apocalipse! – murmurava.
Parou. Sentou-se na soleira da porta fechada de um dos poucos comerciantes que permaneciam na localidade e que ele costumava visitar aos Domingos.
- Minha mãe! Mãe…
Ao ouvir o silvo de uma granada que lhe passava sobre a cabeça, levantou-se. A granada rebentou na bolanha, a pouco mais que uma centena de metros à sua frente, seguida de um clarão que iluminou a noite.
- Ai, minha mãe!
Voltou a sentar-se até que os rebentamentos pareciam ter cessado, embora os obuses do quartel ainda fizessem fogo espaçadamente.
Levantou-se. Lentamente caminhou pelo meio da rua em direção à porta de armas. Ao chegar à porta, o cabo viu-o com a impecável farda de passeio, reconheceu-o entre o pó e o fumo e, em espanto, abriu-lhe a porta.
- Ó meu furriel, o que é que você anda a fazer aí fora?
- Estava a ver…
- Ó meu furriel, entre depressa. Já há dois mortos e uma porrada de feridos. O Posto de Socorros está cheio. Uma granada rebentou com uma caserna.
Já dentro e em fúria, o furriel Matos arrancou a arma das mãos do cabo, apontou, pela porta entreaberta, para o exterior, carregou no gatilho e despejou, de rajada, o carregador. Depois largou a arma no chão e desatou a correr. Só parou junto à cama. Deitou-se e colocou a almofada em cima da cabeça”.

A vida no Batalhão tem peripécias e facécias, todos notam que a relação entre o capitão e o major de operações desferiu, correm murmúrios, trocam-se conversas entre alferes, parece que o comandante de companhia vai partir, terá sido transferido, tudo por se ter recusado a punir ou a propor punição a quem deixou fugir o prisioneiro. E de facto o capitão entrega o comando da companhia ao alferes mais antigo. Muita coisa se irá passar na ausência do capitão. O major de operações informa que se vai voltar à carga, a operação vai ser repetida, escolhe o itinerário, tem informações sobre o local exato do objetivo. E informa o alferes que vai acompanhá-los, levam uma equipa de sapadores. E a tropa fica estarrecida quando o major dos papéis se põe à frente da coluna. Lá chegam junto ao objetivo, quem ali vivia fugiu espavorido, o major mandou deitar fogo às palhotas, o regresso é acompanhado de problemas, rebentamentos próximos, logo um furriel com um pé esfacelado, tempos depois chegou um helicóptero que levou o ferido e desapareceu através das árvores. O major vai derreado, mal entrou no quartel foi tratado no Posto de Socorros.

Já tratado, informou o comandante:

“Foi muito útil esta operação porque cheguei à conclusão que o IN está a passar informações no sentido de encaminhar a nossa atenção e a nossa atividade operacional para zonas que já abandonou”.

Tudo isto aparece escrito de forma séria, a galhofa fica para quem experimentou operações frustradas e comentários ignorantes como este. Muda a cena, regressa o capitão, a companhia arruma a trouxa e parte numa LDG para novo aquartelamento, entremeiam-se solilóquios, estamos agora num quartel que aparentemente tem acalmia, vão começar os males da paz podre até que a companhia regressa a Bissau, daqui se parte para uma missão de apoio à construção de um novo aquartelamento.

Segue-se o humor negro de diferentes quadros de regresso, o destino de cada um, é a última cena do último ato, lá no navio que os transportava de regresso a Lisboa os alferes disparavam frases, interrompiam-se, não é nada como tu dizes, o que se passou foi o seguinte, não, não foi assim, um alferes médico não gostou daquela gritaria com fuzis verbais, pediu-lhes para deixarem a guerra em paz, o alferes Félix respondeu-lhe que não era capaz, não fizeram uma “guerra santa”…

Cai o pano, soube a pouco, exige-se que o Alberto Branquinho volte em breve, depois das brejeirices desta novela.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)

11 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Parábéns, Alberto, é o teu décimo livro, entre prosa e poesia... Obrigado pelo exempla, autografado, que me mandaste pelo correio, para a minha morança na Lourinhã. Prometo lê-lo com tempo e vagar, e fazer a minha pessoalíssima nota de leitura...~

Um abraço aqui de Candoz, com o teu Douro, ali ao fundo, em Carrapatelo, e Montemuro em redor... Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O livro pode ser adquirido aqui:

https://www.sitiodolivro.pt/

Anónimo disse...

Parabéns Alberto Branquinho por este pequeno mas grande resumo da vida e na morte de um Pelotão, uma Companhia, um Batalhão, sabe-se lá onde e quando! Pouco interessa acontecia em toda a parte.

Não tenho infelizmente histórias destas para contar, nem as saberia escrever desta forma, estes dons são só para alguns, a maioria não sabe escrever nada,

Gostei das guerrilhas entre Alferes, Capitão e o Major - o oficial de operações...

Fez-me logo lembrar as minhas guerrilhas com o nosso oficial de operações, já aqui muito citado, mas eram por outras razões, não pela guerra em si mesma, mas por razões que nada tinham a ver com a guerra.

A reacção do Furriel Matos fez-me lembrar as minhas reacções a quando dos ataques ao quartel, pegava na máquina fotográfica e lá tirava umas fotos.
Uma vez depois de acabar um dos ataques, também peguei na minha G3 e de noite e com a raiva de me acordarem, descarreguei tudo no mato escuro, devo ter atingido alguns mosquitos.

Virgilio Teixeira



Hélder Valério disse...

No sábado, na Feira do Livro de Lisboa, em visita ao Zé Ferreira, encontrei alguns amigos "tabanqueiros" e, entre eles, lá estava o Alberto Branquinho.

Na nossa conversa também me deu a novidade desse recente lançamento e sempre me foi confidenciando que se trata, em sentido mais ou menos figurado, de "remoques" aos "combatentes de secretaria" e aproveitou para me "acarinhar" dizendo que isso também incluía o pessoal das Transmissões.
Lá tive que "defender a dama" relembrando que sem informações um combatente anda às cegas... e as "informações" têm que ser transmitidas e recebidas...

Como é natural, ainda não li o livro mas já li outros do Branquinho.
Quando "cheguei" ao Blogue o Branquinho pontuava uma série que tinha como tema "Não venho falar de mim nem do meu umbigo" consubstanciando, naturalmente, uma crítica velada (ou nem tanto) aos que colocavam sempre as suas narrativas centradas nas suas pessoas, geralmente com empolamento. Depois li o "Cambança" e um outro com alegorias "à cave, ao sótão e aos andares intermédios", em jeito de conto, estilo que muito aprecio.
Irei com toda a certeza ler esse "Deixem a Guerra em Paz" para ter a certeza se é mesmo crítica aos "heróis de pacotilha" aos "ficcionistas de feitos de guerra" ou se, eventualmente, poderá ser um libelo contra o "excesso de recordações de guerra".

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Virgílio. não penses que de noite só havia mosquitos... Recordo-me de uma cena, passada em Bambadinca: um básico (, em geral eram ajudantes de cozinha, numa guerra também é preciso alguém que descasque as batatas...), teve alucinações e saltou aos berros, a alertar a malta para os elefantes que estavam junto ao arame farpado...

Abraço, Luís

Valdemar Silva disse...

Sim, e também há burros junto do arame farpado.
Uma vez, em Canquelifá, a rapaziada que estava, de noite, num dos abrigos, começou a avistar um turra que puxava um caixote de munições, junto ao arame farpado.
Esperaram um pouco, até o vulto chegar à zona de tiro.
Mas, não me recordo se chegou a haver fogo ou não, afinal era um burro que se tinha soltado e puxava o toro em que estava seguro.

Valdemar Queiroz

(em Canquelifá houve várias peripécias com burros)

Anónimo disse...

Luis, eu disse que devo ter atingido alguns mosquitos, pois os turras já tinham há muito arrepiado caminho, não há nenhuma outra segunda intenção, que fique bem claro.
De noite há sempre mosquitos, e pelos vistos outros seres estranhos, reais ou imaginários, incluindo o IN.
Boas noites, ta na hora de dormir. Tive um dia cansativo e cheio de emoções fortes.

Virgilio Teixeira

Anónimo disse...

Ao meu Amigo e Camarada...SUBTIL APURADO.


"Sou responsável pelo que escrevo e näo de o que tu entendes"

Parabéns pelo novo livro.
(Och glad Midsommer!)

Grande abraco do J.Belo.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Alberto,acabo de ler a tua novela. De um fôlego.Na cabeleireira cá da terra. Tenho uma porrada de mulheres á minha frente. Nunca ouviram falar desta "drole de guerre"... E, se ouviram, fizeram por esquecer depressa.... LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Alberto,acabo de ler a tua novela. De um fôlego.Na cabeleireira cá da terra. Tenho uma porrada de mulheres á minha frente. Nunca ouviram falar desta "drole de guerre"... E, se ouviram, fizeram por esquecer depressa... LG

Alberto Branquinho disse...

HELDER (Apesar de não seres o "mais velho" - que, na Guiné, vale muito)
Transmissões, transmissões: lá, no meio da história, funcionam sempre. Até os "rádio-banana".

JOSÉ BELO
ATT: A falta da vírgula (,) entre SUBTIL e APURADO não tem nada a ver comigo.
Obrigado pelo desejo de boas férias (de Verão), mas deverão ser quentíssimas, o que não me agrada. MAS, compreende-se: desejos de esquimó...
E, porque não sei jogar à "sueca", vai em inglês: Thanks! Same to you.

LUÍS
Já vi que não há barbeiro em Candoz...
Aposto que essa da "drôle de guerre" deve ter sido no momento em que sorrias, ao ler a história do major operacional.
Vai seguir um outro Douro-abaixo/Douro-acima (Barca d'alva - Porto).

Obrigado a todos os que comentaram
Alberto Branquinho