1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2013:
Queridos amigos,
A observação deste capitão da Ilha de S. Tiago está centrada no norte e no centro da Guiné, como hoje a conhecemos. É verdade que todo o relato começa no alto Senegal e findará na Serra Leoa. No que tange ao território atual as descrições começam no rio de S. Domingos, passam pelos Bijagós, e depois entusiasma-se com o reino dos Beafadas, a etnia então mais poderosa no Sul.
Temos aqui a descrição do comércio e dos seus povos. Ficamos a saber que havia pequenos elefantes e leões e o tão cobiçado anil, e havia mesmo ouro. Descrição poderosa, por vezes galvanizante.
Assim como a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, é o encontro com a história, este Tratado que marca o início das belíssimas narrativas sobre os povos da Guiné.
Um abraço do
Mário
Tratado breve dos rios da Guiné:
A “cédula pessoal” do encontro luso-guineense (2)
Beja Santos
Se é verdade que o bordão do historiador é a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, a obra que marca o encontro entre os nautas portugueses e os povos da Guiné é esse fabuloso documento intitulado “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, da responsabilidade do capitão André Álvares de Almada. O relato começa com a descrição dos Jalofos, do rio de Sanagá, o tal rio que separa os mouros da terra dos negros. Impressiona a sua linguagem detalhada e clara, como segue exemplo: “Este Reino dos Jalofos era muito grande, e estava debaixo da obediência de um Rei muito poderoso, o qual era entre esta nação como Imperador, e quando se falava nele se dizia o Gran-Jalofo. Tinha outros reis que lhe davam obediência e pagavam tributos. Mas como o tempo costuma a desfazer a uns e levantar a outros, muitas vezes de nada, assim foi com este do Império dos Jalofos”. Desce ao pormenor falando dos seus costumes e trocas comerciais, outro exemplo: “As mercadorias que levam os nossos a estas partes são cavalos, vinhos, bretanhas, contaria da Índia chamada da fémea limpa e boa, e o cano de pata, que é a mesma contaria comprida, outra da mesma contaria redonda, do tamanho de uma avelã e maior. Toda esta contaria é estimada entre eles é o tesouro e joias que eles têm. Estimam também o ouro; compram algumas peças feitas, vinta-quatreno vermelho, grão, margarideta, continha de Veneza, papel, coral miúdo, e búzio miúdo, o qual corre como dinheiro para gastos. Nesta costa se acha muito âmbar, e o rei do sertão dela tem muita quantidade dele, porque de todo o que acham os negros lhe dão sua parte, e tem tanta quantidade que tem dentro dos seus paços um modo de casa de barro, como forno de cozer pão, e o tem cheio dele e em muita estima”.
Dos Jalofos passou à descrição dos Barbacins, depois o reino da Gâmbia, chega então à barra de S. Domingos, descreve os Falupos (Felupes), o reino de Casamansa, o reino dos Buramos (Brames), que confina com os Balantas, e ao Beafares. A navegação prossegue até ao reino dos Bijagós e à terra dos Beafares, a descrição é cuidadosíssima: “Este Beafares não tem as suas casas aldeadas como as outras nações, senão afastadas algum tanto umas das outras, e as fazem segundo a pose de cada um, e no lugar onde as fazem vivem ali os parentes todos juntos, reconhecendo ao mais velho a quem dão obediência; e por isso em alguns casos de Juízos e Leis que entre eles há, sendo condenados algumas vezes os maiores a perdimento de bens e liberdade, se cativa uma geração. Vivem apartados em casas de taipa cobertas de palhas, às quais, como cá se chama entre nós Quintas, chamam eles Polonias, e há algumas de alguns fidalgos muito grandes de muitas casas”. Álvares de Almada revela uma atenção enorme sobre as culturas, hierarquias sociais, está atento às inclemências do tempo: “Esta terra de Biguda é toda coberta de muitos matos e arvoredos; chove nela muito; dão grandes trovões; caem muitas pedras de corisco. Usa Nosso Senhor com estes Gentios de sua misericórdia grandemente, porque lhes dá água em abastança e muitos temporais, e o inverno com tanta temperança que não pode mais ser; porque ainda que chova muita água, logo torna o tempo sereno e bom; e desta maneira cria a terra muito. E ainda que esteja o tempo claro, arma-se uma nuvenzinha pequena, que vai-se fazendo maior; e quando se não precatam começam de roncar os trovões; dá um grande pé-de-vento, e antes de dar há de acalmar o outro que ventava de antes; e dando o vento dura por espaço de um quarto de hora ou mais; deixa-se descarregar tanta água que não há pode-la esperar; tanto que choque que logo cessa o vento e dura a água uma hora ou duas; depois torna a esclarecer tudo e a fazer sol; e por isso tem tão boas novidades”.
Estamos portanto em pleno Sul da atual Guiné, e começa a descrição dos reinos dos Nalus, Bagas e Coquolins, descreve o comércio do rio grande de Buba, com todo o detalhe: os Nalus vendem escravos, esteiras finas, pequenos dentes de marfim, eram terras em que se matavam muitos elefantes e segue-se uma descrição pormenorizada: “Estes negros, não sei porque arte, se metem debaixo dos elefantes com umas azagais muito largas e grandes, e metendo-se dão-lhes com aquela arma e as mais vezes que podem, e acolhem-se. Começa o elefante de correr a uma e a outra parte, e vão-lhe caindo as tripas delgadas, e com as mãos e pés as vão trilhando e quebrando até que morre. Vai o negro pelo rasto do sangue dar com ele morto. Desfazem-no; dão ao rei o que tem dali, que são as mãos e pés e a tromba; o mais comem eles. Perguntando algumas vezes a alguns negros como se metem debaixo daquele animal tamanho e tão espantoso; respondiam que comiam mesinha para isso. Seja como for, eles o fazem; descreve os búfalos, o gado vacum, fala em onças e leões, a terra destes Nalus é grande, o comércio era feito por povo entreposto, os Beafares. Outra preciosidade para o comércio era o anil, tintas muito procuradas e explica a técnica a partir de árvores como hera e que vão trepando pelas outras árvores e têm as folhas largas: “E os negros, no tempo, apanham estas folhas e as pisam, e fazem uns pães como de açúcar, assim grandes, enfolhados com as folhas de cabopa, e vêm os nossos navios carregarem-se destas tintas, que é um grande trato, para o rio de S. Domingos. E já nos outros anos, governando a Rainha D. Caterina, que Deus haja, se mandou carregar e trazer à cidade de Lisboa uma caravela destas tintas, para as experimentarem, isso levou a Cádis parte da tinta. Não sei de que modo a acharam, mas sei que da ilha de S. Tiago se levou por muitas vezes a tinta que se nela faz a Sevilha e a Cádis e a acharam boa e da erva de que se faz o verdadeiro anil”. Fica-se igualmente a saber que esta tinta era levada para o rio de S. Domingos e utilizada pelos Brames e os Banhuns, e mesmo comercializada no Casamansa, resgatada por escravos.
A viagem no que é a Guiné-Bissau está praticamente a findar. Refere ainda os Bagas, muito atraiçoados isto é matavam à traição, com ritos absolutamente selvagens: “E em os matando cortam-lhes as cabeças e dançam com ela. E depois as cozem e tiram a carne toda, e limpas de carne e miolos bebem por elas, servindo-lhes de púcaros. Nisto não há dúvida. E quantos mais vasos tiver um negro em sua casa mais honrado é. E hão de entender que não hão de ser somente de brancos, se não de quaisquer pessoas que eles possam matar. Suas armas são umas azagais de uns ferros largos e compridos. Usam espadas, frechas e adargas de verga e rota boas. Têm suas almadias, que navegam de uma parte para a outra, e de rio em rio ao longo da terra”.
E assim se chega ao Cabo da Verga, dobrado chega-se ao rio das Pedras, o reino dos Sapes, vamos ter descrições até à Serra Leoa, assim descrita: “Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos; muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, limoeiros, canas-de-açúcar, muitos palmares, e muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar; há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”. Texto sugestivo em que Álvares de Almada sugere ao rei que venha gente da Europa e de Cabo Verde para aqui, aqui há riqueza, é melhor deixar empresas duvidosas e povoar território fértil até à Costa da Malagueta. E assim se despede de El Rei, com o desejo de ver esta terra povoada de cristãos.
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Nota do editor
Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12523: Notas de leitura (548): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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