quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Sabemos que o Padre António Joaquim Dias regressou muito combalido dos seus oito anos e meio de missionação na Guiné, e depois lançou-se ao trabalho, vamos ter as suas impressões no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira desde 1942 a 1945. Irá ainda publicar um resumo histórico das missões católicas na Guiné, a pretexto das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Infelizmente, depois perdemos-lhe o rasto. Terá seguramente trazido consigo os seus cadernos onde guardou inúmeras referências que lhe serviram para estruturar os artigos que ia publicando, desta feita sobre a organização social e política indígena, a vida familiar, a transmissão de bens, as indumentárias e os adornos, não esqueceu as tatuagens, os penteados que ele classifica de exóticos, até os anéis e anilhas de latão no cabelo, tranças com conchas e moedas, os amuletos em bolsas de couro ou prata lavrada, não deixando de sublinhar que na Guiné era melhor falar em práticas islamizadas do que islamismo, o poder do animismo era muito forte e os religiosos da religião muçulmana tinham a prudência de não serem severos para que o seu proselitismo não levasse ao abandono das práticas religiosas convencionais.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.

O Padre Dias vai-nos dando todas as suas impressões, agora detém-se na organização política e social das etnias, refere que o território está dividido em regulados, assistidos os régulos pelo conselho de anciãos, o poder e ação destes régulos ficaram reduzidos pela Reforma Administrativa Ultramarina, não deixando de referir que vão longe os tempos em que havia de lhes pagar anualmente direitos de suserania. Em termos hierárquicos temos a seguir os chefes de povoação ou de tabanca e que são escolhidos ou confirmados pelas autoridades portuguesas. Os crimes e pleitos entre naturais, julgados e punidos ou dirimidos antigamente pelos chefes e régulos sobem hoje à apreciação, resolução e punição pelas autoridades administrativas. E comenta seguidamente o que distingue morança de tabanca, conceito que consideramos inadequado, mas é o do missionário. Para ele, morança é o conjunto de casas pertencente à mesma família e pode dar o aspeto de grande povoação, principalmente na etnia Brame ou Mancanha. A tabanca é propriamente o aglomerado urbano de várias famílias reunidas em aldeia, embora as palhotas não estejam dispostas em arruamentos e as moranças encontram-se mais ou menos isoladas umas das outras e rodeadas a cada passo de estacaria ou cercado privativo. E dá-se ao trabalho de nos descrever os materiais com que se constroem as moranças, explica a natureza das coberturas e oferece-nos uma curiosidade: “Merece referência especial a palhota dos Balantas. De paredes de barro, amassado com palha de arroz, consta dois pisos sobrepostos. Num e noutro, há divisões que se podem destinar a quartos, armazéns de víveres, currais, etc. Nestes edifícios, as tulhas ou bembas, reservadas aos víveres, são colocadas dentro de casa antes de levantadas as paredes, porque atingem por vezes grande porte e jamais caberiam pelas portas”.

Segue-se uma descrição da organização familiar dos indígenas da Guiné, começa por sublinhar o comando das pessoas de mais idade como elemento predominante, ao lado do papel desempenhado pelos avós e pais. E chama a atenção para o valor económico que reside nos instrumentos de trabalho, nos braços que aram a terra, que lançam a semente, o conjunto de tarefas até à recolha aos celeiros. Quanto ao casamento, diz-nos que geralmente o futuro genro tem de prestar ao sogro serviços vários no amanho das terras. E lança o seu olhar sobre o comportamento que classifica de cruel ou desumano: “Os guineenses rejeitam os gémeos e os defeituosos que antes dos 3 ou 4 anos expõem na selva à voracidade das feras ou afogam nos rios e pântanos. A mesma sorte cabe frequentemente às crianças cujas mães faleçam de parto e ainda às que, por crendice, forem classificadas de feiticeiras. Entre os Manjacos, não pode o indivíduo, criança ou adulto, estar doente mais de 8 a 10 dias. Sucede o mesmo entre os Brames. Aqueles matam-no fazendo ingerir água a ferver; estes abrem-lhe as veias das fontes com uma faca, ou, mais vulgarmente, utilizando vidro de garrafa. Em 1934, surpreendi em Bula uma velhota que terminava esta última operação a um neto, perdido aliás para uma infeção grave de um maxilar”.

Informa-nos igualmente que as missões católicas mantinham e dirigiam um asilo de crianças do sexo feminino em Bor, a sete quilómetros para nordeste de Bissau, a que fora apensada uma secção de creche destinada precisamente a salvar a vida das crianças órfãs e das repudiadas pelos pais. Mais adiante dá-nos uma explicação sobre a transmissão dos bens: “É muito raro o indígena da nossa Guiné dispor dos seus bens em forma testamentária perante as autoridades gentílicas ou europeias. Por uma parte, as usanças tradicionais inibem-no de aliená-los à própria família; e, por outra, ele sabe que serão atribuídos infalivelmente quem pertençam por direito consuetudinário da etnia, fiscalizado pelo régulo. Os filhos não são os herdeiros, nem dos bens nem dos cargos paternos. Refiro-me aos bens de vínculo, ao património da família, recebido dos antepassados que devem transitar para os sucessores certos e legais. Ao herdeiro incumbe fazer a despesa dos funerais ou o Choro pelo falecido. A sonoridade e duração deles depende da fortuna do morto ou dos recursos do herdeiro”.

Dentro da sua observação cabe também o traje e os adornos do indígena. Fala já em processos de aculturação, menciona o contato das etnias autóctones com os islâmicos ou islamizados do Sudão, da Mauritânia e de outras regiões africanas que os levou ao conhecimento dos tecidos e ao aproveitamento do algodão. Lembra que segundo Zurara, os primeiros portugueses que aqui arribaram encontraram árvores de algodão e que os tecidos e peças de roupa eram tidos em grande apreço nas trocas com os portugueses. E elenca essas peças: calção, saias, tangas, chapéus, lenços, cofiós, entre outros. Também está atento a pormenores bizarros e não perde ocasião de os comentar, como é o caso deste: Estava eu a pesquisar neste boletim mensal mais textos do Padre Dias quando me apareceu a notícia de que no dia 8 de dezembro de 1950 tinha sido solenemente sagrada a nova Igreja de Bissau a que chamamos catedral. Dias antes chegara o bispo sagrante, prelado de Cabo Verde, recebido como hóspede de honra da Guiné. Na primeira parte das cerimónias estiveram presentes Monsenhor Ribeiro de Magalhães, franciscano e Prefeito Apostólico, Monsenhor Próspero Dodds, Prefeito Apostólico de Ziguinchor, autoridades civis e militares, missionários e povo. A 8 foi completada a sagração, na presença do governador Raimundo Serrão. “As ruas apareceram à noite ricamente iluminadas, foi queimado vistoso fogo de artifício e potentes holofotes faziam realçar, no negrume da noite calma, a brancura da fachada do novo templo”. No dia 11 teve lugar uma luzida sessão solene comemorativa da celebração.

(continua)

A velha Igreja de Amura
A nova Igreja de Bissau
Assistem à Sagração os Revmos. Srs. Prefeitos Apostólicos da Guiné e de Ziguinchor
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

A nova igreja de Bissau era típica do Estado Novo, no seu estilo "português suave", a que não faltava sequer um cata-vento em forma de galo... Não vejo nela absolutamente nada que incorpore algum elemento da cultura guineense, nem verifico alguma adaptação ao clima (que julgo ser quente e húmido) da Guiné. É uma igreja que foi feita em Bissau, como poderia ter sido construida em Alguidares de Baixo. Assim era a colonização portuguesa. Em vez de assimilar a cultura africana, incorporando-a na portuguesa, os colonizadores limitavam-se a espalhar "Portugalinhos" pela África e pela Ásia, e assim julgavam que os habitantes locais já se sentiam portugueses. Em Angola, chegaram ao extremo de construir uma cópia da igreja de Santa Comba Dão no colonato da Chela!

Fernando Ribeiro disse...

Correção: onde está escrito "Chela" deveria estar "Cela".

Antº Rosinha disse...

"O governo angolano decidiu classificar como património histórico-cultural nacional a igreja matriz de Waku Kungo, da autoria do arquiteto Fernando Batalha, uma cópia fiel da de Santa Comba Dão, concelho natal de Salazar."

Fernando Ribeiro, não é que na Costa do Marfim, em plena Sanzala de um dos presidentes mandaram construir uma cópia da basílica de São Pedro?

São gostos, Fernando Ribeiro.

E como caíu no goto, o hábito do casaco e gravata, na capital Angolana, naquele calorzinho bom que os retornados venciamos de calções e camisa de macau e chinelo?

Gostos não se discutem.

Valdemar Silva disse...

Podemos dizer que esta Catedral de Bissau, construída sobre a "medieva" existente, foi o que se pode arranjar. A Catedral de Luanda também tem este estilo de igreja da metrópole.
Em Moçambique foi diferente a construção da Catedral de Maputo (ex-Lourenço Marques), bem ao estilo das igrejas existentes na África do Sul é uma belíssima igreja.
Mas em Maputo está uma obra d'arte de igreja:; a Igreja de Santo António da Polama.
A Igreja da Polama, do arq. Nuno Craveiro Lopes, faz parte de várias obras de outros edifícios noutras construções da cidade, que foram preservadas, como experiência modernista em Moçambique que também se verificou em Angola.
A Igreja da Polama é uma obra de arte da arquitectura portuguesa.

Saúde da boa
Valdemar Queiro

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Concordo com o Fernando Ribeiro. Os "portugaisinhos" eram uma forma de afirmação dos colonos, assim como a toponímia das localidades que se iam construindo. Foi assim em todas as colonizações (até nos EUA)
Porém, no que respeita à cristianização das populações, que era o que mais se apregoava, estamos conversados: os islamizados tinham os seus locais de culto (recordo a pequena mesquita de Bafatá e a palhota-mesquita com um relógio de casa-de-jantar em Bonía/Cacine) e até o faziam em casa que também contava para salvação das suas almas; os animistas não compreendiam esses "luxos" dos brancos nem deles necessitavam. Os irãs era mais modestos...

Um Ab.
António J. P. Costa

Fernando Ribeiro disse...

Inácio Rebelo de Andrade foi um "retornado" de Angola. Escrevo "retornado" entre comas, porque não se retorna a uma terra de onde não se saiu. Inácio Rebelo de Andrade era um branco nascido em Nova Lisboa (Huambo), que veio para Portugal em 1975 com a descolonização. Por cá, seguiu a carreira académica na sua área profissional, que era Agronomia, e jubilou-se como professor catedrático da Universidade de Évora. Faleceu há poucos anos.

Além dos livros técnicos e científicos da praxe, Inácio Rebelo de Andrade publicou alguns livros de poemas e de ficção em prosa, nos quais a cidade do Huambo estava quase sempre presente. No seu livro "O que Disparo em Verso", publicado em 2014 pelas Edições Colibri, de que o autor teve a gentileza de me oferecer um exemplar acompanhado de uma simpática dedicatória, lê-se o seguinte poema:

NOVA LISBOA E A SUA TOPONÍMIA

(2ª evocação de uma Angola colonial)

Norton de Matos,
Paiva Couceiro,
Pereira d'Eça,
José de Almeida.

Nessa cidade
que havia em África,
nomes de brancos
tomavam conta
da toponímia
das avenidas,
ruas e praças.

Da Baixa à Alta:
Craveiro Lopes,
Silva Carvalho,
Sousa Gentil
e outros mais
iguais a tais.

Nesta cidade,
que havia em África,
tão batizada
com apelidos
de homens ilustres
que eram do Puto
— nomes de negros
(como o do soba
Wambo Kalunga
ou o do rei
Katiavala,
que muita gente
desconhecia)
não se escolhiam
no Município,
nem para becos
de serventia...


Puto: designação dada a Portugal pelos naturais da ex-Colónia. «Homens do Puto» queria dizer homens naturais de Portugal.

soba: chefe tradicional com jurisdição territorial reconhecida pelo seu povo.