sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Foi minha preocupação agregar a bibliografia mais significativa referente aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959. Juntaram-se as provas documentais sobre os factos e tomam-se agora as reflexões do Leopoldo Amado para a contextualização numa perspetiva do que representou para a luta de libertação. Se algum dos confrades que gosta de estudar este período que precedeu o início da luta armada possuir mais documentação pertinente à revelação de novos factos, agradece-se penhoradamente toda a ajuda que daí vier.

Um abraço do
Mário



Mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti

Mário Beja Santos

O historiador guineense Leopoldo Amado publicou em 2013 "Guineidade & Africanidade", um acervo de estudos, crónicas, ensaios e outros textos, Edições Vieira da Silva. Desse conjunto destaco dois documentos em que o autor releva a importância dos incidentes no Pidjiquiti, não se cinge particularmente aos factos do que ocorreu nessa tarde de 3 de agosto de 1959, insere-os num ecrã político onde se entrelaçam o movimento independentista africano, a emergência dos grupos nacionalistas na Guiné, a consolidação do pensamento de Cabral quanto à condução da guerra de libertação.

Começa por nos dar um quadro da vaga de nacionalismo guineense influenciada pela independência do Gana em 1957 e pelos países limítrofes, Guiné Conacri e Senegal, em 1958 e 1959, respetivamente. Na sua permanência na colónia da Guiné, entre 1952 e 1954, Cabral apoiou a fundação de uma agremiação desportiva, que não foi autorizada, segundo Leopoldo Amado há quem lhe atribua a paternidade da criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que se revelou irrelevante. Participou em reuniões, isso está demonstrado. 

Como é sabido, Julião Soares Sousa contesta a presença de Cabral na reunião de 19 de setembro de 1956 em que foi fundado o PAI – Partido Africano para a Independência, inequivocamente inerme até 1959, nem um documento consta. O Movimento de Libertação da Guiné (MLG), da responsabilidade de Rafael Barbosa, aparecerá ligado à grande greve do Pidjiquiti de 3 de agosto de 1959, toda a glorificação do martírio não tem por detrás uma prova factual da mão do PAI. 

Este Movimento de Libertação da Guiné foi fundado em 1958, um conjunto de nomes de fundadores aparecerá mais tarde no PAIGC. Escreve Leopoldo Amado que as movimentações para a criação do MLG terão remontado aos princípios de janeiro desse ano. E escreve o autor: 

“Sedentos de passar à ação, o MLG tenta gizar um plano assente sobretudo numa teia coesa de ligações com um considerável grupo de guineenses emigrados em Conacri, rapidamente se predispuseram a participar na exaltante obra rumo à independência nacional”. 

O encontro crucial para pôr em andamento o PAI ocorre durante a estadia de Cabral em Bissau, entre 14 e 21 de setembro de 1959, é neste tempo que se estabelecem as linhas de atuação, uma parte da direção do PAI fica em Conacri, Rafael Barbosa conduzirá a subversão no interior da Guiné. 

Um dos mitos alimentados pela hagiografia do PAIGC é o da expulsão de Cabral quando trabalhou no recenseamento agrícola e na granja de Pessubé, Cabral deixou bem claro por carta que regressava a Lisboa porque ele e a Maria Helena estavam gravemente afetados pela malária. É completa atoarda que tenha sido forçado a ir para Angola, foi ele que escolheu ir trabalhar para uma empresa próspera, a Sociedade Agrícola do Cassequel, bem remunerado.

Voltemos ao Pidjiquiti e ao que escreve Leopoldo Amado: 

"Depois de Pidjiquiti, para além de Cabral ter optado por estabelecer em Conacri a retaguarda segura para o PAI, sucederam-se outros importantes acontecimentos que mostram inequivocamente a opção do PAI no sentido do desenvolvimento de uma guerra prolongada de libertação nacional”

E enumeram-se as diligências na cena internacional, são por demais conhecidas. E este trabalho conclui com a relação das ações subversivas que irão ser desenvolvidas em 1961 e 1962, mostrando mesmo a ascensão efémera de outros grupos de libertação que designadamente a partir de 1964 desaparecerão da cena.

Noutro estudo intitulado “Simbólica de Pidjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau”, novamente Leopoldo Amado considera os acontecimentos como tributários de outros, e escreve: 

“O efeito multiplicador da atuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve dos marinheiros, ocorrida em 1957, no cais do Pidjiquiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações, a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por ação de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficado gravemente feridos cerca de uma centena”.

E para o autor estas duas reivindicações do Pidjiquiti, nomeadamente a última, popularizaram rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, seria estratégia do PAI a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, rapidamente se apreendeu que não eram essas pequenas reivindicações urbanas que permitiam estender a luta aos menos favorecidos. 

Daí a tese de Cabral de que era definitivo conquistar o proletariado no universo agrícola, tese que irá revolucionar a doutrina da luta de classes que era proposta pela vulgata marxista leninista. Leopoldo Amado aproveita este trabalho para falar dos primórdios do fenómeno nacionalista, fala da Liga Guineense, das múltiplas recusas em pagar o imposto de palhota e em certos atos desumanos do trabalho forçado. Este seu trabalho retoma o primeiro que citámos e volta deste modo aos acontecimentos do 3 de agosto de 1959: 

“Para além do massacre do Pidjiquiti corresponder justamente ao momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também este massacre que impulsionou, pouco depois (janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas), no decurso da Conferência dos Povos Pan-africanos".

Nestes termos, segundo Leopoldo Amado, os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 representaram a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, “ultrapassando o seu alcance político as de mera reivindicação laboral, na medida em que, a montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos direta ou indiretamente a ele relacionados, pelo que não é nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial”.

Dá-se por finda esta itinerância à bibliografia referente ao que se passou em 3 de agosto de 1959, persistem dúvidas quanto ao número de vítimas em mortos e feridos, a quem esteve por detrás do desencadeamento da greve, parece estar tudo claro quanto ao que aconteceu a partir do momento em que apareceu a polícia, que foi maltratada e maltratou, que regressou reequipada e depois a chegada do Exército. Não se possuem outros factos documentais para além dos citados.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Tive uma colega de hidroginástica que vivia em Bissau naquela altura e que se recorda de ver passar camionetas com os cadáveres cujo sangue escorria nos calções brancos (feitos com sacos de farinha). A família abandonou a Guiné pouco tempo depois, mas a recordação ficou-lhe dos tempos de menina de escola.
Estes textos que têm aparecido sobre o massacre não são bons nem são maus são uma barafunda onde ninguém quer ficar mal na foto e quer arranjar maneira de ficar bem individualmente ou juntamente com a facção política a que eventualmente pertencesse.
É assim que se faz!
Não há nada de concreto, nada de objectivo e não seria difícil de o encontrar. Assim, quanto mais barafunda descritiva, mais "heroicidade" e mais vitórias contra o colonialismo "tuga".
Tenho pena de um país que nem a sua história recente consegue reconstituir. Mas não esqueçamos que eu não tenho nada que ver com estas coisas. Eu até sou estrangeiro...

Bom FdS
António J. P. Costa