quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23740: Historiografia da presença portuguesa em África (340): A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que este trabalho represente uma lança em África, reconheça-se que o antigo governador da Guiné procurou ser meticuloso quanto à presença portuguesa desde o Infante D. Henrique até ao fim da dinastia de Avis, embora ele não tenha dado o devido valor, que agora os arquivos reconhecem, à tenaz afirmação dos concorrentes que vinham de Espanha até aos Países Baixos, todos na mira do tráfico negreiro, do comércio do ouro e da malagueta. Dizer-se que o espaço ocupado pelos portugueses se manteve incólume até à chegada dos Filipes é um tanto flor de retórica, como diz o povo "quem não aparece, esquece", é evidente que estes reis apoiaram o tráfico negreiro mas não colonizaram. Bem dizia André Álvares de Almada no termo do seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dirigindo-se a Filipe I de Portugal, que aquela zona era riquíssima e que precisava de ser colonizada. Não foi, e D. João IV viu-se em apuros para restabelecer a presença portuguesa a partir de Cacheu e contando com a orientação de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



A Reconquista da Costa da Guiné, por Leite Magalhães, coronel e antigo governador

Mário Beja Santos

"A Restauração e o Império Colonial Português", edição da Agência Geral das Colónias, 1940, é uma obra coletiva e nela consta um texto assinado pelo Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné, ele aparece na seção intitulada "A Reconquista do Império", e faz uma apreciação do que se passou na Costa da Guiné.

Procede a uma resenha dos acontecimentos ligados ao projeto henriquino, observando que depois da morte do Infante a Costa da Guiné se estendeu com D. Afonso V e D. João II até ao Cabo da Boa Esperança. Usava-se o termo Costa da Guiné para falar de toda a costa ocidental de África para além do rio Senegal, esta designação foi usada bastante tempo. O máximo da sua extensão deverá considerar-se atingido pela viagem de Rui Sequeira em 1475, ele chega ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores que, nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V, fez o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado até ao extremo do Golfo de Biafra, também descobrindo as ilhas de S. Tomé, Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó, todas no mesmo Golfo. Toda esta nova e vasta zona passou a jurisdição da ilha de S. Tomé, foi doada a Álvaro de Caminha, seu povoador.

Assiste-se agora a um compasso de espera, já que D. Afonso V tinha duas preocupações dominantes, continua Leite Magalhães: Marrocos e Castela. Seja como for o contrato com Fernão Gomes acabou por abrilhantar o seu reinado, tendo o seu filho, D. João II, dado continuidade ao projeto henriquino.

O Infante D. Henrique pelo seu testamento (1460) legou a Guiné e “suas ilhas” (Cabo Verde) ao seu sobrinho, o Infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Acresce dizer que desde de 1461 toda a costa da Guiné, entre o rio Senegal e a Serra Leoa fica ligada a Cabo Verde. Em 1474, findo o contrato com Fernão Gomes, D. Afonso V faz doação a seu filho D. João de todo o comércio da Guiné. A costa era rica em mercadorias preciosas: o ouro, a malagueta, o marfim e os escravos. E logo começou a aparecer a pirataria em descarada competição. É nesse contexto que se abrem hostilidades com Castela, em 1479, segue-se um tratado de paz com os Reis Católicos, nesse mesmo ano, e nele se fez o reconhecimento do senhorio da Guiné ao Rei de Portugal.

Dada a presença constante de concorrentes ao comércio português nestes pontos da costa ocidental africana, houve um plano de construção de fortalezas, deu-se primazia ao Castelo de S. Jorge da Mina, pois para aqui convergia todo o comércio da Costa da Malagueta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Este plano de construções continuou no reinado de D. Manuel, construiu-se uma fortaleza em Axém, onde se resgatavam “em cada ano 30 a 40 mil dobras de bom ouro”. Em Lisboa, todos os negócios daquelas bandas corriam pela Casa da Mina e Tratos da Guiné. Contudo, a presença portuguesa era episódica e limitada aos pontos de comércio. Iniciara-se um sistema de colonização com o povoamento de Santiago, com cultivos feitos por gente da Guiné. D. João II acrescentou aos seus títulos, em 1485, o de Senhor da Guiné, na prática era um título decorativo. Ele doou em 1489 as ilhas cabo-verdianas a D. Manuel. E em 1490, Rodrigo Afonso, Capitão em Santiago, iniciou o povoamento da ilha da Boa Vista com negros transferidos da ilha de Santiago.

Outra peça importante, mas meramente em termos legais, foi o Tratado de Tordesilhas em que se regularam as zonas de influência portuguesa e castelhana em Marrocos e também a divisão geral das terras descobertas e por descobrir. O período que decorre desde a morte de D. João II até a ocupação de Lisboa pelas tropas castelhanas não regista alterações sensíveis na costa da Guiné. Mantinham-se inalteradas as jurisdições das capitanias. Porém, aquela expansão do espaço imperial trouxe novas preocupações e exigências. Indiferente ao que se passava no continente africano, as ilhas de Cabo Verde aumentavam de população, crescia a exploração agrícola e pecuária. Surgiu a cultura do algodão, os gados bovino, caprino, cavalar e suíno multiplicavam-se nas ilhas. Convém recordar que o porto da Ribeira Grande na ilha de Santiago servira de porto de escala à armada de Vasco da Gama em 1497, ia este em demanda da Índia. O mercado de escravos continuava a tentar a concorrência, o rei D. Manuel bem tentou por alvará criar disciplina quanto a esta presença estrangeira, chegou a proibir os moradores das ilhas de fazerem resgates na Guiné sob pena de prisão e perda de navios, com magros resultados.

Durante o período filipino vai crescer a presença dos inimigos de Espanha e automaticamente Portugal, mas em caso algum se pode dizer que esta pirataria pôs em causa o que se chamava a presença portuguesa. E Leite Magalhães dá como demonstrado que até Filipe I de Portugal nada se perdera na Costa da Guiné, o saque começou depois. Admitamos que as coisas que se tenham passado mais ou menos assim, mas é na ausência da presença portuguesa que nomeadamente ingleses, holandeses e franceses começam a tomar posições que futuramente merecerão a ocupação envolvente do enclave da Guiné Portuguesa, era tarde demais para melhorar a nossa presença no que outrora fora a Alta Senegâmbia.

É bem curiosa a exposição de Leite Magalhães, não esqueçamos que estávamos a comemorar a Restauração e não ficava mal lançar o ónus do que se viera a passar na Senegâmbia aos Reis Filipes…


Bissau, o Mercado do Bandim
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

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