Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)
1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Outubro de 2022:
...A boina
Já faltava pouco tempo para regressarmos à Europa, assim, a nossa mente andava um pouco ocupada, mas não tanto para que não se reparasse na falta de recursos daquelas pessoas. Quando livres das nossas tarefas, continuávamos andando por ali, visitando algumas aldeias próximas do aquartelamento levando comida e pão que roubávamos no aquartelamento, assim como rebuçados que comprávamos na loja do Libanês.
Não compreendíamos a alegria nos rosto daquelas pessoas ao ver-nos chegar. Viviam na mais profunda miséria, mas aparentavam sentir-se bem naquelas casas térreas, cobertas com folhas de colmo, com toda aquela falta de utensílios domésticos. Uma simples lata vazia de conserva, que levávamos do aquartelamento, era guardada como se fosse uma coisa preciosa. Não havia água potável, era suja de lama, pó, lixo em tudo o que fosse lugar, improvisando quase tudo e, nunca ouvimos da boca daquelas pessoas uma pequena lamúria.
Mas agora recordando aquele miserável conflito armado em que estivémos envolvidos em África, sabíamos que os objectivos eram provar que a força encontrava a força e, para qualquer dos vencedores, era uma conquista fútil, era uma agressão errada, pois num conflito armado não existem vencedores, os que perdem nunca esquecem, transmitindo a mensagem à próxima geração de família, portanto está provado que um conflito armado, simplesmente não funciona.
E, para nós havia diversos rostos. Talvez o primeiro fosse o verdadeiro conflito armado, o das emboscadas mortíferas, do terror, dos tiroteios, dos ataques do inimigo aos aquartelamentos com as armas morteiro calibre 90 ou das bombas de napalme lançadas pelos aviões das nossas forças que destruiam aldeias e, dos soldados cansados, alguns desmotivados por verem os seus companheiros morrerem ali mesmo, junto de si, os quais, quando era possível, ajudavam a embrulhar no seu própro camuflado o que restava dos seus corpos.
Talvez o segundo rosto da guerra fosse a busca de uma solução política, ou seja, a diplomacia política, mas naquele tempo, com um primeiro-ministro, que se considerava um pai da nação, que tinha falado ao seu povo que devíamos "ir para a guerra e…, em força", sabendo que ia traumatizar uma geração de jovens que, práticamente foram abandonados, assim que se procedeu à independência das ditas Colónias em África, possívelmente envergonhando-se que essa geração era uma geração de combatentes, que defenderam a bandeira do país Portugal, ignorando a legenda que diz: "País que não respeita o passado, não pode ter um bom futuro”.
Não nos querendo alongar, talvez um terceiro rosto da guerra que vivemos em África seja a mais trágica. Era a necessidade humana, onde existia o doente abandonado, a família faminta, a criança analfabeta, centenas, talvez milhares de homens, mulheres e crianças abandonadas, sem abrigo, vestidas com farrapos, lutando pela sua sobrevivência, numa terra muito rica.
Onde as árvores, deixando-as em paz, cresciam com fruto, o peixe dos rios era abundante, havia animais nas savanas, florestas e pântanos e se houvesse paz cresciam e, sobretudo com um solo que era muito fértil.
No entanto, esta última vertente da guerra, trazia-nos angustiados, pois infelizmente alguns, mesmo nos dias de hoje, não querem o fruto das árvores para comer, procuram única e simplesmente, os frutos materiais das árvores.
Voltando de novo às aldeias e ao povo que vivia naquela profunda miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, repartindo o pouco que lhe levávamos. Estas cenas ainda nos davam mais angústia, fazendo-nos lembrar os valores morais da nossa civilização, que repousa na natureza de sermos úteis ao próximo e, não procurar a guerra em que estávamos envolvidos, que naquela época era uma ameaça àquelas pessoas que viviam uma vida de sobrevivência.
No entanto, e este escrito é dedicado a ela, havia por lá uma criança, que não nos largava, sempre vinha em nosso redor agarrando-nos na mão, queria carinho e talvez rebuçados, pois imediatamente nos colocava a mão no bolso. Nós, às vezes embaraçados, não sabíamos com agir para nos despedirmos dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes, dizendo tudo o que lhe ia na alma, não necessitava abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.
Ao regressar à Europa, deixámos as botas de cabedal e parte da roupa da farda, assim como algum dinheiro a essa família, mas a criança, não queria a roupa da farda, queria a boina e o emblema. Nós, quase chorando, entregámo-la com um grande beijo, mas a criança sorriu, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz com as costas das mãos, deu uma gargalhada, mostrando um sorriso que dispensava palavras, pois a sua alegria falava todos os idiomas do mundo.
Tony Borie,
Outubro 2022.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)
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5 comentários:
Tony
Andaste uns tempos afastado, mas regressaste em força.Continua
Já tens muito material para um livro,ou livros,desde histórias da Guiné, a que podes acrescentar aquela tua viagem ao Alasca.
Pensa nisso.
Abraço
P.Santiago
Olá Santiago.
Fiquei muito contente por saber que tu, conterrâneo, companheiro e combatente estás bem.
Águeda, já não é mais a vila que deixei há 50 anos, agora é cidade estrela das revistas de turismo da Europa.
Meu bom amigo, livros, caminhadas, visitas ao doutor, (porque também sou um sobrevivente do maldito câncer), viagens e outras aventuras são ainda os normais passatempos e terapias de "pessoas da nossa idade que já estão desempregadas", claro, quando é possível e a saúde o permite!.
Olha, por falares em Alaska, entre outras aventuras próprias de um combatente, numa pequena caravana que agora temos além de outras peripécias, já fizemos a inteira Route 66 de Chicago a Los Angels por duas vezes, e sempre por terra atravessando canais e rios em jangadas, entrando pelo norte, fomos e viemos da Flórida à Terra Nova e Lavrador, no Canadá e da Flórida ao Alaska também sempre por terra, já por duas vezes e temos intenção de repetir de novo o Alaska.
Nunca esqueço este blogue e os companheiros combatentes que sempre estiveram connosco por anos e, voltando agora, espero continuar quando possível, dando notícias e recordando alguns episódios da Guerra Colonial que todos vivemos.
Um grande abraço meu amigo Santiago,
Tony Borié.
Ó Tony és um super combatente em forma e ainda vais repetir o Alaska! Um abraço.
Tony
Aqui de Águeda vai um forte abraço
Santiago
Meu Amigo Tony
Gostei bastante deste teu "reaparecimento".
E apareceste em força. E em jeito!
Olha, subscrevo o que o Santiago te sugere.
Escreve, tens jeito e tens uma coisa importante: memória.
E tens também esses teus familiares, que tenho apreciado no "Face", que merecem ter os escritos à mão do que o avô viveu, sofreu, superou.
Um bom exemplo.
Abraço
Hélder Sousa
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