segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23848: Notas de leitura (1528): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O assunto não é de sua menos importância, as estratégias de guerrilha, ao tempo em que foram desencadeadas pelos nacionalistas das colónias portuguesas, tinham como referência o Vietname, a Argélia, Cuba; havia o contexto ideológico, podemos falar nos fatores históricos destas lutas pela independência, o papel dos camponeses e agricultores sem terra, a organização da vanguarda ideológica mobilizadora e o imperativo da sua coesão, a ligação do guerrilheiro às populações. Quem conduzia essas lutas armadas tinha consciência de que o fim da II Guerra Mundial trouxera a rutura de equilíbrios, que houvera guerrilha na própria Europa, caso da Jugoslávia e da Albânia, e os impérios coloniais europeus estavam em desagregação. Havia que saber conduzir a guerra revolucionária, Guevara tornou-se uma referência, tal como Frantz Fanon. Acontece que Amílcar Cabral tinha uma tipologia sobre a condução da luta, a organização da guerrilha e as finalidades da luta de libertação um tanto distintas do que Guevara e Fanon propuseram. É a contextualização dessas concordâncias e divergências que aqui se ponderam para se avaliar como o pensamento revolucionário de Cabral se ajustou à realidade da luta que conduziu.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1)

Mário Beja Santos

Para se situar o conceito de guerrilha preconizado por Guevara, e mais adiante pô-lo em confronto com a estratégia de Amílcar Cabral aplicada à Guiné, e tentar medir a distância que separou os modos de aplicação preconizados pelos dois revolucionários, é indispensável procurar enquadrar as condições de lugar em que ocorreu a revolução cubana e um pouco mais adiante se forjou a luta armada na Guiné colonial. O território cubano parecia adverso à guerrilha, o tempo era-lhe favorável, mudara a relação de forças à escala mundial no então designado “campo socialista”. Quando os EUA bloquearam Cuba, subtraindo-lhe energia, matérias-primas, peças de substituição para os tratores, trigo e sabão, a URSS estava em condições, mesmo que estivesse posto numa linha vermelha da chamada coexistência pacífica, de apoiar Cuba. Como escreveu Régis Debray, um acérrimo defensor da doutrina guevarista, e que a impulsionou com o conceito de foco, vivia-se um período fasto para o socialismo. A doutrina estalinista fora posta no sótão, não era imperioso a defesa do “socialismo num só país”, análise que bloqueara a generalidade dos partidos comunistas das Américas do Sul e Central. Nikita Kruschev abraçou as causas do Terceiro Mundo, estamos num período de afundamento dos sistemas coloniais, é o tempo de vitórias na Indochina e na Argélia, há ainda repercussões das conferências de Bandung e de Belgrado, o Sputnik e Gagarin eram vedetas – foi assim o período entre 1956 e 1962, a cisão entre a China e a URSS ainda não provocou mossas monumentais, o socialismo parece estar na ofensiva no mundo ocidental; Kennedy e o desastre da Baía dos Porcos não estavam esquecidos, este quadro idílico só se alterará com a crise dos mísseis, que custará a prazo o afastamento de Kruschev, mas a linha dita de apoio ao movimento revolucionário, a partir de Moscovo, a que se juntava o apoio do apoio incondicional de Pequim ao fim do colonialismo na Ásia e na África manter-se-á.

Guevara deixou um apreciável número de escritos, logo as recordações da guerra revolucionária, tinha a sua própria interpretação do que tinha sido a guerrilha em Cuba, desde o falhanço de Moncada, analisa toda a progressão da guerrilha de 1957 até à entrada em Havana em janeiro de 1959. E tece comentários que podem ser úteis para as concordâncias e divergências com a atuação de Amílcar Cabral. Ele cola a palavra guerrilheiro à luta cubana, a palavra guerrilheiro era símbolo de um desejo de liberdade, e apreciava a revolução cubana pela sua ação libertadora, propulsora da reforma agrária. O exército de guerrilha, exército popular por excelência, era constituído por indivíduos virtuosos, disciplinados, ágeis, física e mentalmente. O guerrilheiro deve procurar esgotar o inimigo, desmotivá-lo, fazê-lo perder a tranquilidade. Para que a tática resulte, o conhecimento do terreno deve ser perfeito, ter um conhecimento rigoroso da aproximação e da retirada, do esquema ofensivo e defensivo do inimigo. O guerrilheiro é um reformador social, pega nas armas contra a opressão, reclama uma pátria e a mudança de regime social e económico, é um intérprete das aspirações da grande massa camponesa.

Guevara pronuncia-se igualmente sobre o método guerrilheiro, lembra a diversidade de aplicações na Ásia, na África e nas Américas, discreteia se o método da guerrilha é a única fórmula para a tomada do poder em toda a América e põe uma questão muito dura se a revolução cubana poderá sobreviver se o movimento revolucionário não se expandir pelas Américas. Na esteira de outras correntes revolucionárias, refere a necessidade da classe operária, observa que a América vivia num estado de equilíbrio instável entre a ditadura das oligarquias e a pressão popular. Tanto ele como Régis Debray não esconderão a sua profunda desilusão com o comportamento seguidor do estalinismo da generalidade dos partidos comunistas das Américas. Vaticina uma luta longa e sangrenta no continente americano, haverá numerosas frentes, custará muitas vidas. Está plenamente convicto da vitória, as burguesias nacionais estavam mancomunadas com o imperialismo. Em dado passo, Guevara dá o parecer que o crescimento do mercado comum europeu iria acarretar o desenvolvimento de contradições fundamentais, acentuar mesmo a eclosão da luta americana, e refere que há já indícios seguros na Venezuela, Guatemala, Colômbia, Peru e Equador. Curiosamente, não fala na Bolívia, em cuja guerrilha se inseriu, em 1965, e onde foi assassinado, dois anos depois.

Guevara sentia-se na obrigação de procurar sistematizar a experiência cubana e o processo revolucionário cubano, definindo o cânon do guerrilheiro e a estratégia de guerrilha. Em tudo quanto escrevia deixava claro que a revolução cubana era o simples prelúdio da onda revolucionária que iria varrer todo o continente latino-americano. Dava como certo e seguro que as forças seculares podiam ganhar uma guerra de guerrilhas contra um exército institucional; que nem sempre se podem esperar todas as condições para a revolução, poderá ser imperativo criar um foco insurrecional e o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo. Nunca perde de vista a crítica à inoperância dos partidos comunistas e depois detalha o princípio, o desenvolvimento e o fim da guerra de guerrilhas: “No início há um grupo mais ou menos armado, mais ou menos homogéneo, que se dedica quase exclusivamente a esconder-se nos lugares mais agrestes, mantendo raros contatos com os camponeses, esse núcleo de guerrilheiros pode viver isolado, embrenhado na mata, mas a luta não pode avançar sem o apoio dos camponeses, daí o papel determinante do trabalho político”. E enfatiza de novo o guerrilheiro como um reformador social. Nos seus escritos, Guevara não ignora a existência de contradições na massa dos agricultores e camponeses, a propriedade da terra, a existência de oligarcas possuidores de grandes propriedades, o que gera aproximações interclassistas e interdependências que podem fazer hesitar a massa de agricultores e camponeses em aderir à guerrilha.

Também os seus escritos fazem uma clara apologia ao internacionalismo, e observa que o imperialismo é um sistema mundial, a última etapa do capitalismo, por isso é preciso derrotá-lo numa grande confrontação mundial. Todos os estudiosos do guevarismo não iludem que Che tinha plena consciência que a revolução cubana não poderia permanecer isolada. O seu confronto com os partidos comunistas latino-americanos foi extremamente duro. Ainda preponderava a sombra de Estaline que dava como seguro que os países latino-americanos pelo seu atraso precisavam de modelos de governação de unidade nacional, Guevara achava-os cristalizados, totalmente incapazes de detonar focos insurrecionais, por estrita obediência a um princípio estalinista que já estava no caixote do lixo da História. Guevara também não iludia o princípio marxista do proletariado, respondendo que o camponês era o verdadeiro agente revolucionário, o que contrariava o que Marx dissera, que o camponês constituía uma “massa de produtores não envolvidos diretamente na luta entre capital e trabalho”. Guevara reconhecia as diferenças existentes sobretudo naqueles países com grandes centros urbanos, como era o caso do Brasil, da Argentina, Chile e Uruguai. Mas Guevara não aceitava a necessidade de haver guerras de guerrilha diferenciadas, postulava que a influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente, isto para regressar à ideia de que se devia contar com uma guerrilha de camponeses.

Como é evidente, Guevara cometeu inúmeros erros de apreciação da realidade socioeconómica e cultural dos países latino-americanos, esteve no Congo a procurar estimular focos insurrecionais, foi um fracasso total, encontrou-se em Conacri com Amílcar Cabral, não há documentação de Cabral sobre tudo o que se passou nesse encontro, mas que teve resultados promissores. Primeiro, Guevara considerou Cabral o único dirigente revolucionário com consistência e linha organizativa bem delineada. Cabral pediu apoio a Cuba e recebeu. Em 1966, em janeiro, na cidade de Havana, Amílcar Cabral exporá as linhas norteadoras do movimento revolucionário que dirige, incomodará muita gente quanto ao conceito de luta de classes e ao significado do proletariado. Fidel Castro admirou a ousadia da exposição de Cabral. Passeiam-se por Cuba, garante-lhe mais apoio. Será em Cuba que se irão formar os cabo-verdianos que era suposto promoverem a luta armada no arquipélago. Tal não aconteceu, mas esse grupo cabo-verdiano irá ser determinante em território guineense.

(continua)

Che Guevara no Congo
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)

7 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Estive onze dias em Cuba, em 2018, viajei por metade da ilha. Um povo pobre, nobre mas entristecido. Uma ditadura mole. Com Fidel e Guevara quase tudo falhou. Eu sei, antes, com Fulgêncio Baptista o país também era uma desgraça. Quais Franz Fanon, quais teorias foquistas de Guevara? Custaram-lhe, estupidamente a própria vida, na Bolívia.
Estive no Perú, em 2020, com ex-combatententes do Sendero Luminoso, que também alinharam com as teorias e práticas de Fanon e Guevara. 70.000 mortos, quase nenhuma conquista.
A nossa História faz-se com factos, com a realidade, não com utopias e revolucionarismos que jamais funcionaram. Teorias de que Amilcar Cabral também era porta-bandeira. Com os resultados que conhecemos na Guiné-Bissãu e em toda a África.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

A grande desgraça de alguns paises sulamericanos, tão difíceis de se orientarem como certos paises africanos, foram tanto uns como os outros "desgraçados" por governantes super corruptos e irresponsáveis e incompetentes.

Esses governantes na América latina foram apoiados pelos USA, e nas Áfricas, caso dos nossos Palopes, foram apoiados pela URSS.

Quem precisa de apoios, está tramado.

Anónimo disse...

Pois o pior é que nos tempos que correm não há pedradas no charco.Os revolucionários de ontem bem como os democratas são os ditadores, os burgueses e os capitalistas de hoje.O que fala mais alto é o capitalismo, seja ele de estado ou não.E as guerras são sempre provocadas pelos mesmos.Vê-se hoje como vai o mundo.
Quanto ao mito do Che, figura que me atraiu e admirei quando era novo e ingénuo.Verificou-se mais tarde, que não passava de um mito e a revolução para ele era uma boa maneira de dar escape aos seus instintos sanguinários.Talves por isso e outras o Fidel mandou-o exportar as revoluções para outras paragens.No caso de Angola e nos dois congos não se deu bem.
Abraço
Carlos Gaspar

Unknown disse...

Belas e saborosas citações JBelo!
Felizmente há Luar.
O Grupo de Teatro Lethes promoveu vários espectáculos com essa peça.
Eu interpretava o Vicente e o Antônio Sousa Falcão.
O Joaquim Teixeira que foi Fur. Mil na comp. do João Crisóstomo, o D. Miguel Forjaz.
Um texto fabuloso, onde a figura sinistra do Principal Sousa,subverte a mensagem de Jesus Cristo.
Abraço
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

Cuba, "...Um povo pobre, nobre mas entristecido.."
sujeita a embargo pelos USA desde 1962
PIB per capita 8.433$s (2017)

Vizinhos e apoiados pelos USA
Haiti
PIB per capita 852$s (2014)
Republica Dominica
PIB per capita 5.763$s (2012)

Peru
Sempre apoiado pelos USA
PIB per capita 7.135$s (2016)
(o Sendero Luminoso criado nos anos 1960s de inspiração maoísta e formado por um grupo de intelectuais)

Valdemar Queiroz

Manuel Luís Lomba disse...

"Che Guevara tinha especial predilecção pela Guiné Portuguesa".
Em meados de 1965, fiemos uma operação de intervenção de três dias lá para as bandas do Cantanhez, talvez na mata de Cafine, dizia-se que o Che andava por lá, trocamos tiroteio e bazucadas, regressamos convencidos que andamos na sua peugada - a malta do blogue LG&Camaradas da Guiné corrigiu-me décadas depois, ela descera de Conacri a Boké e não passara daqui.

Criar mitos e lendas é peculiaridade dos grandes aventureiros, até os grandes carteiristas, o Che foi um grande aventureiro revolucionário ou grande belicista, como queiram, e sanguinário q. b., grande sedutor, nem a filha do director da PIDE lhe escapou (in memoriam), dissidira do Fidel e veio oferecer-se a Amílcar Cabral, para subempreiteiro da sua guerra, mas com a mais alta patente, superior ao Nino Vieira, ao Paulo Correia, ao Osvaldo Vieira,etc., o líder guineense descartou a sua oferta e a sua doutrina à Franz Fanon, a luta do proletariado a sua cartilha, na Guiné não havia indústria, operários e proletariado, a mortalidade infantil era o regulador deste, os guineenses eram camponeses-a bolanha e a mata os campos de batalha, os camponeses guineenses foram a base de sustentação e os vencedores da sua guerra.

O Amílcar nem lhe entregou o comando nem seguiu as suas tácticas revolucionárias, grande azar o nosso, um ano bastaria para acabar com a Guerra da Guiné...

Mas a sua memória usurpa a memória do grande guineense que foi Honório Barreto - usurpou-lhe o nome na praça de Bissau...

A amizade entre combatentes guineenses e combatentes portugueses, logo e durante a retracção retirada portuguesa, testemunhada e documentada no nosso blogue não foi de geração espontânea: a tropa cumpria a guerra, mas era amiga do povo guineense...

Abraço.

Valdemar Silva disse...

Luís Lomba, sempre com grande poder de, não digo de inventar, inculcar situações.
A "...a luta do proletariado a sua cartilha..." é uma tirada de 500 paus, mas Che nunca andou nessas andanças. Ao que se sabe, o seu "Diário" conhecido foi revisto pela CIA, ele sempre esteve mais ligado a revoltas de camponeses, que na Guiné e em África não se verificavam.
O Alberto Korda imortalizou Che com a sua icónica/celebre fotografia, até lhe chamaram o Cristo do século XX e neste momento milhares de jovens e não jovens andarão por várias países do mundo e não só m Cuba, com uma t-shirt vestida com a sua imagem sem a intensão ou com 'instintos sanguinários'.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz