quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Se acaso existe algum valor nestas impressões de viagem e no cuidado posto pelo Padre António Joaquim Dias quanto à história da presença missionária franciscana na Guiné, dar-se-á o caso o estudioso ou curioso poder reter o olhar de um missionário que ali viveu intensamente na década de 1930 e transitou para a seguinte. Não faz o panegírico da missionação franciscana, mas não ficamos com dúvidas que foi uma pequena saga a sua instalação, o seu fervor apostólico. Como homem do seu tempo, deixou registado o seu olhar sobre aquele mosaico étnico que deixava qualquer viajante assombrado, como era possível em território tão diminuto encontrar-se aquela riqueza multiétnica, multilinguística, aqueles usos e costumes que variavam radicalmente no mesmo espaço e lugar, numa convivência alegadamente pacífica, sem qualquer radicalismo religioso, que se prolonga aos dias de hoje. Tenho vários cartapácios ainda para ler, vamos ver quantas mais surpresas nos reserva o Padre António Joaquim Dias.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O Padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa. Elaborou um texto sobre os missionários franciscanos na Guiné e conta que em 1931 foram desviados do campo apostólico de Moçambique os primeiros missionários, não foi operação indolor, como ele escreve:
“Antigos e prestimosos obreiros de Deus e da Pátria, lamentavam o abandono a que eram condenados. Na Guiné havia míngua de obreiros. Durante anos, um único sacerdote foi todo o clérigo da colónia. Gostosamente prestamos aqui homenagem cordial ao Padre José Pinheiro, ainda vivo e reformado após mais de 30 anos de serviço na Guiné, o qual soube trabalhar sozinho e aguentar-se, esperando contra toda a esperança dias melhores, menos agrestes. Estes surgiram em 1931, com modesto reforço, ao qual se seguiu outra um pouco mais nutrido, em 1932”.

E recorda o seu estabelecimento na vila de Cacheu, as bases da missão central de Bula, em chão de Brâmes ou Mancanhas, a primeira missão da Guiné depois de séculos de entorpecimento religioso e paralisação missionária. Relata os acontecimentos entre 1934 e 1937, não ilude a falta de recursos, começam a aparecer escolas em Farim, em Có, refere que o Governador Carvalho Viegas não era grande apoiante do trabalho missionário, mas que, no entanto, sabia fazer propaganda da presença missionária, iam surgindo artigos anónimos aludindo à obra de assistência social e às missões religiosas, isto quando na prática era o próprio governador que as não apoiava. Nesse ano de 1935 apareceu o Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida de Bor, com o auxílio de mais quatro irmãs Franciscanas Hospitaleiras. As baixas eram enormes, em 1936, Padre Pedro, absolutamente exausto, era forçado a sair da Guiné. No ano seguinte era inaugurada a Escola do Sagrado Coração de Jesus de Pelundo. Interrompe aqui o Padre Dias a sua descrição para nos falar de aspetos etnográficos e etnológicos que julga pertinentes divulgar, e espraia-se sobre o mosaico étnico da Guiné.

À luz dos conhecimentos da época, refere a seguinte tipologia: Fulas e Mandingas provenientes de uma mistura de Etíopes e de Nigríticos (negros sudaneses e nilóticos); as demais tribos constituiriam o grupo dos Nigríticos litorais ou guineenses, que não usam línguas Bantus. Diz faltarem estudos sobre a origem e parentesco etnográfico destas gentes africanas e alude a algumas referências sobretudo da literatura de viagens sobre as gentes da Guiné, caso das obras de Valentim Fernandes e de Duarte Pacheco Pereira, pondo ênfase que no século XVI já figuravam na Guiné os Balantas, os Felupes, os Banhuns, os Beafadas e os Nalus. Há também referências à tribo Papel, eram situados na chamada Costa de Baixo, nas ilhas de Pecixe e Jata e provavelmente também na ilha de Bissau.

Os Bijagós também não são esquecidos. André Alvares de Almada, no seu "Tratado Breve dos Rios da Guiné", cita e localiza diferentes etnias, com exceção dos Baiotes, Manjacos, Fulas e Futa-Fulas, e depois o Padre Dias lança-se numa apreciação do mosaico étnico.
Os Felupes já nos primeiros anos do século XVI ocupavam a posição geográfica atual; os Baiotes estavam agora confinados entre o rio Cacheu, os Felupes, os Banhuns e a fronteira, mas não são referenciados na já citada literatura de viagens e o Padre Dias diz mesmo que o Padre Marcelino Marques de Barros dá os Baiotes como uma subdivisão dos Felupes; os Banhuns tinham um território que constituía centro comercial das ilhas de Cabo Verde, estendiam-se pela margem esquerda do rio Casamansa avançando por cima dos Felupes, e eram cingidos ao sul pelos Brâmes, que já lá não existem, e por cima e pelos lados por Cassangas; estes, assentavam no local que cingia os Banhuns, o Padre Marcelino Marques de Barros faz dos Cassangas uma subdivisão dos Beafadas; os Mandingas apareciam agora instalados nas regiões de Farim, Paxisse e Oio (onde tomam o nome de Oincas), alargaram durante o século XVI o seu espaço territorial para a região de Mansoa até às margens do estuário comum aos rios Geba e Corubal; os Balantas terão descido do rio Casamansa para as zonas em que hoje vivem: Barro, Bissorã, Mansoa e Nhacra; os Buramos ou Brâmes comprimiram-se inicialmente entre o rio Cacheu e os Banhuns, foram-se espalhando por toda a região de entre os rios Cacheu e Geba, contam hoje com os regulados de Bula, Có e Jol, o Padre Marcelino diz que os Brâmes são uma subdivisão dos Banhuns; os Papéis podem ser confundidos com os Brâmes por ocuparem territórios afins e estendem-se hoje por toda a ilha de Bissau; os Manjacos são os marinheiros da Guiné, permanecem um ponto de interrogação no quadro etnográfico da colónia, Brâmes, Papéis e Manjacos mantêm afinidades etnográficas e linguísticas; os Beafadas ou Beafares já no século XVI ocupavam as regiões onde hoje vivem, do Quínara ou Guinala, e do Cubisseque e Bissegue, é dado como seguro existiram afinidades linguísticas entre Beafadas e Manjacos; os Nalus mantêm-se igualmente no território que habitavam no século XVI, a sul do rio Tombali; os Fulas constituíam no passado o Grande Império Fula ou Grão-Fula, que principiava no rio Senegal e se estendia para o Sudão, em concorrência com o Grande Império Mandé ou Mandinga, Fulas-Forros e Fulas-Pretos representam migrações Fulas, que foram deslocando para o litoral grupos étnicos instalados primitivamente a leste, são os autóctones mais bronzeados da colónia e ocupam atualmente as zonas do Gabú, Bafatá e Forreá; os Futa-Fulas ou Fulas do Futa Djalon, enviados outrora ao Forreá para extensão da supremacia política, é o tipo mais aproximado do Fula clássico, não foram mencionados pelos escritores de Quinhentos, por não existirem então no nosso território, povoam atualmente a região do Boé; os Bijagós são indígenas de cor preta, encontrando-se porém nalguns sinais evidentes de mestiçagem, dialetos e costumes variam quase de ilha para ilha, podendo admitir-se talvez a hipótese de imigrações várias.

Depois desta exposição sobre os grupos étnicos, o Padre Dias especula o número de habitantes da Guiné, mas diz claramente que falta um recenseamento seguro. O seu poder de observação vai até aos usos e costumes, como se exemplifica:
“As tatuagens estão em moda em alguns grupos étnicos. Usam-nas Manjacos, Brâmes, Papéis, Balantas e Bijagós, no peito, no ventre, nas costas e braços. São produzidas por escarificações à faca ou agulha e infetadas ou cheias de massa de azeite de palma com cinza. Os Mandingas usam tatuar-se na testa e frontais. Os Futa-Fulas tatuam os lábios a azul, pintam da mesma cor as pálpebras inferiores e abrem sinais particulares nas palmas das mãos. Notam-se penteados exóticos em quase todas as etnias, são feitos com pente indígena de madeira, semelhante a largo e comprido garfo de muitos dentes. Os Felupes ornam a carapinha, depois dos dez anos, confiadas de búzio; os Papéis de Biombo (ilha de Bissau) usam risca ao meio ou então tranças isoladas apertadas na base ou ainda tranças em torno da cabeça, de onde pendem anilhas de latão. Os exóticos penteados das mulheres Futa-Fulas, sobremontados por alta forma de palha, são adornados com fita de palha tingida de negro e abastecida de moedas e contas. Os Balantas penduram anéis e anilhas de latão da carapinha torcida e besuntada de azeite de palma e carvão moído, ou então rapam a cabeça, à faca ou a vidro, deixando somente algumas placas de cabelo, de forma redonda, ou valada, longitudinais ou transversais. Das pequenas tranças das mulheres Beafadas pendem conchas e moedas, em toda a volta da cabeça. Finalmente são inconfundíveis os dois sistemas de penteado Bijagó: tufos de cabelo soerguidos no alto da cabeça ou então empastada a carapinha toda em azeite de palma, barro ou carvão moído".

(continua)
Guiné - Catedral de Bissau
Guiné - A Igreja de Cacheu, única relíquia dos velhos tempos
Mancanha em dia de festa
Missão do Felupes. A casa que serve de igreja, escola e residência missionária
Bolama. A procissão na festa de S. José
Guiné. Tipo bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23533: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

A imagem da Catedral de Bissau é interessante.
Trata-se de uma fotografia, provavelmente de 1935/36, quando foi inaugurada/consagrada a Catedral de Bissau passados quase 500 anos dos portugueses terem descoberto e lavado a fé cristã aquelas terras de "selvagens".
Esta igreja com ar medieval assim esteve até 1945, quando o Ministro das Colónias (Marcelo Caetano) autorizou o Gabinete de Urbanização Colonial a reconstrução da nova e actual Catedral. A nova Catedral, que muitos de nós conhecemos, tem numa das suas torres um dispositivo de farol para guiar os barcos no rio Geba.
Como curiosidade nos anos de 1940 e até 1950 não havia nenhum preconceito de chamar Colónia à Guiné, depois é que apressadamente para não assustar as criancinhas passou a Província Ultramarina. E ai de quem diga Colónia que até pode ser multado.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Caro Valdemar,
A denominação "Província Ultramarina" não foi inventada em 1940 ou 1950. Ela já existia no tempo da Monarquia. Há bastante tempo, encontrei, já não sei onde, um texto do séc. XIX em que Angola ou Benguela (que era então uma colónia separada de Angola), já não me lembro ao certo, era chamada "Província". De resto, é curioso verificar que a Monarquia era menos colonialista do que a República, ao contrário do que seria de esperar. O general Norton de Matos, por exemplo, era republicano e ainda por cima maçónico.

O que talvez não saibas, porque na Guiné nada se alterou a este respeito, é que Marcelo Caetano atribuiu a designação de "Estado", em vez de "Província", a Angola e a Moçambique, em finais de 1972 ou em 1973. O Presidente do Conselho disse então que esta designação era puramente honorífica, que em nada iria alterar o estatuto de Angola e de Moçambique no seu ordenamento jurídico, e justificou-a com o facto de que a Índia Portuguesa também nunca era chamada "Província da Índia", mas sempre e só "Estado da Índia". Considerou Marcelo Caetano que Angola e Moçambique já eram suficientemente desenvolvidas (tanto como Goa, Damão e Diu), para passarem também a merecer a designação de "Estado". Em Angola, pelo menos, esta designação foi adotada de imediato, como se pode comprovar pelas gravações existentes na internet de duas rádios da época:

Rádio Clube do Huambo, de Nova Lisboa - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-radio_clube_do_huambo_cm_1972.m3u

Rádio Clube do Moxico, da cidade do Luso - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-radio_clube_do_moxico_ik_c1967.m3u

(Lembro-me de que em 1973 eu mesmo escutei, com estes que a terra há de comer, citações de Amílcar Cabral lidas aos microfones do Rádio Clube do Moxico!)

Nas rádios moçambicanas nada se alterou. O Rádio Clube de Moçambique, nomeadamente, continuou a usar a sua identificação de sempre, que rezava assim: «Aqui Portugal, Moçambique, fala o Rádio Clube em Lourenço Marques». Na cidade da Beira, a Rádio Pax insistiu também em chamar a Moçambique «província de Portugal em África». As gravações são as seguintes:

Rádio Clube de Moçambique, de Lourenço Marques - http://www.intervalsignals.net/files/moz-z-radio_clube_de_mozambique_cc.m3u

Rádio Pax, da Beira - http://www.intervalsignals.net/files/moz-z-radio_pax_cm_c1972.m3u

Outras rádios de Angola do tempo colonial:

A Voz de Angola, de Luanda - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-vo_angola_c1969.m3u

Rádio Ecclésia, de Luanda - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-radio_ecclesia_cm_1972.m3u

Rádio Clube do Lobito, da cidade do Lobito - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-radio_clube_do_lobito_cm_1972.m3u

Rádio Comercial de Angola, de Sá da Bandeira - http://www.intervalsignals.net/Files/agl-z-radio_comercial_de_angola_cm_1972.m3u

Outras rádios de Moçambique:

Lourenzo Marques Radio, ou LM Radio, canal em inglês do Rádio Clube de Moçambique, de Lourenço Marques - http://www.intervalsignals.net/files/moz-z-lm_radio_rvd_c1967.m3u

Emissora do Aeroclube da Beira, da cidade da Beira - http://www.intervalsignals.net/files/moz-z-emissora_do_aeroclube_da_beira_cm_1972.m3u

Infelizmente, não encontrei qualquer gravação de alguma estação de rádio da Guiné do tempo da "Outra Senhora".

Um abraço

Fernando Ribeiro

Valdemar Silva disse...

Caro Fernndo Ribeiro
Num extenso artigo da "Revista Miliar" nº. 2439, Abril 2005, "A Colonização Portuguesa no séc. XIX á luz da Estratégia", do Ten.-Cor.Av. João José Brandão Ferreira, podemos ler:
"...........
A designação de “colónia” encontra-se já no século XVII e XVIII e o termo “província” entrou na linguagem do século XIX por via legislativa. A Constituição de 1822 já fala em “Ultramar” e “Províncias Ultramarinas”.
Não havendo representação ultramarina nas Cortes (antes da 1ª Consti­tuição, nem uma formulação, digamos, jurídica do território), cedo houve preocupação em se estabelecer um órgão estatal para tratar especificamente dos territórios de além-mar. Foi assim que surgiu o Conselho Ultramarino, criado por D. João IV, em 1643, e que se manteve até ao fim do Estado Novo.
Em termos constitucionais a designação “províncias”, perdurou de 1822 a 1911, durante a Monarquia e de 1911 a 1920, na I República e de 1951 a 1974, na II República, num total de 121 anos; enquanto que o termo “colónia” foi empregue durante 6 anos na I República, de 1920 a 1926, e 21 anos no Estado Novo, de 1933 a 1951, num total de 24 anos.
......................"
E todo um extenso texto sobre este assunto, e como o próprio título do texto o diz assim foi sendo ao longo dos tempos por razões estratégicas. Depois é que veio este nosso querido Portugal do Minho a Timor para "arranjar motivos mobilizadores" para o povo deixar os seus filhos ir para a guerra.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz