quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 23 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Nestas horas de releitura dos livros deste nosso bondoso confrade conjecturo o que teria sido bom para conhecer mais aprofundadamente a História da Guiné se o António Estácio, com o cabedal de relações humanas que possuía, tivesse andado pela Guiné a recolher história oral em diferentes dimensões, logo aquele Bissau da sua juventude que ele reteve com a máxima limpidez até que uma doença traiçoeira o foi enchendo de nevoeiro, leem-se estes livros das sinharas, e mesmo com algumas recusas justificadas por falta de lembrança, Estácio entrou na lembrança, nas recordações de mais de meio século atrás. Viremos um dia, portugueses e guineenses, a lastimar profundamente o desaproveitamento deste capital cultural e relacional que aos poucos se vai esvaindo, fazendo arder bibliotecas inteiras.

Um abraço do
Mário



Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó

Mário Beja Santos

António Estácio, entre os seus sonhos de investigação, não escondia o ardente desejo de tentar um levantamento das sinharas, aquelas matriarcas, habitualmente crioulas e casadas com europeus ou cabo-verdianos que tiveram um papel determinante nos Rios da Guiné, nomeadamente entre os séculos XVI a XIX. Neste texto dedicado a Nha Bijagó citará mesmo o nome de algumas: Bibiana Vaz, Aurélia Correia, Júlia Silva Cardoso e Rosa Carvalho Alvarenga, a mãe de Honório Pereira Barreto. Qual não foi a minha surpresa quando, aí por 2011, num desses encontros espúrios que tínhamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa me entregou o seu mais recente livro dedicado a Nha Bijagó. Perguntei-lhe se tinha ido à Guiné em segredo, já que nesta conversa introdutória me referia dezenas de entrevistas, que não, fizera praticamente dois livros de uma só assentada, em 2006 andara pela Guiné a bater por muitas portas, umas vezes para saber de Nha Carlota, outras vezes para saber de Nha Bijagó. Quem era esta matriarca, perguntei-lhe, tão dignas das suas preocupações. E falou-me de Leopoldina Ferreira, filha de uma nativa dos Bijagós e de um comerciante que se dedicava à compra e exportação de couros, de gado bovino e de crocodilo. Com calor, voltou a enquadrar o papel das sinharas, tão maltratadas pela historiografia. E deu-me conta que quanto à investigação da Nha Bijagó ele entendeu que era útil para o leitor fazer uma ligação cronológica entre acontecimentos políticos, administrativos e militares com significado contemporâneos da vida da Nha Bijagó. Se recorreu aos testemunhos, não descurou a árdua tarefa da pesquisa, como escreve no livro: “Desafio que me levou a consultar dezenas de livros, Boletins Oficiais, documentos. Tinha ela um ano quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo. Em 1879, a sede do Governo passa a ser Bolama, a primeira capital. Em 1886, em 12 de maio, assina-se a Convenção Luso-Francesa que define as fronteiras da colónia.”

Leopoldina casou com o cabo-verdiano José Ledo Pontes, teve casamentos subsequentes, filhas e netos. Ora, António Estácio conviveu com vários bisnetos da Nha Bijagó que lhe facultaram nesta investigação informações da maior utilidade. Mas voltando à contextualização de acontecimentos, Estácio socorre-se de uma interessante descrição de Bissau da época, saída da pena do Padre Marcelino Marques de Barros, publicada na Revista As Colónias Portuguesas, n.º 3, fevereiro de 1884, temos ali um quadro preciso desde o Forte de S. José até ao cais de Nasolini, e não se esconde a insalubridade em que se vivia em Bissau, o que justificará ao autor a seguinte observação: “As más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, quando Nha Bijagó entrava nos 15 anos, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné!”

Acresce os conflitos e os incidentes era moeda corrente em Bissau naquele tempo, uma situação de completa instabilidade que se prolongou até à I República.

O perfil económico de Nha Bijagó distinguia-se de Nha Carlota, Leopoldina era uma abastada proprietária imobiliária, não havia rua no Bissau Velho em que não tivesse uma casa. E começa o tropel das entrevistas para recolha dos testemunhos, logo avulta a disparidade de uma mulher de fé católica que escondia o seu lado animista. E conta-se a história de alguém que veio desabafar com a matriarca e esta propôs a realização de uma cerimónia gentílica a essa pessoa que sofrera uma série de desaires, foi-se comprar para a cerimónia aguardente sacarina, tabaco em folha e arroz, a cerimónia realizou-se em Prábis, no Irã de etnia Papel. Leopoldina era também um bom garfo, era de estatura média mas a puxar para o largo, trocava imensas receitas, descobriu-se um papel em que passou a alguém a receita de brindge (feito à base de carne de pato, galinha ou porco, temperado, cozido ou frito, servindo-se com mandioca ou batata cozida e o omnipresente arroz).

Dotada de forte personalidade, enérgica, não fugindo a atos de cólera, era de extrema solicitude e foi madrinha de meio mundo. E Estácio descreve o ritual da recolha das rendas, no final de cada mês, Leopoldina dirigia-se aos seus inquilinos e anunciava nha povo, djam bem! Sentava-se num banquinho e esperava solenemente que viessem ter com ela e lhe entregassem o montante correspondente à renda.

Dentre as suas pesquisas detectivescas, Estácio encontrou o que restava do local de residência de Nha Bijagó à entrada da estrada de Santa Luzia. Nha Bijagó está sepultada em campa rasa, com o número 189, no talhão n.º 5, do antigo cemitério. Aqui fica a tenra homenagem de Estácio a alguém que ele não conheceu na sua juventude de Bissau, mas ficou para a lenda. Triplov, encontrei na internet, faz publicação integral deste livro, aqui fica a referência:

Texto integral de “Nha Bijagó”. Respeitada Personalidade da Sociedade Guineense. (1871-1959), por António Estácio, edição do autor, 2011. Disponível em:
https://www.triplov.com/guinea_bissau/antonio_julio_estacio/nha_bijago/nha_bijago.pdf 

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau). Morreu aos 87 anos, em 26 de maio de 1959.
A Rua de S. José, em Bissau, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois, Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudou em 21 janeiro de 1975, Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23543: In Memoriam (449): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (2): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota (Mário Beja Santos)

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