quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12529: Manuscrito(s) (Luís Graça) (16): desejos

O desejo é um pudim instantâneo

Luís Graça

 Quando eu era puto sempre me ensinaram
o terrível poder do Desejo, com D grande:

 Diz três desejos e cala-te! 
Intimava-me o Brutamontes.

 Quero ser rei,
ter um exército invencível
e destruir todos os meus inimigos!
 

confessava eu, baixinho, aterrorizado,
no recreio da escola.

Cresci e perdi definitivamente a ilusão
de que um dia poderia ser Deus.
Omnipotente. 

Omnisciente. 
Omnipresente.
Nem sequer rei ou até general.

Sou simples soldado da própria minha guerra (existencial).
Em contrapartida, aprendi a conhecer (mal)
os quatro cavaleiros do apocalipse humano:
a estupidez, 

a arrogância, 
a ganância, 
a intolerância.

Quanto ao desejo, com d pequeno,
pu-lo no frigorífico, 

em caixinhas tupperware:
saúde, 

paz, 
amor, 
amizade, 
liberdade,
justiça,
dinheiro,
felicidade
Em doses generosas, fraternais.
Tudo pronto para ser exportado,
por terra, por mar ou by air.
Tudo pronto a ser usado
num próximo ensejo.

Mas o desejo tem um prazo 

de validade.
O desejo dá azo
a efeitos secundários e exige precauções,
antes de ser formulado.
Deve agitar-se, primeiro, antes de usar-se.
Nunca deve ser congelado, 

nem muito menos revalidado.
Em caso algum, deve ser sublimado.

Hoje o desejo é um pudim instantâneo
que se compra no hipermercado
e está sujeito a IVA 

e a controlo da qualidade.
Vem em dose individual
e o seu modo de administração é cutâneo.
Por mim, confesso, 

ao senhores do fascismo sanitário,
que sou um produtor artesanal
de desejos.
Que não estou homologado nem acreditado.
Que a minha produção é para autoconsumo,

meu e dos amigos.
E que às vezes tenho maus desejos.
E até maus pensamentos.

Alguns poderão ser  virtualmente criminosos, 
receio bem.
Como quando era puto, e queria ser rei,
e ter um exército invencível,
e matar o Brutamontes.



Hoje despeço-me do velho ano de 2013
e saúdo o novo ano de 2014.

Sei que é um mero truque de calendário.
Um dia sucede a outro.
Todavia, gostaria deveras 
de poder usar o terrível poder
do Desejo com D grande...
Mas tenho medo do risco totalitário.
Alguém disse que o desejo corrompe,
e que o desejo absoluto corrompe absolutamente.

_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12485: Manuscrito(s) (Luís Graça) (15): A minha quadra... natalícia: Q'remos pedir este ano / À Troika e ao Pai Natal / Que volte a ser soberano / O nosso querido Portugal


6 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Felicito o Luís Graça por esta soberba crónica em verso. Diz tudo sobre a instantaneidade dos nossos desejos e a desfaçatez com que alguns os dissolvem por não terem a cartilha da vida. Que o ano de 2014 não mate os nossos desejos. Ao menos isso.

Hélder Valério disse...

Caro amigo Luís Graça

Não raras vezes nos tens brindado com poemas que, de um modo geral, acabam por reunir o consenso aprovativo do 'povo do Blogue'.

Umas vezes comento, outras não.

Este "poema/programa" tem a minha total concordância, quanto à forma, ao fundo e à 'substância'.
Está na dose certa. Nem demasiado longo nem tão curto que não se possa perceber bem a que se destina.

E, já agora, subscrevo também o comentário de Adriano Lima o qual, também, pode figurar como complemento ou 'explicação resumida' do poema.

Bom Ano!

Hélder S.

José Botelho Colaço disse...

Parabéns Luís pela facilidade com que transportas em verso para o papel o que te vai no pensamento.
Um bom ano 2014.
Colaço.

Mário Vasconcelos disse...

Claro que compartilhei todos esses desejos vertidos em poema.
Já agora, digo-vos que abri o meu tupperware onde os retive com carinho.
Tampa fora e foram-se todos, satisfazendo cada um em função das suas necessidades mais prementes.
Bom Ano e bons frutos de vida.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro camarada Luís Graça

Saúdo-te com amizade no início deste novo ano 2014

Algumas vezes tenho sentido os teus poemas como eruditos exercícios cerebrais, um pouco no meu contra-gosto. Eu sou mais simples, menos cerebral, mais emotivo.

Mas este poema tocou-me fundo e senti-o muito oportuno no início do ano.

Li um discurso fluido, agradável, artístico. Subliminarmente evocas sérias questões existenciais que nos são comuns.

Por mim quero optar por romper as malhas que me prendem aos ilusórios e redutores desejos menores. Não devo ter medo de aspirar aos Desejos Maiores, Verdadeiros e Absolutos, não corruptíveis se assentes na Verdade, na Liberdade e no Amor.

Mas para tanto há uma guerra a vencer, neste TO da minha existência, em que sou soldado, campo de batalha e inimigo nas próprias limitações .
Vencidos os desejos menores, os seus postos serão ocupados pelos Reforços que o Grande General envia em abundância.

A ousadia é grande, mas não falte a vontade e as ajudas não falharão; Por terra, por mar e pelo ar.
Parto pois para o combate deste novo ano,alerta e munido de Esperança e de Confiança.

Um abraço
JLFernandes

Bispo1419 disse...

Após uns tempos passados por "aí" à procura duns momentos de paz íntima, abandonado um dia a dia caseiro e social algo deprimente, a tentar arranjar forças para o combate do dia a dia futuro, procurando nos meus "irmãos franciscanos" da natureza uma companhia reconfortante, eis que regresso e abro este "baú": sai-me, lá de dentro, esta pérola de texto envolta num perfume de vida e me dizendo que, nas palavras de outros, podemos encontrar sinais vivificadores cheios de alertas para o caminho que se tem de percorrer e que, ao mesmo tempo, nos ajudam a compreender a (nossa) vida.
Obrigado, Luís. Prometo "voltar" em breve já que me sinto com alguma "carga na bateria".
Um abraço amigo do
Manuel Joaquim