Legenda: "Porra, que este gajo está mais apanhado do que eu!!!..."
O excerto "Humor de caserna > O Pechincha que eu conheci, em Bissau", da autoria de Hélder Sousa, enquadra-se no género da crónica memorialísttca, tipicamente escrita na primeira pessoa. É uma peça de literatura da Guerra Colonial Portuguesa, mas que opta por um registo de humor, humor de caserna, e de vivência quotidiana, em vez de se focar diretamente no drama da atividade operacional, do combate, da guerra (operações no mato, emboscadas, ataques e flagelações ao quartel...).
1. Contexto histórico e espacial
Contexto: a ação decorre em Bissau, hoje Guiné-Bissau, em novembro de 1970, durante a Guerra Colonial Portuguesa. Ou melhor: estamos na "Spinolândia".
Tempo: a narrativa é estruturada em torno da chegada do narrador (9 de novembro) e da festa de São Martinho (11 para 12 de novembro), conferindo-lhe uma progressão cronológica clara e um foco em eventos específicos que ilustram o comportamento da personagem central,o Pechincha.
2. Temas centrais
Caracterização da guerra pela convivência: o tema principal não é a guerra em si, mas as formas de adaptação e de escape à sua tensão. O ambiente é de descompressão forçada, onde o consumo de álcool e a "simulação de uma emissão de rádio" servem para aliviar o peso da situação ("reflexos condicionados").
Camaradagem e saudade: há um forte sentido de camaradagem entre os furriéis (os "amigos vilafranquenses": o Hélder Sousa, o Vitor Ferreira, o José Augusto Gonçalves...). A celebração do S. Martinho, com castanhas e água-pé, evoca o doce lar e o pacato Portugal metropolitano, que ficou para trás (a 4 mil km de distância!), funcionando como uma ponte entre a realidade da caserna e a saudade da terra natal.
Ordem vs. loucura: a narrativa (ou o conto) explora a linha ténue entre a sanidade mental e a excentricidade no contexto de guerra. O Pechincha representa uma "loucura" funcional, que paradoxalmente, é usada para impor a ordem (acalmando os "arruaceiros", "velhinhos", em fim de comissão, que não deixam a malta descansar...) e desafiar a normalidade (o incidente no Taufik Saad). O Pechincha ainda por cima é... um "ranger", um gajo de "operações especiais", da "fábrica de Lamego"...
3. Personagem central: o Pechincha
O Pechincha é o arquétipo do excêntrico militar: a figura de culto no ambiente de caserna.
Lenda: é construído como alguém com "fama de estar um bocado apanhado e com uma pancada enorme". O termo "apanhado", segundo o Priberam, é sinónimo de "pirado": é usado informalmente para designar alguém "que não é bom da cabeça ou age de modo insensato"... Mas a locução, coloquial e jocosa, "apanhado do clima" é mais rica: também já está grafada.
Anti-herói funcional: o narrador, no entanto, desmistifica em parte esta lenda, sugerindo que era uma performance calculada ("mais para ganhar fama e benefício dela"). As suas conversas eram "muito interessantes e educativas", revelando-o como um observador perspicaz, nomeadamente sobre a situação (política) que se vivia, sob o marcelismo.
Provas da excentricidade:
O Incidente do Machado: o arremesso do machado nativo à panela do intruso é a cena mais cómica e decisiva. É uma reação desproporcional, mas que restaura a ordem de forma imediata e eficaz, cimentando a sua reputação de "maluco". O resultado é a confissão do intruso: "porra, que este gajo está mais apanhado do que eu!".
O Incidente do Taufik Saad (loja libanesa): a exigência de retirada do anúncio promocional ( "autêntica pechincha") é um ato de absurdo burocrático, uma performance dramática que só um excêntrico poderia encenar com sucesso, expondo a sua marca pessoal (o apelido) de forma hilariante.
4. Estilo e linguagem
Ponto de vista: a narração na primeira pessoa é crucial, pois confere um tom de confidência e autenticidade. O narrador é um testemunha privilegiada que valida a história do Pechincha, conferindo-lhe credibilidade e um toque de admiração ("Ah, ganda Pechincha!").
Registo de linguagem: o estilo é coloquial, direto e informal, repleto de calão militar e regionalismos (Bate-Orelhas, água-pé, peluda, graçola, apanhado, ganda). Esta linguagem reforça a autenticidade do ambiente de caserna.
Estrutura anedótica: o texto é uma sucessão de anedotas vívidas que têm como objetivo único e primordial ilustrar a personalidade do Pechincha, tornando a sua caracterização mais forte do que a própria progressão da ação.
Conclusão:
"O Pechincha que eu conheci, em Bissau" é mais do que um relato; é a construção de um mito pessoal dentro da experiência traumática da guerra. O autor utiliza o humor de caserna como lente para processar a tensão. O Pechincha, sendo o catalisador de eventos absurdos, transforma a rotina militar em algo memorável e suportável, provando que, no meio do conflito, a excentricidade pode ser uma forma poderosa de resistência e de distinção.
O editor champou-lhe "figuras impagáveis" do Museu da Spinolândia... Spínola, ele próprio, foi imensamenmte parodiado pelos seus subordinados. Há já, neste blogue, toda uma série notável de anedotas e cenas birlescas à volta deste personagem que honrou a história militar do seu país (embora na política tenha sido mais desasytrado...).
PS - Segundo o Priberam e o Houaiss, pechincha é um nome feminino que tem os seguintes significados na língua portuguesa: (i) [Popular] Grande conveniêncinteresse ou vantagem material considerável; (ii) Recompensa imerecida;ucro que não se espera e/ou que não se merece (iii) Lucro inesperado; (iv) Compra vantajosa; qualquer coisa cujo preço é muito baixo; (v) Regateio (do verbo "regatear" = "pechincar"... Origem estimológica: obscura ou incerta.Nota do editor LG:
11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27516: Humor de caserna (225): O ganda Pechincha (ex-fur mil op esp, CART 11, Nova Lamego, 1969/70), que eu conheci em Bissau quando cheguei, em novembro de 1970 (Hélder Sousa)

2 comentários:
O cartum da IA do Gemini/Google bate a da concorrência... Mas o português teve que ser corrigido com o "Paint"...
Lembro-me da loja do Taufik Saad... Era de visita obrigatória pela "tralha" oriental que vendia... Os comerciantes libaneses nesse tempo é que fizeram "negócios da China"... A "puta" da guerra atrai sempre o dinheiro e as... "putas". Não me lembro da cara do homem (que, segundo já li no blogue, fixou-se em Portugal...).
Enviar um comentário