1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2022:
Queridos amigos,
Hoje tirei dia livre, quero andar a saracotear-me sozinho por espaços e lugares de que só guardo as melhores recordações. Saio do metro na Gare du Midi e sou surpreendido com a avenida de Estalinegrado transformada em estaleiro, só se circula por passeios apertados, mas não se perde a oportunidade de reavivar a memória, como aqui se mostra. Atravessa-se uma avenida e é-se acolhido num alfarrabista que aproveitou a pandemia para fazer transformações de vulto, é uma autêntica catedral onde cabem obras a satisfazer os múltiplos domínios do conhecimento. E chegou o grande momento de visitar a Igreja de Nossa Senhora do Bom Socorro, aqui se fazem preces há décadas, no que me toca sinto-me recompensado com os frutos recebidos. E parto para um acontecimento que vai inflamar ruas e praças, a Zinneke Parade, estes jovens revelam um entusiasmo inultrapassável, estiveram 2 anos sem poder festejar na rua, vêm agora revelar a sua imaginação, a sua capacidade de recuperar e reciclar, mostrar as suas escolas de música, é um mergulho na alegria de viver. E despeço-me, por ora, dessa sala de audiências que é a Grand Place, amanhã é dia de recordar uma grande amizade, vou de novo passear sozinho mas a conversar com a lembrança de quem foi tão importante na vida associativa que pude levar em Bruxelas, designadamente quando fui representante da Confederação Europeia dos Sindicatos.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (66):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 4
Mário Beja Santos
Estou na avenida de Estalinegrado, saí no metro da Gare du Midi, tenho uma festa retumbante pela frente, mas venho com tempo para as minhas bisbilhotices. A avenida é neste momento um estaleiro, tem taludes de cima a baixo, paro cheio de curiosidade junto da fachada da Casa Jamaer, nome de um arquiteto reputadíssimo do século XIX que aqui fez a sua mansão em 1874 com detalhes muito curiosos do renascimento flamengo. Merece uma contemplação pela harmonia das suas linhas, prometo em próxima viagem obter uma fotografia com maior visibilidade, agora os tapumes não ajudam.
Quando, aí pelos primeiros anos da década de 1980, descobri os ofícios da Catedral Ortodoxa Grega dos Santos Arcanjos, Bruxelas, levantava-me cedinho para aqui estar no princípio da manhã de domingo e apanhar o ofício do princípio ao fim, aqueles cânticos enchem-me as medidas, sempre visitei países de religião ortodoxa, não quis perder estes ofícios, assim aconteceu em Belgrado, Sófia e Kiev. Situa-se na avenida Estalinegrado, muito perto da Casa Jamaer. E agora vou às livrarias, as minhas cavernas de Ali Babá.
É visita obrigatória, estou no boulevard Maurice Lemonnier, nº55, a casa chama-se Pêle-Mêle, compra e venda de livros, discos, CDs, DVDs e jogos, espaço enorme muito bom para perder a cabeça, venho felizmente contido pela mala de bagagem de um voo low cost, será puro suicídio embeiçar-me por este catálogo que deve pesar para aí uns 4 quilos, do tempo da Europália russa sobre os tesouros dos Czares. Folheia-se melancolicamente e chega. É o único alfarrabista de Bruxelas onde encontro em grande quantidade obras portuguesas. Por aqui andei regalado e com vontade de voltar, levo um CD com música de câmara de György Ligeti, um dos meus mais queridos compositores contemporâneos.
Agora uma visita obrigatória à Igreja de Nossa Senhora do Bom Socorro, é sempre a mesma história que se repete em todos os países, aqui houve uma modesta capela no século XII, foi depois albergue de peregrinos que caminhavam para Santiago de Compostela, no século XVII o que havia foi demolido e criou-se este templo dedicado à Virgem. É uma visita que faço há décadas, gosto muito do altar, dos medalhões suspensos, da formosa escultura da Virgem do Bom Socorro (que data do século XIV), deambulo, faço preces, dou conta da alegria do meu regresso e agora parto para uma festa de rua deslumbrante, mostro as imagens.
Este acontecimento que anima Bruxelas em maio, um dos mais significativos acontecimentos do trabalho associativo chama-se Zinneke Parade, uma alegria de muitos povos, de muito imaginário e transversalidade cultural. A pandemia suspendeu o evento, trabalhou-se agora a todo o vapor e mostra-se o saber-fazer de diferentes associações e organizações, instituições e centros culturais, intervêm diferentes disciplinas artísticas, há para aqui muito espírito de aventureiro, ninguém esconde nestes agrupamentos o entusiasmo com que se procura regressar à normalidade, vão por aqui desfilar bandas, projetos de precursão, ateliês afro-flamengos, gente ligada aos serviços se inserção, escolas secundárias, institutos pedagógicos, centros de reabilitação, plataformas de ajuda a jovens em dificuldade, e muitíssimo mais. Por ali ando a bater palmas, a delirar com esta parada que é um hino à vida, onde se recicla, para ela convergem sobretudo jovens que trazem entusiasmo, uma alegria esfuziante, a deitar abaixo a doença, o isolamento, os preconceitos raciais, aqui celebra-se o trabalho coletivo que se oferece à comunidade de Bruxelas. Despedem-se dizendo até 2024, oxalá eu possa estar cá neste dia.
É uma tarde em cheio, não quero regressar a Watermael-Boitsfort sem espreitar a Grand-Place, a maior sala de audiências de Bruxelas, é uma tarde de sonho, chegam os sinais de um entardecer suave, ponho-me a um canto só para rever estas fachadas onde há sempre um pormenor que vai saltar à vista, um claro aviso que posso aqui vir vezes sem conta, há sempre uma revelação em todo este rendilhado de pedra.
Amanhã de manhã quero prestar homenagem ao meu querido amigo, recentemente desaparecido, André Cornerotte, já aqui o mostrei em 2018, amanhã vou inventar um passeio pela Cité du Logis como se fosse a conversar com ele, ele a ensinar-me o espírito de presidia àquele projeto habitacional dos anos 1920, espero não vos dececionar.
(continua)
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Notas do editor
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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