Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Leitão (2020)
1. Uma boa notícia, uma prenda natalícia: depois de ter superado um problema de saúde, a nossa Rosa Serra parece ter aceite o desafio de pôr no papel as suas memórias como enfermeira e enfermeira paraquedista... O mesmo é dizer, que pode estar em vias de publicar um livro. Ao telefone disse-me para não fazer grande alarido da coisa... Quando estiver no prelo, daremos mais (boas) notícias... É uma mulher discreta, avessa à publicidade, a Rosa.
Mão amiga, a do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72) fez-nos entretanto chegar um excerto dos escritos recentes da Rosa Serra, com a autorização para ser revista e publicado no nosso blogue, o que muito nos sensibiliza. (Ficaram amigos, estiveram juntos no BCP 21, em Angola.)
Falámos depois ao telefone, eu e a Rosa, que é uma minhota de Vila Nova de Famalicão que vive aqui no Sul, em Paço de Arcos, Oeiras... (A Rosa Serra, membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010, foi alf graduada enfermeira paraquedista, tendo passado pelos 3 TO: Guiné 1969-70 / Angola 1970-71 / Moçambique 1973).
[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas / LG]
História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)
Parte I: A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira
Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?; (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?; (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?; e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?
Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:
– O meu marido é militar paraquedista.
Sorri…
– Só conheço paraquedistas velhotes como eu – respondi.
Continuei com as minhas explicações.
– Quando fui para a Escola de enfermagem, e até muito depois disso, ouvi muitas colegas dizerem que foram para a enfermagem por vocação. Várias dessas enfermeiras faziam questão de acrescentar que queriam muito ajudar e cuidar as criancinhas, os velhinhos, os doentinhos e até os pobrezinhos. Ouvi de tudo... ao ponto de me interrogar se eu algum dia seria boa enfermeira.
Diz-me ela:
– Hoje ninguém vem para enfermagem por vocação.
E continuou:
– Nós vamos para a enfermagem porque não entramos em medicina, farmácia ou outro qualquer curso mais de nosso agrado.
Eu respondi:
– Eu também não fui. No meu caso foi por conveniência familiar. Eu fui porque um dia um dia a minha mãe, que eu já tinha reparado andar muito pensativa, disse-me que o dinheiro era pouco para pagar o meu Externato, que era particular, porque não havia liceu na minha Vila. E assim sendo, talvez fosse melhor eu interromper e ir para um curso para que me permitisse, ao fim de 3 anos ter uma profissão, um ordenado e logicamente ser independente monetariamente.
Respondi, à minha mãe, que gostava de ir para a Universidade.
– Que curso gostavas de fazer? – perguntou ela.
– Não sei…
Pegou-me nas mãos e continuou:
– Sabes que eu acho que tinhas jeito para seres enfermeira ... Penso que era bom para ti...
E acrescentou:
– Verás que vais gostar.
Ficou logo ali, definido o meu destino.
Apesar das minhas dificuldades, sobretudo económicas, lá fui aprender a ser enfermeira sem saber muito bem o que me esperava.
Fui para o Porto estudar. Na minha primeira escola, adquiri obrigatoriamente um livro; Técnica de Enfermagem, que era da Escola da Imaculada Conceição (Casa de Saúde da Boavista no Porto) que alguém informou a minha mãe ser uma boa escola, e foi aí que fiz o primeiro ano.
Os dois anos seguintes foram feitos numa outra escola que, passado pouco tempo descobri, que ficava mais económica.
Uma coisa que pesou muito era haver nesta segunda escola, um lar onde residiam as alunas que não eram da cidade do Porto, isso não acontecia com a Escola da Boavista, ficando assim bem mais barato.
Dessa primeira escola, não esqueci os desenhos logo na primeira folha do livro de Técnica de Enfermagem. O primeiro era uma cabeça feminina, com uma touca de enfermeira da época, sobre cabelos curtos e várias setas apontando para os mais diversos pontos da mesma, onde estavam enumeravam as qualidades indispensáveis de uma boa enfermeira: inteligência, memória, conhecimento, espírito de observação autodomínio, reserva.
Um pouco abaixo, mais dois desenhos. Um deles, era um coração (forma humana), com três setinhas apontando para as palavras: compreensão, sensibilidade, bondade.
Do outro lado mais um desenho, duas mãos segurando uma seringa com mais três setas indicando: segurança, desembaraço, leveza.
Estas eram as qualidades indispensáveis a uma boa enfermeira no Ano de 1963. Dessa mesma Escola de Enfermagem.
Com a continuação do tempo, fui interiorizando estes conceitos e aceitei-os como compromisso. Mesmo quando me deparava com determinada tarefa que me custasse fazer, sempre pensava nas setinhas do coração e nunca deixei de as executar e muito menos pedir a alguém que a fizesse por mim, por mais que me custasse ou até mesmo me enfastiasse...
Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:
– O meu marido é militar paraquedista.
Sorri…
Capa do livro de que a Rosa Serra foi coautora e coordenadora, "Nós, enfermeiras paraquedistas" (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. (Prefácio de Adriano Moreira) |
– Só conheço paraquedistas velhotes como eu – respondi.
Continuei com as minhas explicações.
– Quando fui para a Escola de enfermagem, e até muito depois disso, ouvi muitas colegas dizerem que foram para a enfermagem por vocação. Várias dessas enfermeiras faziam questão de acrescentar que queriam muito ajudar e cuidar as criancinhas, os velhinhos, os doentinhos e até os pobrezinhos. Ouvi de tudo... ao ponto de me interrogar se eu algum dia seria boa enfermeira.
Diz-me ela:
– Hoje ninguém vem para enfermagem por vocação.
E continuou:
– Nós vamos para a enfermagem porque não entramos em medicina, farmácia ou outro qualquer curso mais de nosso agrado.
Eu respondi:
– Eu também não fui. No meu caso foi por conveniência familiar. Eu fui porque um dia um dia a minha mãe, que eu já tinha reparado andar muito pensativa, disse-me que o dinheiro era pouco para pagar o meu Externato, que era particular, porque não havia liceu na minha Vila. E assim sendo, talvez fosse melhor eu interromper e ir para um curso para que me permitisse, ao fim de 3 anos ter uma profissão, um ordenado e logicamente ser independente monetariamente.
Respondi, à minha mãe, que gostava de ir para a Universidade.
– Que curso gostavas de fazer? – perguntou ela.
– Não sei…
Pegou-me nas mãos e continuou:
– Sabes que eu acho que tinhas jeito para seres enfermeira ... Penso que era bom para ti...
E acrescentou:
– Verás que vais gostar.
Ficou logo ali, definido o meu destino.
Apesar das minhas dificuldades, sobretudo económicas, lá fui aprender a ser enfermeira sem saber muito bem o que me esperava.
Fui para o Porto estudar. Na minha primeira escola, adquiri obrigatoriamente um livro; Técnica de Enfermagem, que era da Escola da Imaculada Conceição (Casa de Saúde da Boavista no Porto) que alguém informou a minha mãe ser uma boa escola, e foi aí que fiz o primeiro ano.
Os dois anos seguintes foram feitos numa outra escola que, passado pouco tempo descobri, que ficava mais económica.
Uma coisa que pesou muito era haver nesta segunda escola, um lar onde residiam as alunas que não eram da cidade do Porto, isso não acontecia com a Escola da Boavista, ficando assim bem mais barato.
Dessa primeira escola, não esqueci os desenhos logo na primeira folha do livro de Técnica de Enfermagem. O primeiro era uma cabeça feminina, com uma touca de enfermeira da época, sobre cabelos curtos e várias setas apontando para os mais diversos pontos da mesma, onde estavam enumeravam as qualidades indispensáveis de uma boa enfermeira: inteligência, memória, conhecimento, espírito de observação autodomínio, reserva.
Um pouco abaixo, mais dois desenhos. Um deles, era um coração (forma humana), com três setinhas apontando para as palavras: compreensão, sensibilidade, bondade.
Do outro lado mais um desenho, duas mãos segurando uma seringa com mais três setas indicando: segurança, desembaraço, leveza.
Estas eram as qualidades indispensáveis a uma boa enfermeira no Ano de 1963. Dessa mesma Escola de Enfermagem.
Com a continuação do tempo, fui interiorizando estes conceitos e aceitei-os como compromisso. Mesmo quando me deparava com determinada tarefa que me custasse fazer, sempre pensava nas setinhas do coração e nunca deixei de as executar e muito menos pedir a alguém que a fizesse por mim, por mais que me custasse ou até mesmo me enfastiasse...
Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista (Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71; Moçambique, 1973) |
A minha vocação se calhar só a minha mãe a viu...! O certo é que sempre vivi a minha profissão com gosto, com proximidade daqueles que em determinado momento precisavam de uma enfermeira que se entregasse em plenitude.
A enfermagem, para mim, passou a ser vivida com grande rigor ético e com permanente desafio na aquisição de saberes, para melhor cuidar.
Hoje mais que adulta, penso: é impressionante como sempre me apercebi da mutabilidade dos conceitos, da sua significação ao longo dos tempos, da importância do progresso e da evolução da enfermagem.
É um gosto ver o enriquecimento que, ano após ano, se verifica na formação dos enfermeiros, na perceção da necessidade da existência das especialidades em enfermagem, do avanço científico da mesma. Orgulha-me ver o patamar que atingiu a enfermagem de hoje, e a respeitabilidade que os países estrangeiros manifestam ter pelos Enfermeiros Portugueses.
Em relação a mim, sempre fui movida pelo desejo de um saber abrangente na arte do cuidar em enfermagem.
Assim para fazer frente aos mais variados desempenhos que tive durante quarenta anos, e faze-los de forma responsável e eficaz, apostei na formação contínua durante toda a minha vida profissional.
Ainda pensei fazer uma especialidade, um pequeno grupo de enfermeiras paraquedistas a fizeram, quando estas começaram a surgir. Mas logo percebi que não encaixava na minha personalidade ter sempre o mesmo tipo desempenho e conclui que só serviria para obter mais um título.
Sempre tive uma grande vontade de um saber alargado, para dar resposta às variadas necessidades do ser humano, num período desafinado do seu estado físico ou mental.
Essa simbiose entre um crescendo desejo de experiências e o dinamismo aportado pela minha juventude, foi o motor causador para uma formação variada e contínua.
Nesta caminhada transformadora, tive um desempenho multifacetado e a formação contribuiu muito para um crescimento profissional que, embora despretensioso, foi significativo, permitindo-me para além de aquisição de vários saberes, entender melhor a alma humana e sempre me senti feliz por isso.
Não fui para nenhuma Faculdade na minha juventude, mas completei, bem mais tarde, todo o Liceu (designado hoje como Ensino Secundário).
Quando do Acordo de Bolonha, a enfermagem passou a Curso Superior, já tinha passado quarenta anos e depois de ter iniciado o antigo Curso Geral de Enfermagem, eu regressei à escola para fazer mais um ano, o que fiz na Escola Superior de Enfermagem Francisco Gentil (anexa ao IPO e hoje integreda na ESEL - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) sendo me conferido o grau de licenciada em enfermagem. Sou agora Licenciada em Enfermagem desde 2003, quando ainda eu estava a exercer funções.
Por graça costumo dizer que iniciei o meu Curso de Enfermagem e só o terminei quarenta anos depois.
Também confesso que a obtenção de várias competências, e tão variados desempenhos que tive no contato direto com doentes, proporcionou-me um sentimento de realização muito intenso, e ainda hoje me sinto orgulhosa pelo percurso que tive e, muito, muito feliz, por ter sido uma simples Enfermeira Generalista (sem especialidade). (...)
(Continua)
A enfermagem, para mim, passou a ser vivida com grande rigor ético e com permanente desafio na aquisição de saberes, para melhor cuidar.
Hoje mais que adulta, penso: é impressionante como sempre me apercebi da mutabilidade dos conceitos, da sua significação ao longo dos tempos, da importância do progresso e da evolução da enfermagem.
É um gosto ver o enriquecimento que, ano após ano, se verifica na formação dos enfermeiros, na perceção da necessidade da existência das especialidades em enfermagem, do avanço científico da mesma. Orgulha-me ver o patamar que atingiu a enfermagem de hoje, e a respeitabilidade que os países estrangeiros manifestam ter pelos Enfermeiros Portugueses.
Em relação a mim, sempre fui movida pelo desejo de um saber abrangente na arte do cuidar em enfermagem.
Assim para fazer frente aos mais variados desempenhos que tive durante quarenta anos, e faze-los de forma responsável e eficaz, apostei na formação contínua durante toda a minha vida profissional.
Ainda pensei fazer uma especialidade, um pequeno grupo de enfermeiras paraquedistas a fizeram, quando estas começaram a surgir. Mas logo percebi que não encaixava na minha personalidade ter sempre o mesmo tipo desempenho e conclui que só serviria para obter mais um título.
Sempre tive uma grande vontade de um saber alargado, para dar resposta às variadas necessidades do ser humano, num período desafinado do seu estado físico ou mental.
Essa simbiose entre um crescendo desejo de experiências e o dinamismo aportado pela minha juventude, foi o motor causador para uma formação variada e contínua.
Nesta caminhada transformadora, tive um desempenho multifacetado e a formação contribuiu muito para um crescimento profissional que, embora despretensioso, foi significativo, permitindo-me para além de aquisição de vários saberes, entender melhor a alma humana e sempre me senti feliz por isso.
Não fui para nenhuma Faculdade na minha juventude, mas completei, bem mais tarde, todo o Liceu (designado hoje como Ensino Secundário).
Quando do Acordo de Bolonha, a enfermagem passou a Curso Superior, já tinha passado quarenta anos e depois de ter iniciado o antigo Curso Geral de Enfermagem, eu regressei à escola para fazer mais um ano, o que fiz na Escola Superior de Enfermagem Francisco Gentil (anexa ao IPO e hoje integreda na ESEL - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) sendo me conferido o grau de licenciada em enfermagem. Sou agora Licenciada em Enfermagem desde 2003, quando ainda eu estava a exercer funções.
Por graça costumo dizer que iniciei o meu Curso de Enfermagem e só o terminei quarenta anos depois.
Também confesso que a obtenção de várias competências, e tão variados desempenhos que tive no contato direto com doentes, proporcionou-me um sentimento de realização muito intenso, e ainda hoje me sinto orgulhosa pelo percurso que tive e, muito, muito feliz, por ter sido uma simples Enfermeira Generalista (sem especialidade). (...)
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 7 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18819: História de vida (47): O centenário dos nossos pais (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)
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