segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Impossível estudar a história da Guiné sem apreciar a primeira peça historiográfica, o "Tratado breve dos rios da Guiné".
É incompreensível como nunca se tenha feito uma reedição com o português actualizado. É um documento cheio de detalhe, como se o autor, à luz dos conhecimentos actuais, possuísse a preparação de etnólogo e etnógrafo. Percorreu a muito pouco definida Senegâmbia, vê-se que sabe do que está a falar, desde a economia à religião. Dá para entender a frágil presença portuguesa, tirante alguns pontos dos rios, tudo pelo diverso comércio, percebe-se a importância do tráfico de escravos. asseguro-vos que nada há aqui de enfadonho, é uma peça historiográfica que deve encher de orgulho portugueses e guineenses.

Um abraço do
Mário


"Tratado Breve dos Rios de Guiné": 
A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (1)

Beja Santos

Em 1594, o capitão André Álvares de Almada, natural da ilha de S. Tiago escrevia o documento mais importante sobre o encontro luso-guineense: "Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde"; desde o rio de Sanagá até aos Baixos de St.ª Ana; de todas as Nações de Negros que há na dita Costa, e dos seus costumes, armas, trajes, juramentos e guerras. Elementos mais valiosos, riqueza documental assim, não existiam na nossa historiografia. No entanto, o trabalho de André Álvares D'Almada andou esquecido. Deve-se a Diogo Köpke, em 1841, relevando trabalho de ter preparado a edição do Tratado, feita à base de um manuscrito que estava recolhido na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Em 1946, no âmbito das comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, dava-se à estampa a edição nova do tratado.

Não percamos tempo naquilo que toda a gente sabe: a Guiné que aqui se descreve ia desde o alto Senegal até à Serra Leoa; a Guiné do Cabo Verde tem a ver não com o arquipélago mas com o cabo do mesmo nome, em território continental; Álvares de Almada percorreu a costa e entrou em diferentes rios, diz no prólogo que foi pelo rio Gâmbia 150 léguas; e os primeiros capítulos registam exatamente povos que não ocupavam o território que foi o da Guiné portuguesa e é hoje o da Guiné-Bissau, os Jalofos, o reino dos Barbacins e Mandingas, o reino da Gâmbia, o território dos Arriatas e Falupos, e por fim o reino do Casamança. É nesta complexidade de observações que se encontram elementos de indiscutível importância, mas para o conhecimento mais alargado de toda a região.

É a partir do chamado reino dos Buramos (não esquecer a então influente etnia Brame) e dos Falupos do rio de São Domingos que estamos chegados ao território atual. Diz o cronista: “A primeira povoação está com 8 léguas de entrada ao longo do rio de S. Domingos, chamado pelo nome de Farim. As casas da dita povoação são de taipa, como as de Casamança, com grandes cercas de paus fincados a pique feito um muro de palha a que chamam Tapadas”. Aqui havia artilharia numa fortificação para defender este território das intrusões de ingleses e franceses, forte mandado edificar por Manuel Lopes Cardoso, vizinho da ilha de S. Tiago. A povoação ao lado do forte teria 700 a 800 pessoas e imperava a fé cristã. Os ingleses e franceses queriam comerciar couros, cera e marfim. E tece um comentário: “Os negros nesta terra, os cortesãos que andam da corte dos reis com quem tratam os nossos, andam vestidos com umas roupetas compridas e uns panos cingidos, e por debaixo desses panos trazem uma pele. Os mais do sertão andam nus. As armas que trazem são espadas curtas, facas, azagais, adargas, frechas”. O rei dos Buramos ia ao forte assistir à missa, a presença cristã ao tempo era incontestável. E o autor insiste na necessidade de se fundar na ilha de S. Tiago uma casa de religiosos para vir aqui missionar. S. Domingos era terra dos Banhus, aqui havia uma aldeia grande e se praticava o tráfico de escravos. Temos aqui descrições primorosas sobre usos e costumes, descrevem-se também Casangas, caçadores de elefantes e explica a arte da caça. Observa que no rio de S. Domingos há mais escravos que em todos os outros da Guiné, porque nele participam Banhuns, Buramos, Casangas, Jabundos, Falupos, Arriatas e Balantas. Ficamos a saber que os Buramos são bons e serviçais escravos, e que limam os dentes.

E segue-se a descrição dos Bijagós e dos seus costumes: são muito guerreiros, pelejam com os Buramos e Beafares, não há rei entre eles, fazem as suas povoações ao longo do mar, atravessam muitas vezes mais de dez léguas e vão até o Rio Grande, terra dos Beafares e fazem grande destruição. Os homens não fazem mais que três coisas – guerra, fazer embarcações e tirar o vinho das palmeiras; as mulheres fazem as casas, e as searas, pescam e fazem todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes. Os aspetos de retenção do pitoresco são de um grande observador, serve como exemplo: “As mulheres andam despidas da cinta para cima; trazem um modo de saias feitas das folhas da palma, que dão por cima dos joelhos. As paridas trazem os filhos nos braços, atados numas correias de couro cru, que trazem ao pescoço, com que sustentam e têm as crianças (…) Os negros Bijagós são mui pretos, deles gentis homens; não furam as orelhas; as mulheres sim. Alguns limam os dentes de maneira que fiquem abertos e não agudos”.

O registo muda agora de orientação, vai para o Rio Grande, Terra dos Biafares: “Esta terra dos Beafares é muito grande, e assim como é grande há muitos reis, uns metidos pelo sertão, outros ao longo do rio. No reino de Guinala, que é a primeira pernada, anda o reinado em duas gerações, na dos fidalgos e na dos plebeus. Há tempos que herdam os fidalgos e entram no reinado, e há tempos que herdam os plebeus – ferreiros ou sapateiros. E sabem os que governam quando cabe a qualquer destas gerações. E entram no reinado sem guerra nem dissensões, porque não elegem para haver de ser rei senão um muito velho, e nunca os fazem mancebos; e estes velhos vivendo muito os matam”. Depois de dizer que os Beafares são grandes ladrões, descreve a roupa: “Estes negros andam vestidos em umas camisas compridas que lhes dão pelos joelhos, e uns panos cingidos até meia perna, e por debaixo deles trazem umas peles de cabra curtidas sem cabelos”. A missionação é inexistente: “O bispo da ilha de S. Tiago manda todos os anos visitar neste rio como faz no de S. Domingos, mas nenhum fruto resulta de tal visitação. Se se pode dizer, tenho para mim que a causadora de viverem da maneira que vivem. Falo nisto outra vez, porque me pesa ver entre cristãos tanto desamparo. Nesta aldeia dos nossos estiveram no ano de (15)84 uns frades carmelitas descalços que com o seu modo de vida e doutrina faziam grande fruto; por onde me parece que por falta de quem pregue a Doutrina e Palavra de Deus não há hoje nestas paragens muita Cristandade”.

E o cronista discorre sobre a fixação de gentes, o comércio de escravos e a pacificação dos autóctones: “Não deixará de alterar-se o preço dos escravos e das outras mercadorias povoando-se esta terra, mas é necessário que se acuda mais ao serviço de Deus que ao proveito dos homens. Digo isto porque depois que os nossos se aldearam e se puseram todos a par do forte, compram-se os escravos e o mais que na terra há por mais preço do que soia ser; porque antigamente estavam afastados, aposentados em casas de fidalgos uma légua e meia, uns dos outros, e lhes acudia mais resgate, e não abatiam uns aos outros, e eram guardadas suas pessoas dos seus hóspedes e dos seus parentes. Hoje saindo os nossos fora da aldeia tratam-nos os negros mal, e não são seguros como dantes, dizendo que querem estar por força na sua terra. Chamo tratar mal, se fizerem os nossos ou seus escravos qualquer desaguisado não o sofrem os negros, e sobre isso há muitas brigas, e às vezes mortes; o que não era dantes”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12511: Notas de leitura (547): "Portugal em África", por Richard Pattee (Mário Beja Santos)

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