sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23557: Notas de leitura (1479): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta reportagem sobre os desafortunados onze meses de conflito político-militar que abanou a Guiné pelos alicerces. Há qualquer coisa de drama shakespeariano neste presidente Nino que vai sendo gradualmente deixado só, obrigado a recrutar uma tropa de choque de gente desempregada, os "Aguentas", e que na hora da capitulação, em maio de 1999, é trazido pelo embaixador português que o foi encontrar transido de medo numa instituição da Igreja Católica. Samba Bari, há que reconhecer, escreve meticulosamente todo este rol de eventos, de entendimentos e acordos ruidosamente celebrados e rasgados no dia seguinte, isto enquanto a Junta Militar se vai apoderando do país e recebendo cada vez mais apoio popular. Há pontos da historiografia guineense em aberto e nenhuma investigação até hoje explicou como este tirano odiado em 1999, exilado em Portugal, regressa em 2005 e é espetacularmente recebido, desarvorando uma nova fase belicista, com um corolário de assassinatos, de que ele próprio será vítima. E dentro do nevoeiro continuam as estruturas do PAIGC, estes quadros indecifráveis que se odeiam uns aos outros e querem alcandorar-se a postos que lhes sirvam a ganância, e o mistério ainda fica mais completo porque o povo lhes dá o voto.

Um abraço do
Mário



Um guineense usa a reportagem para contar o conflito político-militar de 1998-99 (2)

Beja Santos

O conflito despoletado em 7 de junho de 1998, na sequência da demissão imposta por Nino a Ansumane Mané, ainda por cima com a grave acusação de que o lendário Bric-Brac contrabandeava armas para os sublevados do Casamansa iria estender-se por penosos onze meses, com ondas de terror, populações em fuga, movimentações diplomáticas em catadupa, acordos celebrados e rapidamente violados. Samba Bari, um guineense que vivia no estrangeiro na época deste conflito político-militar que deixou sequelas até ao presente, elaborou em jeito de reportagem A Guerra de Bissau, Sinapis Editores, 2018. Não esconde que a leitura de todos estes acontecimentos relacionados com devastação e gradual empobrecimento da Guiné-Bissau pode contribuir para que mentes abertas saibam extrair ensinamentos positivos para uma retoma que obedeça a reconciliação, perdão e sentido de um desenvolvimento a pensar nos mais carenciados.

Das razões antigas e próximas do conflito, Samba Bari dá-nos uma síntese. Há uma omissão no seu olhar que não é incomum aos guineenses, até hoje, que eu saiba, não se analisou a fundo a natureza social do PAIGC e dos seus quadros após o golpe de Estado de novembro de 1980. Uma liderança despótica, onde pululam favoritos e o receio de políticos concorrentes, recheada de casos de corrupção, com a destruição a frio de todos os projetos e muitas das infraestruturas provindas da era de Luís Cabral, obrigatoriamente que leva à constituição de fações e projetos com largas diferenças. Nesta nova classe política não há estudos efetuados, os quadros do PAIGC e a sua visão do Estado permanecem no nevoeiro.

O autor passa em revista as primeiras hostilidades, as tentativas de mediação, os tiros de artilharia que vão arrasando embaixadas e hospitais, as iniciativas para criar corredores humanitários, fica bem claro que Nino Vieira ainda manda na península de Bissau, está cercado pela Junta Militar, angariou ódios com o pedido da intervenção estrangeira, até os velhos combatentes da luta armada voltaram a pegar em armas. As fidelidades a Nino vão-se quebrando e pelo passar dos meses a Junta Militar vai-se assenhoreando do resto do país.

Elencam-se as negociações diplomáticas e os compromissos que ninguém irá respeitar. Ansumane Mané torna-se mediático, recebe jornalistas estrangeiros a escassos quilómetros do Palácio Presidencial, circula livremente entre Bissalanca e o Cumeré. Os senegaleses tornam-se odiados, pelos crimes praticados, pela violência das suas destruições, numa atitude bárbara devastaram cerca de dois terços do património histórico da Guiné-Bissau, guardado e conservado no INEP. Em agosto, falhado o memorando de entendimento assinado pelo governo guineense com a Junta Militar, sob os auspícios, entre outros, da CPLP, a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) consegue obter temporariamente tréguas, toda a sociedade civil guineense se movimenta a reclamar paz. A hostilidade ao Senegal passa para a França. Vem a lume a notícia de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês possuía um relatório exclusivo sobre o regime de Bissau, com informações incendiárias: a situação caótica da administração pública; a fraude nas eleições presidenciais e legislativas de 1994; o estado de penúria em que se encontravam as Forças Armadas; o desvio de muitos milhões de dólares durante o processo da troca do peso para o franco CFA; os assassinatos políticos (com os nomes das vítimas e dos seus carrascos); a corrupção generalizada dos membros do governo em ligação com o mundo dos negócios; o tráfico da droga, a venda de passaportes a grupos do crime organizado internacional… Há desmentidos, mas para a opinião pública não há fumo sem fogo.

Sucedem-se os precários cessar-fogos, viaja-se para Banjul, Abidjan, Sal, Abuja, assinam-se papéis que são rasgados no dia seguinte. Nino não quer perder poder mas toma consciência que o seu mando é precário e circunscrito, aceita em Abuja que se forme um governo de unidade nacional, contrafeito aceita o nome de Francisco Fadul para primeiro-ministro. Novas peripécias, de novo a violação do acordo. E no último dia de janeiro de 1999 os canhões voltam a despejar metralha sobre Bissau, o Hospital Simão Mendes foi severamente atingido, falta material médico, marcam-se tréguas para que mais habitantes abandonem a cidade. As duas únicas emissoras ativas na Guiné, a Rádio Nacional e a Rádio Bombolom clamam pela guerra, é preciso aniquilar a parte contrária. A comissária europeia Emma Bonnino viaja até à Guiné e na sua presença Nino e Ansumane Mané prometem voltar à paz. O governo de unidade nacional toma posse, insiste-se na saída dos senegaleses, apela-se a que a CEDEAO nomeie outra força de interposição.

Fadul vem à Europa, pede apoios, à volta da Guiné as tensões não param: é o Senegal e o Casamansa, são os receios de Dacar de ver denunciado o acordo de partilha da zona comum de exploração petrolífera, em que Nino se rendera claramente aos interesses do Senegal; são os interesses da França em intervir em Bissau, quer proteger a Elf na Guiné; a própria Guiné Conacri saíra totalmente humilhada no assalto a Fulacunda quando a população pôs o contingente do país vizinho em fuga. Nino, cada vez mais isolado, recruta gente desempregada como tropa de choque, são os “Aguentas”. A 6 de maio, a Junta Militar exige a redução desta guarda pessoal de Nino, ele rejeita categoricamente, reforça-a e reequipa-a. Foi a última gota de água, as tropas da Junta Militar investem sobre Bissau, em menos de 24 horas assumem o controlo da cidade e todo o território guineense. Escreve o autor que num derradeiro ato de desespero das tropas fiéis a Nino Vieira, um bombardeamento criminoso e indiscriminado fez trinta vítimas, as quais se haviam refugiado num centro de formação profissional mantido pela Igreja Católica no Alto Bandim.

Infelizmente, o resto é história bem conhecida, pilhagens, incêndios, mais humilhações para os franceses, Nino refugia-se na embaixada de Portugal, a Junta Militar triunfa. Segue-se o seu reconhecimento, há o gesto de pacificação, os “Aguentas” não serão perseguidos; Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, é empossado como Presidente da República interino, Francisco Fadul recusa perseguições a Nino, este recebe asilo político em Portugal. Mas os sobressaltos irão continuar e os episódios mais recentes não são verdadeiramente abonatórios. Kumba Yalá ganhará as eleições presidenciais, novo desastre; Ansumane Mané confronta-se com novo poder, acabará executado a sangue-frio. Indo por aí fora, em 2005, Nino regressa à Guiné e será reeleito, seguem-se assassinatos em cadeia até chegar a hora do seu, em 2009. Verdadeiramente, a normalização democrática só chegará em 2014 com a eleição de Jomav, se bem que o seu mandato tenha tido um final um tanto turbulento, é um tempo de paz, em que se irá revelar a heterogeneidade de tendências dentro do PAIGC, o tal mistério sobre o qual não há nenhuma investigação que permita dizer quais as tendências dominantes dentro desse partido político que continua errático e sempre com conflitos internos ininteligíveis para os estudiosos e para o povo guineense.

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Notas do editor:

Vd. poste de 22 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23544: Notas de leitura (1477): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"não há nenhuma investigação que permita dizer quais as tendências dominantes dentro desse partido político" (PAIGC)

Não sei se esta frase é de Beja Santos se do autor do livro.

Tendências? Simplificando serão tantas, quantas as tribos existentes na Guiné e na vizinhança.

Tendências?por exemplo no MPLA chamavam-lhe facções, até que um dia (27 de Maio de 77)mataram-se mais uns aos outros do que na guerra civil de 28 anos.

Mas tinha que ser assim! paciência! Isto dito em crioulo tem mais substância.