sexta-feira, 21 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Estamos ainda nos primeiros meses da Comissão do BCAV 490, agosto e setembro de 1963. A batalha do Como ainda vem longe, será em fevereiro do ano seguinte. Aí teremos documentação suficiente, basta pensar nesse arauto que é o Armor Pires Mota e o seu magnífico "Tarrafo". Mas não só. Na biografia de Alpoim Calvão, intitulada "Honra e Dever", os três autores descrevem minuciosamente a Operação Tridente, a participação da Marinha e as belas páginas escritas pelo mais condecorado Oficial da Marinha Portuguesa.
António Santos Andrade repertoria os primeiros acidentes graves, recorda os jogos de futebol, fala em guerrilheiros capturados e no muito terror que por ali se espalhou, o muito sofrimento de vítimas inocentes, como é uso e costume em todas as guerras.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (11)

Beja Santos

“O Alferes Brasil foi ferido.
Que triste coisa passaram,
o Teodomiro e o Peixeiro
nessa rodada calharam!

Saindo para a missão
que tinha a desempenhar,
teve grande azar
o Alferes do 1.º Pelotão.
No lado oposto ao coração
um tiro lhe foi metido.
O homem deu um gemido
não há ninguém que se esqueça
e com estilhaços na cabeça,
o Alferes Brasil foi ferido.

Apanhámos muitos prisioneiros:
um deles, sapador,
fez umas coisas de terror.
Ele e os seus companheiros
malvados e traiçoeiros,
duma infeliz preta abusaram,
e uma pobre rapariga cegaram.
Aquilo metia dó,
a seguir a Mamboncó
que triste coisa passaram.

Um dia de manhã cedo,
nesse dia eu não fui lá,
entre Bissorã e Mansabá,
os rebentamentos metiam medo.
No meio daquele arvoredo,
feriu-se o Cassifre, bom companheiro,
o Gaimota do morteiro
foi ferido noutra altura;
e sofrendo grande amargura,
o Teodomiro e o Peixeiro.

Agora vou-lhes contar
qual era a minha distracção.
Quando havia ocasião
a bola ia jogar.
Também gostava de conversar
com os bandoleiros que se aprisionaram.
Um dia uma mina armaram
dando-se um rebentamento que estremecia
e três rapazes da Companhia
calharam nessa rodada.”

********************

Bissorã e Mansabá são sinónimos, logo em 1963, de que a região do Morés dinamizava a guerrilha, espalhava-se o terror, raptava-se, destruíam-se tabancas, executavam-se os recalcitrantes, são regras de ouro do caos, as populações abandonam haveres, os seus lugares, recolhem-se aos destacamentos militares ou atravessam as fronteiras. O bardo dá notícias de gente ferida, temos aqui nova oportunidade para voltar à companhia de “As Ausências de Deus”, de António Loja:
“Depois de uma emboscada sofrida na estrada Mejo-Guileje fiz seguir de helicóptero para o Hospital Militar de Bissau, gravemente ferido, o Cabo Calçada, um dos mais genuínos cavalheiros que encontrei na guerra. Apanhara uma rajada de metralhadora no tórax e olhei apreensivo para a ferida. O furriel-enfermeiro não me encorajou:
- É muito grave, disse.

Há homens que morrem antes da morte chegar, outros que a recusam com convicção, mesmo quando ela se agarra vorazmente ao corpo da sua vítima, dedos enclavinhados e dentes afiados de vampiro. Calçada era um desses homens. Na estrada, quando lhe dirigi uma palavra de encorajamento, ao ajudar a içá-lo para o helicóptero, ele olhou-me bem a direito, olhos nos olhos, tentou fazer um sorriso que pareceu um esgar e (cúmulo da malícia para espantar a morte) piscou-me o olho. Não conseguia falar mas o gesto expressivo não poderei jamais esquecê-lo.
O contacto com o hospital, que fiz posteriormente através de um alferes que se deslocou a Bissau, foi optimista mas ainda problemático: tinham-lhe extraído um pulmão e ele estava por um fio. Mas o alferes referiu a imensa vontade de viver que transbordava da sua atitude, posto que não das suas palavras. É que a falta do pulmão o impedia ainda de falar e só a sua atitude de desafio face à morte convencia quem o encontrava que o homem era invencível.

Dois meses depois fui chamado ao Quartel-General em Bissau e inclui no meu itinerário uma passagem pelo hospital para visitar os meus soldados lá internados, entre eles o Calçada. Na recepção identifiquei-me, colhi informação do quarto onde ele se encontrava e para lá me dirigi. A cama onde ele deveria estar, impecavelmente arrumada, fez-me pensar no pior. Teria morrido e nada me teria sido comunicado? Saí para o corredor em direcção à recepção, para uma informação precisa. De repente, vejo avançar em sentido oposto um homem magro, em pijama, agarrado a um suporte metálico com rodízios onde se suspendia um invólucro transparente com soro. O homem olhava fixamente para mim, que de tão perturbado, mal via o que se passava à minha volta. Mas, quando levantei para ele o meu olhar descobri a cara risonha do Calçada, que de novo me piscava o olho e me dizia, arfando:
- Ainda cá estou, meu capitão.
E estava. Para ficar. Porque era mesmo invencível. Dera um pontapé na morte. Dispensado da guerra veio lutar por uma causa mais digna: o dia-a-dia de um ser humano com vontade de viver.” 

A guerra é farto pasto para desentendimentos entre armas, hierarquias, desenvolve contenciosos que têm na raiz a petulância do estatuto, vaidade das vaidades. E António Loja conta um episódio quase parente de uma ópera-bufa vivido entre um alferes de infantaria e um tenente dos helicópteros:
“O dia seguinte, em Mejo, iniciou-se sem novidades. Como previsto, o helicóptero de apoio à nossa operação veio pousar no campo de futebol anexo ao quartel e, montada a segurança àquele, o piloto veio confraternizar com o Alferes Ávila, que o tratou com a maior urbanidade possível no cu de Judas que era Mejo. Em chegando a hora de almoçar, o Ávila, que não escondia as dificuldades de providenciar uma hospitalidade mais generosa, convidou o piloto para uma ração de combate. O que obviamente desagradou ao tenente, habituado às mordomias da messe da Força Aérea em Bissau. E disse, com o ar superior de quem fez exame de condução de helicópteros e tem por isso o rei na barriga, que ia almoçar a Bissau. Aí as coisas aqueceram. O Alferes Ávila, Comandante interino do quartel de Mejo, olhou de frente o tenente, que apenas comandava o helicóptero e disse-lhe, nariz no ar:
- O meu tenente veio a Mejo para dar apoio à operação e está às ordens do meu capitão, que o chamará, se for preciso. E só sai daqui quando eu receber instruções dele e para o local que ele indicar. 
O aviador achou que chegava ostentar os galões e voar para a capital:
- Vou até Bissau e volto quando acabar de almoçar.
Mas estava enganado. Ávila respirou fundo e deu um berro:
- Não vai, não! O meu tenente sabe onde tenho montada a doze sete? Na casamata que fica sobre o campo de futebol. Mesmo em frente do seu ‘brinquedo’.
Parou para tomar fôlego e deu outro berro, já noutra direcção:
- Cabo Chico, vai para a metralhadora e, se o helicóptero levantar, dá-lhe uma rajada das grossas.
Chico era a obediência em pessoa. Levava à risca o princípio de que ordens são para obedecer. E ninguém se lembrava de desobedecer ao Ávila.
O cabo correu para a casamata e preparou-se para actuar. O tenente-aviador viu as coisas mal paradas. Voltou cabisbaixo para a messe onde o Ávila, generosamente, lhe ofereceu um uísque. E com este abriu o apetite para a ração de combate que era ainda pior do que dobrada desidratada”.

O nosso bardo fala em jogos de futebol, há muita literatura avulsa sobre lazeres desta natureza, era uma belíssima forma de descarregar a tensão. Não havia destacamento sem campo de futebol, as unidades, grandes e pequenas, formavam equipas, combinavam-se encontros para o tempo de folga. Recordo da minha vida em Missirá (no Cuor) que se incentivava jogos entre caçadores nativos e milícias, a pequenada tinha todos os apoios possíveis, os candidatos a guarda-redes até se podiam ufanar de ter luvas e joelheiras e bonés, indumentária a preceito para aqueles tempos. Deverá ter ficado memória entre gerações, dos jogos e respetivos equipamentos, pois quando ali regressei, em janeiro de 1990, um dos bilhetinhos trazia o pedido de equipamentos, bola, redes, como no passado. E comovi-me muito, mesmo sabendo como pesa a narrativa oral e o desfiar da memória africana. Em Bambadinca, houve jogo entre oficiais e sargentos, guarda-se fotografia no blogue, fui para guarda-redes e comportei-me como um bom frangueiro. A equipa incluía o 2.º Comandante do BCAÇ 2852, Major Ângelo da Cunha Ribeiro, o nosso médico, David Payne Pereira, o Ismael Augusto, o Fernando Calado, o Abel Rodrigues e o Carlão, da CCAÇ 12, entre muitos outros. E foi num jogo de futebol que o nosso oficial de transmissões, o Fernando Calado, se acidentou com gravidade, ele aparece numa fotografia com um braço engessado, numa parede bem estilhaçada durante a flagelação de 28 de maio de 1969.
A guerra também passava pelo campo de futebol…

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19900: Notas de leitura (1188): Uma história antiga, do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", da autoria de Francisco Baptista, com lançamento no próximo dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Mogadouro

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Que extraordinária imagem:
'.....tentou fazer um sorriso que pareceu um esgar e (cúmulo da malícia para espantar a morte) piscou-me o olho'

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Beja ou Vinhal

"calharam nessa rodada"
este último verso está errado,
Pois no livro a págs 17 consta:
"nessa rodada calharam"
para rimar com "armaram"
Abraço
Carlos Silva