quarta-feira, 19 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19903: Historiografia da presença portuguesa em África (161): "Curiosidades de um Africanista", um manjar de príncipe para etnógrafos e estudiosos da linguística (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Na chamada secção dos Reservados o investigador deve estar preparado para surpresas e industriado pela paciência, pois nem tudo o que cai na rede é peixe. No caso vertente era peixe e do graúdo, ainda que com destinatários bem direcionados. Estas Curiosidades de um Africanista denotam um homem profundamente interessado na diversidade cultural, no conhecimento das tradições, nos provérbios, no registo de recomendações de índole prática. Fica-nos a incógnita se este autor desconhecido conheceu um cientista guineense de grande valor, o padre Marcelino Marques de Barros, que se dedicava a matérias afins. Pouco importa que esta questão fique definitivamente sem resposta, está aqui um manjar de príncipe, quem quiser dirija-se à Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário


Um manjar de príncipe para etnógrafos e estudiosos da linguística

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia consta um documento intitulado “Curiosidades de um Africanista”, apresentado como caderno sobre o crioulo de Cabo Verde, Guiné e Sul de Angola, um apanhado de termos de crioulo e português, poemas e orações em crioulo, provavelmente obra elaborada ainda no século XIX e publicado no início do século XX.

Seja-se etnógrafo ou filólogo, lê-se este conjunto de registos, de autor desconhecido, com imensíssimo prazer, foi alguém que viajou e teve a pertinência, a imensa curiosidade em registar uma imensidade de manifestações culturais, tudo apresentado numa forma de almanaque, como se sintetiza.

Aparece o crioulo da ilha Brava, ele registou a lamentação de uma viúva, do crioulo de Santo Antão aparece-nos um provérbio: Quem quiser trabalhar que trabalhe, que eu não estou para destemperar o meu corpo; mais adiante temos uma tradição oral do século XVIII, A confissão por um canudo.

Se é verdade que há apontamentos sobre o manatuto (Timor), Cabo Verde e Sul de Angola, a Guiné tem a fatia do leão. Logo a poesia Mandinga, escreveu o seu autor:
“Um dia lembrou-se uma serpente de se transformar num elegante mancebo e foi pedir a mão de uma donzela que teimava em não casar se não com aquele a quem a natureza dispensasse a fatal necessidade de dejecções fáceis e das secreções dos rins; feito o exame, obteve a noiva que levou para sua casa, mas de improviso as caravanas que iam passando ouvem uma voz que se parecia com a de um náufrago à beira-mar: Ó da caravana, ó da caravana! Digam a meus pais que o homem que me deixaram em casamento transformou-se numa serpente que me traz ligada nas suas roscas, não sei se me esmagará, não sei se me devorará”.

Nessa mesma página, o autor anota recomendações para o desembarque:  
“Sempre que se desembarque em qualquer ponto em África, deve-se tomar uma cápsula de quinino antes do desembarque, embora a viagem seja de um porto africano para outro. Não tendo cápsulas, divide uma mortalha de cigarro em duas partes, deita-lhe o quinino, enrola as quatro pontas. Em qualquer dos casos, bebe água para facilitar que a cápsula passe para o estômago”.

Este autor desconhecido esteve atento à poesia Biafada, e deixa-nos um curioso registo:
“No tempo de uma horrorosa fome, uma pequena deu a seu irmãozinho uns feijões para o acalentar; chega a mãe, que se enfurece tanto que a pequena foge e vai esconder-se no tronco de uma árvore que ensombra uma linda fonte. Todos os que vinham do povoado buscar água ouviam esta voz inocente, saudosa e de uma feição primitiva: o que desperta os ecos desta fonte aceita o recado que lhe dou. Dizei a minha mãe que foi por causa de uns feijões que dei ao meu irmãozinho que vivo metida neste poilão há tanto tempo que já estou muito crescida, o meu cabelo já se arrasta pelo chão, e os meus seios já estão pendentes e o meu nome é Sirá”.

Como todas estas páginas se organizam em forma de almanaque, temos a seguir uma informação para quem vivia naqueles trópicos: o Sr. General Henrique Dias de Carvalho era da opinião que se devia tomar um cálice de conhaque antes de se sair de casa para equilibrar o interior do corpo com o calor exterior.

Segue-se uma elegia aos Balantas, é talvez o texto mais terno e de melhor organizada estrutura poética. Diz assim:
“O dia mais sombrio que enluta a alma dos mancebos Balantas é aquele em que são obrigados na idade dos seus 20 a 25 anos a irem ao centro dos bosques para serem circuncidados, a fim de entrarem na classe dos homens sérios pelo casamento. Oiçamos a voz de um blufo de Nhala que vai seguindo para o bosque sagrado: Ai dos meus! Sobreveio uma calamidade às terras de Nhala! Ah! Já declina o sol! Sinto uma coisa que me consterna imenso. Ai! Já declina o sol! Sigo com os meus companheiros o caminho da floresta. Ah! Já declina o sol! Ai, meu pai! Esta lembrança entristece-me muito! Ah! Já declina o sol! E depois enumera o nome de vários mancebos que o acompanham neste caminhar para a floresta. E termina dizendo: Não resta dúvida que me levam à floresta! Ah! Já declina o sol!”

O dicionário feito em Bolama vai entusiasmar todos aqueles que estudam línguas étnicas comparadas. O que este autor desconhecido fez foi listar termos em português, em Mandinga, em Manjaco da Costa de Baixo e Pexixe e língua Papel. O assunto interessará particularmente a estes filólogos mas talvez os historiadores se interessem na razão da escolha dos termos que este autor desconhecido selecionou. Como é óbvio, não houve acaso nas palavras consideradas mais relevantes: pataco, peso, shilling, laranja, panela, vai buscar, cedo, pela manhã, além, noite, garrafa, casa, açúcar, café, pão, vinho, carne, carneiros, vender, salgado, seco, chuva, bom dia, sem álcool. E não se incomoda mais o leitor com estas curiosidades de alguém que vai ficar eternamente desconhecido, que pisou a Guiné e esteve atento a provérbios, a poesia, registou conselhos e pretendeu fazer um dicionário. Não se perca de vista que por essa época o padre Marcelino Marques de Barros, natural da Guiné, onde foi seu vigário-geral, sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, produziu o primeiro dicionário de crioulo guineense, ficará por saber até que ponto este autor desconhecido não terá sido influenciado pelo primeiro grande mestre da cultura guineense.






Cartão-postal da primeira igreja de Bolama, cerca de década de 1900

Fachada da Igreja atual de Bolama em 2017
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (159): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)

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