domingo, 4 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23844: Blogoterapia (308): As desejadas férias e a angústia do regresso à Guiné (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

1. Em mensagem de 1 de Dezembro de 2022, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos das suas férias na metrópole e na angústia do regresso  Guiné.


As desejadas férias

Gozei os meus trinta e cinco de férias entre Outubro e Novembro de 1972.

As férias eram ansiosamente esperadas e assim eram, não muitas vezes, um pouco decepcionantes em relação às expectativas criadas. É como desejar muito uma coisa, que se transforma num balão e que esvazia lentamente. O facto de ter de regressar tirou muito do prazer de voltar a casa, abraçar os meus pais e irmãos, percorrer os locais beber um café na esplanada do Trindade, estar longe da bianda com estilhaços, das latas com cavala, da ração de combate, o pó da picada. Tudo sabia a ilusão estar ali.

Bem sei que praticamente todos os amigos da minha geração estavam a cumprir as suas comissões. Quando ia ao café,  era quase um estranho só os mais velhos ou mais novos me conheciam.

Por assim dizer a minha vida estava parada, não podia ou não queria ter esperança ou dar esperança, aos que me rodearam com todo o carinho e que tudo fizeram para não me sentir deslocado, mas de alguma forma eu também estava ausente como se não tivesse vindo todo no 727 da TAP . Parte de mim tinha ficado lá, junto dos camaradas nos dias tórridos, nos cheiros bem como nos sons que se expandiam pelo ar logo de madruga.

Hoje encontrei o recibo de uma prestação da minha viagem, 2.235$50 julgo que (pesos) escudos da Guiné. Uma pequena fortuna para aquele tempo, se fizer as contas custou todo o dinheiro que cá ficava depositado até à data.
Uma curiosidade era ter a data do meu desembarque e o fim da comissão para 17 de Setembro de 1973 . Uma espécie de futurologia falhada uma vez que só em finais de Março de 1974 o meu batalhão embarcou no Niassa de regresso a casa.

Vim mais o furriel Fonseca e um camarada do Dulombi a quem chamavam o “Espanhol”. Este camarada era uma pessoa extremamente alérgico a qualquer picada. Assim bastava ser picado por uma formiga daquelas pequeninas pretas para ficar complemente deformado. No avião sentiu-se indisposto e a hospedeira veio com um alka-seltzer. Bom, a reacção alérgica foi de tal ordem, que julgamos que ele não chegava vivo à ilha do Sal. Também viajou no mesmo avião o meu colega de escola primária, Augusto, que estava nos comandos.

Como todos imaginam foi uma festa com uns whiskies, porque o avião era coisa fina e não se bebia lá bejecas nem se comia mancarra.

Fui padrinho de casamento do meu irmão e assim à medida que se aproximava o regresso mais fechado eu me tornei e para os últimos dias eu só desejava desaparecer dali para fora e, já que tinha que ser regressar a Galomaro, que fosse o mais depressa possível.

Parece triste para quem tanto desejou a minha companhia saber que eu não conseguia viver com aquela espada suspensa sobre a cabeça.

Chegado a Bissau, outro problema se pôs que foi o de regressar a Galomaro,  o que não era fácil porque a grande via de acesso era o Geba e não se podia ir a nado. Após alguns dias consegui transporte numa LDG até ao Xime onde fui recolhido por uma coluna do meu batalhão.

Por estranho que pareça senti-me seguro como se o que acontecesse não fosse o esperado.
Foto da festa do meu regresso. Nessa noite atacaram Campata com pelo o menos seis mortos confirmados entre os guerrilheiros, dois milicias e varios feridos entre a população. Na foto estão o Ivo, o Catroga, o Silva, eu, o Passos, o Silva e o Ferreira.

Assim regressei a tempo de infelizmente assistir ao período mais difícil do meu destacamento, com ataques a aldeias em auto-defesa, com minas, com o primeiro morto na picada do Saltinho, com a morte do alferes Mota e por fim com o ataque ao arame no dia 1 de Dezembro.

Quando regressei de vez, voltei aos mesmos sítios e encontrei os que já tinham regressado. O ar era mais leve porque a minha ansiedade tinha desaparecido após deixar o Niassa, agora era para ficar.

Um abraço
Juvenal Amado

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23835: Blogoterapia (307): Nós e eles (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Juvenal, é um texto de antologia... Revi-me nas tuas palavras... Ando há mais de 50 anos para escrever sobre as minhas "férias" em meados de 1970, as únicas de resto a que tive direito...Nunca o consegui...Tenho memórias confusas desses dias, tão infelizes como os teus...Sei que cheguei à Portela e meti-me num táxi até à Lourinhã...Devo ter pago uma pequena fortuna... (Parte dessas memórias, confusdas e infelizes, meti-as num conto que escrevi, há tempos, na pandemia...).

Quanto ao teu bilhete (ida e volta ?), acho pouco...2.235$50 escudos (ou "escudos da Guiné"? Se sim, tens que multiplicar por 110%)...

Mas, mesmo assim, em escudos da metrópole, 2.235%50 em 1972 equivaleriam hoje, a preços de hoje, €541 (segundo o conversor da Pordata, https://www.pordata.pt/)... Tenho ideia de ter pago, pela viagem de ida e volta, na TAP mais de 6 seis contos... Outros falam em quatro contos...

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Juvenal, temos uma série para este tipo de postes sobre as nossas férias na metrópole... "O nosso querido mês de férias"... Já se publicaram 18 postes, o o último foi em 2015:


7 DE OUTUBRO DE 2015
Guiné 63/74 - P15216: O nosso querido mês de férias (18): Viagem Bissau-Lisboa-Porto-Lisboa-Bissau paga a prestações porque o patacão não transbordava das algibeiras (António Tavares)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/10/guine-6374-p15216-o-nosso-querido-mes.html

António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72) (portanto do batalhão anterior ao teu) escreveu:

(...) Ao ler o P15178, do tema “O nosso querido mês de férias”, recordo:

- Em 03Agosto1971 paguei, na Agência Correia, Bissau, CTIGuiné, o total de 6 430$80 pela viagem: BISSAU - LISBOA - PORTO - LISBOA - BISSAU.

- Voei na TAP e tive direito a um Saco de Pernoita, que ainda possuo.

- Viajei na modalidade: VIAJE AGORA PAGUE DEPOIS.

- Em três prestações paguei a importância total, que não ganhava, como explico: 4.430$80 em 03-08-71; 500$00 em 22-09-71 e finalmente 1.500$00 em 21-10-1971.

Se repararem na cópia do bilhete consta uma taxa de 110$80. O ZÉ pagante teve sempre Taxas e Selos à perna. O pagamento foi em Pesos.

- O Escudo era trocado com uma agiotagem de 10%.

- A viagem foi no dia 04 de Agosto de 1971 e regressei no dia 07 de Setembro de 1971. (...)


Juvenal, pelas minhas contas e com a ajuda do conversor da Pordata, 6430$80 em 1971 seriam equivalentes, a preços atuais, a €1.728 (muito patacão)... Para a grande maioria das nossas praças (muitos ainda por cima do Norte, e alguns já casados), era um luxo este valor do bilhete de ida e volta na TAP!...Agora imagina quanto não custaria uma viagem a partir de Luanda ou de Lourenço Marques... (A opção aqui era fazer férias no território...).

Não me lembro do "patriótico" Movimento Nacional Feminino ter feito pressão para que a "patriótica" TAP e o "patriótico" Governo de então chegassem a acordo sobre uma "patriótica" tarifa de ida e volta para que os "bravos de Portugal" pudessem gozar, em casa e na terra, junto da família e dos amigos, a licença de férias a que tinham direito...