Queridos amigos,
Vale a pena insistir, não há ao nível da novel Província da Guiné nenhum outro documento que se equipara ao trabalho do médico Damasceno Isaac da Costa, o título é Relatório do Serviço da Delegação da Junta de Saúde da Vila de Bissau, referente a 1884, é um registo detalhado sobre história, geografia, inevitavelmente o estado sanitário, comércio, usos e costumes; é impressionante o conjunto de observações que teceu sobre o presídio de Geba e agora está a passar a pente fino Bissau, é um médico de saúde pública com um certo olhar de antropólogo, etnólogo e etnógrafo, diz verdades com punhos. Um outro aspeto curioso é a publicação deste farto documento aos pingos, vem de uma série de Boletins Oficiais entre abril e novembro, e aqui envereda por 1885. Nos reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, creio que por legado de um filho, consta o documento que se estende de 1885 a 1888, vou agora revê-lo, pode ser que seja repetitivo, não encorajo as repetições fastidiosas. Seja como for, creio que especialistas como Philip Havik têm nestes relatórios do Dr. isaac da Costa fertilizante para muita investigação.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (11)
Mário Beja Santos
Espero um dia vir a perceber como é que este Boletim Official da Província da Guiné Portuguesa, em pleno ano de 1886 não faça eco dos grandes acontecimentos que ocorreram por esta data, a começar pela Convenção Luso-Francesa e a perda do Casamansa, que foi motivo de grande agravo na Guiné, como está plenamente documentado. É o relatório do médico, Damasceno Issac Costa, que ganha realce, apresenta-se como um documento do serviço da delegação da Junta de Saúde da vila de Bissau, excede em toda a linha, como temos visto, falámos anteriormente de que o facultativo se espraiara na história, documentou em profundidade a vida do presídio de Geba, fala dos usos e costumes, do que comem os guineenses, as cerimónias do casamento, até do batismo, é por vezes moralista dizendo que os gentios consentem que os seus filhos sejam batizados sem que eles mesmos o sejam. E tece considerações como se fosse antropólogo e mesmo etnólogo:
“Os gentios, mesmo os que possuem alguma luz de razão para descortinar a verdadeira religião da falsa, condenaram o sacramento do matrimónio, e dizem que todos que este contraem ficam irremediavelmente sujeitos à infidelidade da consorte. A origem deste proceder semisselvagem reside noutro princípio: a tendência para o mal é fácil, a sua vereda obtém-se facilmente e para ela se caminha com a rapidez dos ventos: o contrário acontece com a virtude, que além de difícil, é espinhosa.
Os povos de Bissau e Geba, como os de toda a Guiné, amam a primeira dessas veredas: amarram o pano (casam-se) com uma bajuda (donzela) depois de adquirir um certo número de bens, com grandes dispêndios e pompas, e quando a fortuna lhes sorri risonha, eis que novamente procuram outra bajuda para se casar, e assim vão procedendo, enquanto os seus haveres se forem multiplicando, acontecendo muitas vezes ter um único indivíduo 7, 8 ou 9 mulheres. Os gentios da Guiné, conquanto selvagens, são suscetíveis de se converterem ao cristianismo e de receber educação, pois que possuem em subido grau orgulho de se transformarem em brancos, isto é, de se civilizarem. É, pois, baseado neste último princípio, que os gentios travam relações de amizade com os habitantes da praça a quem chamam de seus camaradas que lhes confiam a educação dos seus filhos; não tarde, porém, que o elemento civilizador penetre nestes homens de amanhã, que com anuência dos seus próprios pais se submetem espontaneamente à regeneração pelas águas do batismo; porém, os pais ainda crentes no feiticismo, recusam-se a receber este último sacramento.”
Isaac da Costa muda agora de agulha para falar da população da ilha de Bissau e dos seus usos e costumes. População composta por europeus, mestiços e indígenas. Brancos têm pouca permanência, mas são a fiel expressão da ação perniciosa do elemento palustre; o europeu não se aclima na Guiné em geral, o presídio de Farim é o mais insalubre de todos os postos pertencentes à província.
“Os mestiços possuem temperamento misto, chegam a viver com 60 e 70 anos de idade e ainda gozando de perfeita saúde. Os indígenas, incluindo os Grumetes, possuem em geral um temperamento linfático e uma constituição fraca. O excesso de bebidas alcoólicas, o uso de carne e peixe corruptos e leite azedo, e a insolação, são fatores que dão origem a variadas entidades mórbidas. As crianças até à idade de 2 anos morrem mais de metade e as que saírem incólumes da mortífera luta que travam os elementos que as cercam, contraem lesões viscerais importantes, dando origem a doenças graves e incuráveis.”
O tema religioso persegue o médico, fala de várias catequizações, estima que a religião seja a base fundamental da educação e civilização destes povos, apela a uma escolha correta de missionários que pela sua abnegação, e com os olhos no céu não queiram ver coisas terrenas senão as dores que hão de consolar, as feridas que hão de curar e as trevas em que hão de espargir a doce luz da sua palavra cristã. E volta a centrar-se no tema dos usos e costumes:
“Em geral, os Papéis são indolentes e cobardes, podendo dizer-se deles o que disse um dos nossos estadistas: fazem tudo quanto se lhes sofre, e sofrem tudo quanto se lhes faz. Os Papéis que vivem em Bissau dividem-se em dez tribos e povoam dez distritos. Destas dez tribos, quase todos os dias apresentam-se na praça com as suas produções que lhes fornece a sua limitada agricultura e indústria, as de Antula, Antim, Bandim e Biombo. O régulo é muito exigente em pedidos que faz aos seus amigos cristãos, aos quais chama seus camaradas e que adquire quando estes vão visitar os seus territórios. A sua residência é sempre isolada e cercada unicamente das casas das suas mulheres que são obrigadas a trabalhar incessantemente para sustentar os vícios do rei, sem outra recompensa ou glória que a de serem chamadas mulheres do rei. Em ocasiões festivas, os régulos apresentam-se uns de calça e casaca vermelhas e chapéu e trazem na mão um bastão encimado por um espelho, e outros envoltos em conchas pintadas. O régulo de Bandim goza de mais foros e prerrogativas que os dos outros distritos, pertencendo-lhe por direito presidir à cerimónia que precede a coroação dos outros régulos. Os ministros e os balobeiros imitam os régulos no seu vestuário em ocasiões festivas. Os homens entregam-se ao trabalho insano a fim de, por meio deste, obter um certo número de vacas. Adquirida esta riqueza, tratam de amarrar o pano (casar-se).”
Isaac da Costa descreve minuciosamente não só as cerimónias do casamento, como o dote e a circuncisão, e muda de tema: a higiene pública.
“A vila de Bissau está cercada de pântanos: a Oeste está situada uma vasta extensão de terreno sujeito ao fluxo e refluxo do mar, terreno que recebendo ao mesmo tempo a água doce proveniente das chuvas e nascentes, convertem-se em um pântano bastante extenso.
A Sul, a vila é limitada pela praia que na baixa-mar descobre-se numa grande extensão e deixa exalar um cheiro infecto promovido pela decomposição e putrefação do limo, plantas, animais, lixo e várias imundícies intimamente misturadas com a lama de si corrupta. O povo que circunda a fortaleza e que vem à povoação e aos pardieiros dispersos pela povoação, recebe durante o ano imundícies de toda a espécie.”
Tudo se conjuga para provocar as variadas moléstias que manifestam na vila.
E diz mais este médico:
“Os tripulantes dos navios de longo curso demandam o porto de Bissau, é raro que durante a sua permanência de 15 a 20 dias fiquem incólumes de perniciosa influencia das emanações do porto, pois apesar de cheios de vida e rubor nas faces, apresentam-se profundamente anémicos, sendo preciso quase sempre baixarem ao hospital. É o que repetidas vezes tenho observado desde 1879.”
Refere com detalhe a higiene das fábricas, o estado dos depósitos de substâncias alteráveis, o funcionamento do mercado, o matadouro, o estado das habitações, as cubatas dos Grumetes que vivem fora das muralhas, a alimentação, a limpeza das ruas e mesmo dos cemitérios. Refere-se assim ao cemitério municipal:
“Acha-se em deplorável estado, aquele lugar onde repousam as venerandas cinzas dos nossos semelhantes, está cheio de pedras e ervas maninhas; o seu solo em vez de plano é desigual, as sepulturas não se distinguem do resto do terreno, à exceção de oito, que tem a aparência daquelas, por se acharem cobertas irregularmente com alguma porção de terra; elas não possuem cruzes ou marcos funerários que marquem a época do enterramento, circunstância esta gravíssima, sobretudo quando se trata de proceder às exumações. Atrás do cemitério, junto à povoação dos Grumetes, existe uma pequena extensão de terreno como se nota um grande número de sepulturas, das quais doze são recentes, sendo naquele lugar, segundo me consta particularmente, inumados os cadáveres de indivíduos falecidas extramuros. O cemitério e a vasta campada que o circunda, representam, pois, um outro foco de insalubridade.”
E dá sugestões para que se adotem urgentemente medidas para contrariarem esta calamidade.
Inabalável da sua luta pela saúde pública deixa escrito num relatório que escreveu à câmara municipal e à administração do concelho, indicando as fontes, prédios e lugares públicos que deviam ser limpos e murados; “permaneceram, porém, mudas estas duas estações, tomando sobre si a responsabilidade moral das vítimas a quem a insalubridade deu margem.” E aproveita para citar os dispositivos legais conferidos à câmara, desde o tempo em que a Guiné era administrada por Cabo Verde, uma lista de proibições e as respetivas penalizações. “Tudo a bem no papel, em execução nada.”
E a seguir o seu relatório dirige-se para os hospitais e para o serviço médico-militar.
Ponte-cais de Bissau, construída pelo governador Carlos Pereira na década de 1910
A Baía de Bolama nos tempos da tentativa de ocupação britânica, segunda metade do século XIX
Trecho do rio Geba, imagem ainda do século XIX
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 13 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26150: Historiografia da presença portuguesa em África (452): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (10) (Mário Beja Santos)