Luís Graça & Camaradas da Guiné
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27545: Efemérides (380): No passado dia 10 de Dezembro, a Força Aérea Portuguesa condecorou as nossas Enfermeiras Paraquedistas com a Medalha de Mérito Aeronáutico, Primeira Classe. A cerimónia decorreu no Comando Aéreo, em Monsanto, e contou com a presença do Ministro da Defesa Nacional
A Força Aérea condecorou as Enfermeiras Paraquedistas com a Medalha de Mérito Aeronáutico, Primeira Classe, numa homenagem que teve lugar hoje, 10 de dezembro, no Comando Aéreo (CA), em Monsanto.
Presidida pelo Ministro da Defesa Nacional (MDN), Nuno Melo, e na presença do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), General João Cartaxo Alves, e de outras altas entidades militares e civis, a cerimónia pretendeu homenagear as mulheres que desafiaram as tradições da época e, com coragem e audácia, envergaram o uniforme da Força Aérea, arriscando a vida em prol de outras.
Conhecidas como "anjos descidos dos céus", entre 1961 e 1974, a Força Aérea formou enfermeiras paraquedistas para atuar em cenários de conflito, tornando-se estas mulheres pioneiras na presença feminina militar mas sobretudo por terem dado início a uma missão que perdura até aos dias de hoje: as evacuações aeromédicas e os transportes médicos por via aérea.
Entre as Enfermeiras Paraquedistas, dezasseis marcaram presença, sendo-lhes impostas a condecoração pelo MDN e pelo CEMFA.
Em jeito de homenagem, o CEMFA usou da palavra para enaltecer tudo aquilo que aquelas militares representaram, não só para a Força Aérea, mas para Portugal, e o impacto direto do legado delas “na evolução da doutrina aeromédica, na formação de novas gerações de militares e na valorização da mulher no seio das Forças Armadas”.
A Medalha de Mérito Aeronáutico destina-se a galardoar os militares e civis, nacionais ou estrangeiros, que no âmbito técnico-profissional revelem elevada competência, extraordinário desempenho e relevantes qualidades pessoais, contribuindo significativamente para a eficiência, prestígio e cumprimento da missão da Força Aérea.
Depois das condecorações procedeu-se ao descerramento de uma placa de homenagem às enfermeiras paraquedistas que ficará eternizada no CA, enquanto órgão da Força Aérea com competência para na atualidade coordenar as missões de Evacuações e Transportes Aeromédicos.
No final da cerimónia, a enfermeira paraquedista com maior precedência entre as presentes, Maria Arminda Santos, agradeceu a homenagem prestada referindo que a Força Aérea é a sua segunda família, sendo impossível esquecer o tempo dedicado à instituição.
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Notas do editor:
A devida vénia ao site do Estado Maior da Força Aérea de onde foram extraidos, o texto e as fotos
Último post da série de 18 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27544: Efemérides (379): No dia 24 de Dezembro de 1969 o PAIGC instalou-se com armas pesadas junto à fronteira, mas dentro do Senegal, desencadeando uma violenta acção militar contra Cuntima (Eduardo Estrela, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2592/CCAÇ 14)
Guiné 61/74 - P27544: Efemérides (379): No dia 24 de Dezembro de 1969 o PAIGC instalou-se com armas pesadas junto à fronteira, mas dentro do Senegal, desencadeando uma violenta acção militar contra Cuntima (Eduardo Estrela, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2592/CCAÇ 14)
24 de dezembro de 1969
Três grupos de combate saíram manhã cedo para interditar os carreiros de infiltração do PAIGC no corredor de Sitató.
Era prática comum estarem no mato 2 ou mais grupos, por períodos de 48 horas. Cuntima tinha como guarnição militar 2 companhias operacionais, naquela época a CCAÇ 2549 e a CCAÇ 14, mais um Pelotão de Armas Pesadas e um Pelotão de Milícias.
A mim e a mais uns quantos sortudos, coube-me ir defender a minha querida pátria, sempre representada na figura da CUF, contra os malfeitores que se propunham tomar como seu, aquilo que lhes pertencia.
Não houve contacto. Mas por volta das 21,30 do dia 25 rebenta um fortíssimo ataque a Cuntima.
O PAIGC instalou-se com armas pesadas junto à fronteira mas dentro do Senegal e desencadeou uma violenta acção militar.
Em boa hora a nossa resposta os calou.
Recordo os clarões dos rebentamentos vistos do mato e a preocupação que se apoderou de nós.
Esse foi o meu primeiro Natal da guerra maldita.
Felizmente só houve uns quantos feridos ligeiros.
A todos os que continuam no activo, da memória e da confraternização, votos de boas festas na companhia daqueles que transportem nos vossos corações.
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Nota do editor
Último post da série de 27 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27468: Efemérides (378): foi há 55 anos a Op Abencerragem Candente (25 e 26 de novembro de 1970, subsetor do Xime), com meia dúzia de mortos de um lado e do outro
Guiné 61/74 - P27543: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (9): Rui Silva, ex-2.º Sarg Mil da CCAÇ 816; Artur Conceição, ex-Sold TRMS da CART 730/BART 733 e Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Esp da CART 3494/BART 3873
2. Mensagem natalícia do nosso camarada Artur Conceição (ex-Soldado TRMS da CART 730/BART 733, Bissorã, Jumbembém e Farim, 1964/66), com data de 17 de Dezembro de 2025:
Para todos os jovens da Tabanca Grande e suas famílias votos de um Feliz Natal e de um Novo Ano com muita Saúde, muita Paz e Muito Amor
Artur Conceição
3. Mensagem natalícia do nosso camarada Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Esp da CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 18 de Dezembro de 2025:
Caro Luís, bom dia,
Agora em Abu Dhabi, depois de termos passado um pequeno período de férias académicas no Índico.
Aproveito este contacto para enviar o meu postal de BOAS FESTAS, para ti e para os membros da "TABANCA", desejando a todos um SANTO NATAL e um melhor ano de 2026, na companhia daqueles que nos estão próximo, com muita saúde e algum patacão.
Anexo, ainda, duas fotos com um enquadramento natalício no interior do Reem Mall (centro comercial cá do burgo).
Um grande abraço de amizade para todo o colectivo.
Jorge Araújo + Maria João
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Nota do editor
Último post da série de 17 de Dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27540: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (8): Feliz Natal e um 2026 cheio de Afectos com Letras (Associação Afectos com Letras, ONGD)
Guiné 16/74 - P27542: Conto de Natal (26): o "tubabo" (branco), não-crente, mas africanista" (Artur Augusto Silva, 1912-1983) e o sábio muçulmano, o Cherno Rachide (1906-1993)
Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o Tubabo conversa com o seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o Tubabo, o branco, vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O Tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
— Irmão — retorquiu o Tubabo — então o crente não é superior ao infiel?
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
— Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima?
— Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Therno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
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1. Análise literário do conto
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Artur Augusto Silva (1912-1983) |
(i) Contexto e enquadramento
“Um conto de Natal” foi escrito em plena época colonial portuguesa e publicado em 1962, num momento em que a Guiné Portuguesa já vivia tensões políticas profundas.
O Natal surge não como episódio cristão ritualizado, mas como pretexto simbólico para, em pleno Forreá, o “sertão da terra dos Fulas”, fazer uma meditação universal sobre fé, fraternidade, tolerância, convivência entre os povos. Em 1962, ele já estava na Guiné há cerca de 15 anos.
O conto apresenta uma estrutura simples e contemplativa, quase estática:
a) Abertura descritiva: a noite luarenta, o espaço africano, a assembleia na morança.
c) Culminação simbólica: a reflexão sobre o descrente e a metáfora da lua.
Intelectual europeu desencantado: antigo crítico de arte, poeta, “pensador profundo”, amigo de Fernando Pessoa, que se autoexilou na África profunda, smbolo da crise espiritual do Ocidente moderno, que procura em África uma paz perdida e um espaço de liberdade (que não encontrava no Portugal continental ao tempo do Estado Novo); vive entre dois mundos: culturalmente europeu, de origem cabo-verdiana, existencialmente desenraizado; a lágrima final revela a sua condição de exilado moral e afetivo.
Este discurso é notavelmente antidogmático e ecuménico (o Concílio Vaticano II começaria nesse ano de 1962) e algo até particularmente ousado no contexto colonial e confessional do Estado Novo, já em plena guerra colonial (Angola, Índia, mas também guerra "surda" na Guiné, com repressão do nacionalismo emergente; o autor é defensor de presos políticos, acusados de serem militantes ou simpatizantes do PAIGC).
Este gesto literário funciona como uma crítica subtil ao colonialismo, sem ser panfletária nem entrar no confronto direto ou na rutura como fizeram outros africanistas ( Norton de Matos, Henrique Galvão, etc )
Aqui, o autor propõe uma ética da solidariedade radical, onde a fé não é critério de exclusão, mas ponto de encontro.
(v) Linguagem e estilo: prosa lírica, pausada, de grande serenidade; uso simbólico da lua: luz progressiva, paciência, revelação; léxico simples, mas carregado de densidade moral; diálogo com tom quase parabólico, aproximando o texto de uma narrativa sapiencial.
A oralidade africana e o pensamento filosófico europeu fundem-se num discurso híbrido, reflexo da própria identidade do autor.
O conto antecipa valores que hoje associamos ao diálogo intercultural, à convivência religiosa, à crítica do eurocentrismo, à denúncia do racismo e do supremacismo ("Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio.")
Este conto confirma Artur Augusto Silva (infelizmente falecido há muito) como um escritor de consciência ética profunda, que utiliza a literatura não para impor verdades, mas para escutar, ouvir e conhecer o outro, meditar e reconciliar.
O Natal, aqui, acontece sob a lua africana, e a sua mensagem é clara: a fé verdadeira manifesta-se no respeito pelo outro e na humildade perante a diversidade (humana, cultural, espiritual) do mundo.
(Pesquisa: LG + IA/ ChatGPT)
Notas de L.G.
(**) 15 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P57: O Cherno Rachide, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)
Dizem que o Cherno Rachide morreu em 1973 para não assistir ao advento da independência com o PAIGC como poder dominante no país. Sorte foi a sua que teve essa visão reservada só aos sábios e visionários, também eu, se tivesse dom e essa capacidade, preferiria morrer a assistir a essa "heresia" que, na Guiné-Bissau, chamaram de libertação nacional.
Liberdade teve o grande Cherno Rachide que preferiu partir desta para melhor para não ter que aturar com a brutalidade do partido "libertador". E foi um bom amigo do General Spinola, embora a sua familia fosse originária do Futa-Djalon. (...)
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27541: Historiografia da presença portuguesa em África (508): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1952 (66) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2025:
Queridos amigos,
É interessante notar como se vai processando a intervenção do Estado na economia, cresceu o funcionalismo, procuram-se melhorar as condições de vida das classes intermédias, dando-lhes habitação, vão surgindo novos bairros, mais alargados esquemas de saúde, substituem-se as fórmulas puramente coloniais como o imposto de palhota que dá lugar ao imposto indígena e na regulamentação não se deixa de fazer a menção de que importa pela via tributária ir procurando dissuadir a poligamia; a Guiné passa a ter uma associação de futebol, ganhou uma autossuficiência no arroz, exporta oleaginosas, não se encontra uma só menção às suas riquezas piscatórias. Usando a fórmula de Salazar, viver habitualmente, tudo parece que a Guiné engrenou nas regras do jogo colonial, procura-se melhorar a agricultura, convém recordar que Amílcar Cabral vai chegar com a sua primeira mulher e ele envidará esforços para melhorar as potencialidades da Granja de Pessubé, mais adiante irá fazer o recenseamento agrícola, a que o Governo português se comprometera com a FAO. No Boletim Oficial, até diminuíram as referências aos problemas disciplinares. Mas há homens avisados, como Castro Fernandes, antigo Ministro da Economia e agora administrador do BNU a quem cabe o pelouro da Guiné, que lançam alertas sobre a necessidade premente de passar a um novo patamar da evolução, é que o mundo vai entrar numa ebulição descolonizadora. Mas aqui, em Portugal, assobia-se para o lado.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1952 (66)
Mário Beja Santos
Não é explicito, quando lemos este Boletim Oficial, que a exploração dos recursos já não é feita por empresas estrangeiras, dera-se uma operação de nacionalização a partir do comércio, mesmo as concessões de aforamentos de terras recai em grandes empresas como a CUF ou a Sociedade Comercial Ultramarina ou agentes económicos portugueses, cabo-verdianos e sírio-libaneses. É assim que se pode compreender como no Boletim Oficial n.º 3, de 17 de janeiro, o Governador determina o preço das oleaginosas no ano corrente, é o caso da mancarra, coconote e óleo de palma. Quanto à mancarra definiam-se os preços de compra ao indígena (nos portos de exportação, nos centros comerciais do interior servidos por via fluvial e nas regiões fronteiriças) e ao intermediário; para o coconote eram definidos os preços de compra ao indígena e ao intermediário, o mesmo sucedendo para o óleo de palma. Eram preços fixos e únicos, o não cumprimento podia dar azo a infração. Dera-se, por conseguinte, uma intervenção clara do poder colonial do funcionamento da economia. É o que se pode ver também no Boletim Oficial n.º 10, de 6 de março, a intervenção do Governo nos preços das especialidades farmacêuticas, curiosamente os medicamentos aparecem associados às águas mineromedicinais. O diploma legislativo abre com o reconhecimento da necessidade de alterar as percentagens máximas de lucro pela venda de medicamentos e destas águas.
No Boletim Oficial n.º 11, de 13 de abril, Raimundo Serrão louva o Administrador António Carreira nos seguintes termos:
“O censo da população não civilizada de 1950 foi na Guiné inteiramente confiado ao quadro administrativo, desde as primeiras operações de notação até aos apuramentos finais. O Administrador António Barbosa Carreira foi nomeado Delegado-geral do censo da população não civilizada e como tal encarregado de dirigir, orientar e conduzir todos os trabalhos relativos aos apuramentos estatísticos da população não civilizada.
Com um devotado interesse, como é timbre deste funcionário, dedicou-se à difícil missão que lhe foi entregue, seguindo as instruções técnicas do Instituto Nacional de Estatística.
Nunca se fizera na Guiné trabalhos de notação e apuramentos concernentes à população civilizada com resultados tão satisfatórios e tão aproximados dos números verdadeiros, apesar das dificuldades que se tiveram de vencer e do volume da tarefa a realizar.
Na sua ânsia de produzir e bem servir, elaborou o Administrador Carreira logo nos princípios de 1951 o seguinte trabalho sobre o censo: ‘Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não civilizada de 1950’ que mereceu de Sua Excelência o Ministro de que este funcionário fosse louvado e que se fizesse uma tiragem de mil exemplares para serem distribuídos por todas as secretarias da administração civil, administrações e postos administrativos.
Durante cerca de um ano se trabalho afincadamente nos apuramentos do censo da população não civilizada, na Administração de Cacheu, sob a orientação e presença constante do Administrador Carreira. É altura para louvar este Administrador, por ter dirigido, orientado e conduzido com notável interesse, dedicação e conhecimentos todas as operações concernentes à missão que lhe foi confiada.”
Faz-se sentir, também da leitura deste Boletim Oficial, que se entrara num patamar da vida colonial em que o lúdico e o desportivo ganhara uma popularidade interclassista. No Boletim Oficial n.º 19, de 9 de maio, são aprovados os estatutos da Associação de Futebol da Guiné, esta tem como finalidade dirigir, regulamentar e difundir a prática do futebol na região, organizar os diferentes campeonatos, e dentro da estruturação estatutária definem-se as regras, como a começar pelos direitos e deveres dos sócios. Em 1951, ao abolir-se o Acto Colonial e instituir-se o Ultramar Português, procurava-se fazer a substituição do imposto palhota pelo imposto indígena. Para tal houve que aprovar o regulamento de identificação indígena, com a alegação de que este iria facilitar-lhes a obtenção dos documentos indispensáveis à sua identificação e simplificação dos seus contratos de trabalho, exigindo-lhes de futuro apenas a apresentação de um só documento, a caderneta indígena.
Bem curiosa é a Portaria n.º 400 que se publica no Boletim Oficial n.º 19, de 10 de maio. Fazendo referência à evolução que se estava a verificar nas principais províncias ultramarinas quanto ao sistema tributário, aconselhava-se a que na Guiné se substituísse imposto palhota por uma coleta de caráter exclusivamente pessoal. Veja-se as considerações enunciadas:
“Estando já reconhecido que a incidência de impostos sobre as mulheres tem vários inconvenientes e não fazendo sentido que se usem sistemas diferentes de tributação nas várias províncias do Ultramar onde existe o regime do indigenato, era intuitivo que também se aproveitaria a oportunidade para conceder às mulheres indígenas da Guiné os benefícios de uma completa isenção e assim se fez.
Esta isenção não colide com a legislação em vigor, em que se recomenda que se contrarie a poligamia, visto que, além da atividade dos nossos missionários e da influência das escolas primárias espalhadas pelo interior, o governador pode, por simples portaria, contrapor à imoderação daquele costume, medidas tributárias que dificultem o seu desenvolvimento, fixando aos homens casados um imposto tanto mais elevado quanto maior for o número de mulheres com quem casarem, além de uma.
É que na província da Guiné, a par da necessidade de combater a poligamia entre os indígenas, a circunstância especial de grande parte da sua população estar islamizada, por viver na vizinhança de territórios cujos habitantes são ardentes propagandistas do Islão, é aconselhável, mais do que em qualquer outra província do Ultramar, que se contemporize com usos e costumes tradicionais já profundamente arreigados.
Ao elaborar-se este regulamento teve-se ainda em atenção, como principal objectivo moral, criar novos hábitos de trabalho aos indígenas, que lhes permitam um sucessivo melhoramento das suas culturas, da qualidade e do aumento das suas produções, com consequentes probabilidades de melhores condições de vida.”
E é nesta lógica que se publicou o regulamento do imposto indígena em que todos os indígenas do sexo masculino, de idade compreendida entre os 16 e os 60 anos ficam obrigados ao pagamento do imposto indígena.
No Boletim Oficial n.º 22, de 29 de maio, louva-se o Engenheiro Emídio Corrêa Guedes pelo seu desempenho na realização da ponte Comandante Sarmento Rodrigues, em Ensalmá, sobre o Canal de Impernal, relevam-se as suas notáveis qualidades de organizador e realizador.
E finaliza-se com mais uma referência ao imposto indígena, consta do Boletim Oficial n.º 39, de 1 de outubro. Faz-se saber que os ensaios efetuados para a execução do regulamento do imposto indígena tinham demonstrado a dificuldade da sua aplicação, havia a necessidade premente de um reajustamento, procediam-se a alterações, como as que se mencionam: aos chefes de povoação só será concedida a isenção do pagamento de imposto quando nos respetivos agregados sejam coletados trinta ou mais contribuintes válidos; todos os indígenas desde que possuam duas ou mais mulheres devem beneficiar apenas da isenção do imposto base (150 escudos) pagando a diferença conforme o número de mulheres que possuírem, além de uma.
E estamos praticamente chegados a 1953, último ano da presença de Raimundo Serrão na Guiné.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 10 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P27540: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (8): Feliz Natal e um 2026 cheio de Afectos com Letras (Associação Afectos com Letras, ONGD)
Nesta quadra festiva, renovamos a nossa profunda gratidão aos nossos parceiros institucionais, aos voluntários que dedicam o seu tempo e compromisso, aos padrinhos do Projeto de apadrinhamento Baobá e aos doadores que, com enorme generosidade, nos permitem continuar a abraçar e a concretizar projetos.
O vosso apoio fortalece a missão da Afectos com Letras e permite-nos continuar a promover o acesso à educação, a cuidados de saúde e a melhorar as condições de vida das crianças da Guiné-Bissau.
Feliz Natal e um 2026 cheio de Afectos com Letras!
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Associação Afectos com Letras, ONGD
Rua Engº Guilherme Santos, 2
Escoural , 3100-336 Pombal
NIF 509301878
tel - 918 786 792
venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras
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Nota do editor
Último post da série de 16 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27538: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (7): Conto de Natal 2025 (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)
Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.
E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
– Quanto tempo esteve de molho?
– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…
Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.
Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?!
A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido.
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!
E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!
Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)
Jorge Cabral
Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)
Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima.
O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.
Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.
Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".
Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.
Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo, ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.
Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).
Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais a bisavó idosa, Maimuna, irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"
Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).
Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.
Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"
Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou (46 anos, de 1970 a 2016) e sobre a inevitabilidade da velhice.
(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:
O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”
A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.
(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa
O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço, pela santa ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).
O episódio é magistral porque:
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subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);
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introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):
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revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).
Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação, apenas risota, humanidade.
(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice
O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:
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autoridade funcional;
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figura quase teatral:
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mediador cultural.
O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".
(vii) O nascimento: epifania no meio do caos
O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;
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um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);
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um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;
um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.
A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:
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guardiã do tempo;
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elo entre gerações;
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quase uma personagem mítica
O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.
(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação
Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”
o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:
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o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;
Jesus é um menino pretinho:
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a guerra transforma-se em farsa absurda;
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os soldados são atores improvisados num palco de todo improvável.
É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).
(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo
O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.
Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós.
A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."
(x) Conclusão
Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização, uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.
O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.

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Notas do editor LG:
(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"
(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Guiné 61/74 - P27538: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (7): Conto de Natal 2025 (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)
CONTO DE NATAL 2025
Que porcaria de vida, pensou ele com os seus botões.
Afinal era tão bom a dar conselhos e não os conseguia aplicar na sua vida.
Tinha tentado controlar tudo tanto e tão bem, que acabou por fazer o vazio à sua volta e nada mais lhe restava a não ser um pouco do seu orgulho e teimosia em viver assim.
Nada lhe faltava financeiramente e até tinha muitos amigos.
Quando pensou nos amigos sorriu interiormente porque tinha bem a noção de que os amigos que tinha, nada tinham a ver consigo, pois eram fruto apenas da vida dispersa que levava e, verdadeiramente, se precisasse deles nenhum apareceria.
Nem a família lhe restava, porque ao tentar controlar tudo e todos, a mulher e os filhos tinham acabado por se afastar de si.
Afinal tinha tudo e… não tinha nada.
Era dia vinte e quatro de Dezembro, e a véspera de Natal fazia-o sentir-se ainda mais sozinho e desamparado.
Longe iam os tempos em que em família celebravam o Natal com paz e alegria, mas agora tudo isso era apenas recordação.
Já que assim é, pensou ele, vou jantar a um bom restaurante, comer e beber do bom e do melhor e depois… depois volto para casa sozinho, claro.
Telefonou para o restaurante a marcar mesa para jantar e ficou um pouco incomodado quando lhe perguntaram se a mesa era só para uma pessoa, mas não pensou mais nisso.
Vestiu-se a preceito e saiu para o frio da rua, rumo ao restaurante.
Entrou no restaurante e indicaram-lhe a sua mesa.
Sentou-se e reparou que na mesa ao lado estava outro homem sozinho também.
Apetecia-lhe muito meter conversa com ele, mas não encontrava motivo para tal.
A certa altura um papel qualquer caiu da mesa do seu “vizinho” e ele aproveitou para chamar a atenção do outro para isso. O “vizinho” agradeceu e isso deu azo a conversarem um pouco sobre várias coisas, até à constatação de que afinal estavam os dois sozinhos na noite de Natal.
Convidou o outro para a sua mesa e ele de pronto aceitou.
A conversa foi fluindo e o seu colega de mesa disse-lhe que estava sozinho na vida, sem família, e inevitavelmente acabaram por falar do Natal, referindo o outro, no entanto, que estava com uma certa pressa pois queria ir à Missa do Galo, que era uma tradição sua desde menino a que não queria faltar.
Ele respondeu de imediato que dantes também ia sempre a essa Missa e então o outro convidou-o para irem juntos nessa noite.
Sem perceber muito bem porquê acedeu ao convite, e depois de jantarem saíram para a rua em direção a uma igreja que ficava ali perto.
Entraram e deixaram-se ficar pelos bancos logo à entrada da igreja.
Vários sentimentos tomaram conta dele à medida que a Missa avançava, e deu por ele a pensar que se sentia ali muito bem e com umas saudades imensas da sua família.
Fez um esforço para reter as lágrimas e deixou-se envolver por aquele momento.
De tal modo estava enlevado pelo momento que não se apercebeu que a Missa tinha acabado e o seu novo amigo olhava para ele à espera de uma qualquer resposta da sua parte.
Sentiu então uma mão no seu ombro e ao voltar-se para ver quem era, deu com a cara da sua mulher que, acompanhada dos seus filhos, saíam da Missa naquele momento.
Os filhos abraçaram-no com força e ele, desta vez, não conseguiu reter as lágrimas que lhe correram pela cara abaixo.
A sua mulher perguntou-lhe então se estava sozinho e, perante a sua resposta afirmativa, disse-lhe que ela e os seus filhos gostariam muito que ele fosse lá a casa cear nesse dia.
Surpreendido disse logo que sim, mas referiu que tinha aquele recente amigo que também estava que estava sozinho naquela noite.
Claro que o convite de imediato se estendeu ao amigo recente, que de pronto aceitou, sem se fazer rogado.
Já em casa, sentados à mesa, antes de começar a ceia a sua mulher pediu-lhe para ele fazer uma pequena oração.
Envergonhado e tímido disse então: Obrigado, Jesus, que hoje me trouxeste para o presépio da minha família e me deste mais um amigo, rompendo assim a minha solidão.
Numa certa gruta em Belém, dois mil anos antes, que agora se faziam presente, Jesus, Maria e José sorriam felizes com o Natal daquela família.
Marinha Grande, 24 de Novembro de 2025
Joaquim Mexia Alves
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Nota do editor
Último post da série de 16 de Dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27534: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (6): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381 e António Ramalho, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2639
Guiné 61/74 – P27537: (Ex)citações (445): Literatura da Guerra Colonial? (Alberto Branquinho, ex-Alf Mil Art da CART 1689/BART 1913)
1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho, (ex-Alf Mil Art da CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), advogado e escritor, autor de, entre outros livros, "Cambança"; "Cambança Final" e "Deixem a Guerra em Paz", com data de 11 de Dezembro de 2025:LITERATURA DA GUERRA COLONIAL?
Livro: “O último avô” de Afonso Reis Cabral[1]
1 – Não venho apreciar o livro - em si mesmo - venho somente dizer que não vi, não li no livro nada para que possa ser designado por “literatura DA guerra colonial”. Também não venho fazer uma apreciação do livro como obra literária.
É que este livro surge publicitado como sendo sobre a guerra colonial.
Aliás, modernamente falando, no conceito de “guerra colonial” tanto cabe uma obra onde se aborde ou onde se escreva qualquer coisa “à volta” da guerra colonial e não somente aquelas obras que tratam daquilo que se passou no terreno, no ambiente próximo ou afim ao conflito ou na sua proximidade, a montante ou a jusante dele. O que, cada vez mais, é voz comum, é que tudo o que se escreva e que, de algum modo, faça menção à guerra colonial, é…. literatura da guerra colonial.
Este livro, para além dos enredos e vicissitudes familiares e de outras relações também próximas, descritas e analisadas por um rapaz, depois, jovem adulto, de guerra colonial nada tem. Tem, isso sim, um avô egocêntrico e difícil que surge ao longo de todo o texto e que, apesar de ter sido alferes miliciano de transmissões sem qualquer actividade operacional, escreveu sobre as suas (inventadas) experiências traumáticas de ex-combatente, apesar de NUNCA ter sido combatente. É que, ressalvada uma breve e rápida referência a Cabinda (sem mais pormenores), o autor coloca toda a acção do livro na zona de N’Dalatando (antiga Vila Salazar) e só depois do “25 de Abril”. Ora, N’Dalatando fica a cerca de 250kms a leste de Luanda e era, antes desses tempos conturbados, local de passeio dos civis residentes em Luanda.
Nunca houve confrontos entre tropa portuguesa e guerrilheiros em N’Dalatando antes do 25 de Abril. Só depois disso foi essa zona área de confrontos entre o MPLA e FNLA, que a pretendiam controlar. A tropa portuguesa esteve envolvida procurando “mediar” o conflito entre as duas forças, como aconteceu, também, em outras zonas de Angola e nem sempre com sucesso.
Aliás, se Angola fosse, por esse tempo, já um país independente, esse conflito seria referido como “guerra civil”.
Todo o envolvimento do avô narrador na sua “guerra colonial” foi nessa zona de N’Dalatando e é essa “inverdade” que o narrador vem mais tarde a descobrir.
2 – Com tudo o que vai escrito atrás não pretendo dizer que toda a literatura da guerra colonial tenha que ser trágica ou dramática. Não, até porque, mesmo debaixo de fogo, acontecem situações com humor ou caricatas, que, naquele momento, não são apreciadas como tal devido às circunstâncias.
Escrevi no prefácio do livro “Memórias boas da minha guerra” do José Ferreira da Silva (Silva da CART 1689):
“A guerra é a guerra!
MAS, mesmo na guerra (em tempo de guerra) surgem, por vezes, imprevistos, situações bizarras e com humor em perfeita contradição com o ambiente que se vive, embora só mais tarde, ao recordar, nos provoque uma gargalhada.”
3 - Meditando sobre a construção literária constante do livro surge uma questão: - Será que o livro poderá ser entendido como uma denúncia de uma falsa literatura da guerra colonial em que, p.ex., o “combatente”, em vez de ser um “oficial de transmissões”, seja um médico ou um outro militar com funções na retaguarda?
4 – Certo é que o autor (narrador) inclui no texto (embora de passagem) uma referência (não muito explícita) ao sofrimento de uma geração, que foi a geração do seu avô inventão.
5 – Tudo isto traz à colação a necessidade de definir se uma certa literatura que, simplesmente, fale, aborde, disserte ou refira a guerra colonial é literatura da guerra colonial. Sem o saber de experiência feito.
Nota de AB: Sobre este assunto, vide poste Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é? de 2 de Setembro de 2016)
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Notas do editor:
[1] . Vd. post de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27290: Notas de leitura (1846): "O Último Avô", de Afonso Reis Cabral, Publicações Dom Quixote, 2025 (Mário Beja Santos)
Último post da série de 2 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 – P27485: (Ex)citações (442): Com a lonjura do tempo a corroer-se… Da Guiné para outros palcos (José Saúde)































