Excertos do diário de um tuga. L.G.
Bambadinca. 1 de Dezembro de 1969
Registam-se agora as temperaturas mais baixas do ano nestas paragens tropicais. Eu próprio não imaginaria que iria tiritar de frio nesta terra, emboscado, à noite, com os meus homens, sob um temperatura de 15º.
À noite, os africanos acendem fogueiras à porta ou no interior das suas pobres tabancas de colmo. A chuva dá lugar ao cacimbo. É o início da estação seca.
Entretanto, os negros islamizados (fulas, futa-fulas, mandingas, beafadas...) acabaram de celebrar o Ramadã. Um mês de jejum e oração culmina na grande festa colectiva em que o batque é a expressão viva do ritmo interior, da alegria física e do sentido lúdico do homem africano. Reconheço que não foi um mês fácil para os meus soldados.
Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970
O Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.
0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).
Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.
Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!
Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!
Post scriptum
Lisboa, 16 de Junho de 2005
Amigos e camaradas:
Nunca fui a Aldeia Formosa (aliás, Quebo, para os guinéus). No nosso tempo não dava para fazer ecoturismo, como vocês muito bem sabem... Mesmo assim cheguei a conhecer o famoso Cherno Rachid, de acordo com os papéis que desenterrei do baú…
Falei pelo telefone com o José Carlos Mussá Biai… Tem estado fora, a fazer trabalho de campo. Ele trabalha em cartografia, no Instituto Geográfico Português. Teve irmãos na tropa em Farim. Vai mandar-nos documentação para a nossa página. Já falou com o seu professor do Xime, o Carvalhido da Ponte. Mas nunca mais teve notícias dos outros professores que vieram a seguir, o furriel Osório da CCAÇ 12 (que estava no Xime em 1973) e da esposa. Alguém tem notícias desta malta ?
O José Carlos, o djubi do Xime (como lhe chama carinhosamente o Sousa de Castro), e que é mandinga pelo lado do pai, diz-me que cherno em fula quer dizer tio… Eu tinha ideia que cherno era o termo usado para designar um chefe religioso muçulmano… Mas a verdade é que há nomes próprios, fulas, que começam por Cherno: nós próprios, na CCAÇ 12 (1969/71), tínhamos dois soldados de nome Cherno Baldé…
Em conclusão, o Cherno Rachid, de Quebo (que já deve ter morrido, pela ordem natural das coisas,não me tendo constado que tivesse tido problemas com as novas autoridades saídas da independência, apesar de não gozar das simpatias do PAIGC), não era mais do que o Tio Rachid...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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