quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 6/12/1942 > Nazaré, Maria Adelaide e Ascensão, três vizinhas e amigas do Luís Henriques (1920-2012),  fotografadas na ponte sobre o Rio Grande, na altura à saída da Lourinhã, a norte -  Foto enviada para o amigo e vizinho, expedicionário em Cabo Verde, com "votos de verdadeira e sincera amizade".

A primeira parte da legenda é ilegível. A Maria Adelaide já morreu. Da Ascensão perdeu-se-lhe o rasto. A Nazaré era a tia da Mariete, a família toda emigrou para a América, em meados dos anos 50. E por lá terá casado a Nazaré... Era "ajuntadeira" (costureira de calçado), e trabalhava muito para o Luís Henriques,  sapateiro, que dava trabalho a muita gente na Lourinhã. 

O autor ainda se lembra  bem da ti Ad'lina, mãe da Nazaré, sua vizinha, e que era uma  espécie de curandeira lá do bairro... O poeta , quando jovem, morava na rua dos Valados, ou do Castelo, e elas na rua, paralela, a do Clube, na parte antiga da vila... Quando puto, e quando doente, ela - a ti Ad'lina - aplicava-lhe as suas mezinhas, receitas da medicina popular com séculos de eficácia simbólica e terapêutica... Lembra-se, com ternura e repulsa, das suas "unturas & benzeduras": uma em especial era aplicada na garganta, era feita com merda e gordura de galinha, para tratar da papeira... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


[...] 31. Jogava-se à bola, domingo à tarde, no campo de futebol, pelado, por detrás da igreja do convento, enquanto um cão uivava na vinha vindimada pelo Senhor, jogavam à bola os graúdos, os solteiros contra os casados, os vivos contra os mortos, os pobres contra os pedintes, os idiotas contra os felizardos, os esperançados da vida contra os da vida já cansados, os novos contra os da velha guarda…

A bola, as disputas entre aldeias vizinhas, o alvoroço do povo, o cabo chefe, o bufo, o louco, o beato, o lobisomem, o analfabeto contra o esperto, o feitor e o caseiro, o porco no estertor da morte, o regedor, o provedor da Santa Casa da Misericórdia, o rico contra o remediado, o pobre e o indigente, mais o cão que já não guardava a vinha vindimada do Senhor, velho, escanzelado, tinhoso, sarnento, doente, vira-latas.

Vieram depois dizer-te que era o medo que guardava a vinha do Senhor, quando tu e os da tua rua iam apanhar o rabisco!... 


E todos os ricos, que viviam em Lisboa, tinham um feitor ou um caseiro ou um criado tão mau como o "Brutamontes". Afinal, "ao  cabo de um ano tem  o criado as manhas do amo"...

Tinham medos deles,  os meninos da tua rua, quando iam roubar uvas ou pêras. Nem todos: alguns não tinham medo de nada, e já diziam muitas asneiras, como o "Frasco do Veneno", o "Brutamontes"  ou os filhos da "Bruxa" da tua rua.


32. Soletravas à noite, à luz do candeeiro a petróleo, a lição onde terra rimava com chão. T e um E, TE… ERR e um A, CHÃOOOOO!!!… 


E Deus Pai achava-te graça, era paciente, condescendente e até bonacheirão. E falava em verso quando estava com os amigos e conhecidos.

33. Não, ainda não havia televisão, nem a série Bonanza 
[1], havia o hino, na rádio, que era um luxo, havia Deus, a Pátria e a Família, e pouco mais, mas chegava, essa sagrada tríade, onde cabia todo o teu pequeno universo. E não se discutia Deus nem a Pátria nem a Família!...

E quando a série Bonanza aparecer, de quem mais vais gostar será do Hoss e do Joe Pequeno, lá do rancho da Ponderosa!





Tabanca de Candoz > c. 1980 >  Ainda se matava o porco em casa, no Norte do País, como na Lourinhã nos anos 50: "uma cena que Bruxelas quis banir definitivamente dos nossos campos e aldeias em nome de uma concepção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade"... 

Foto (e legenda): Blogue A Nossa Quinta de Candoz (com a devida vénia).


34. E no Natal ?!... Lembras-te do Natal, quando ainda o Pai Natal não tinha morto o Menino Jesus, e não havia luzinhas, a não ser as das velas ou do candeeiro a petróleo ?!… 

Ia-se à missa do Galo, à meia noite em ponto, na igreja do Castelo, tumular, tudo escuro como breu, e só depois, a tiritar de frio, de regresso a casa, é que se bebia o cacau quente e se comiam os coscorões, o arroz doce e as filhós de sangue de galinha!...

E só de manhã, cedo, é que te levantavas, em alvoroço, para saber a prenda que o Menino Jesus te deixara, no sapatinho, na chaminé: um lenço, umas peúgas, um chupa-chupa, um brinquedo de chocolate, embrulhado em tosco papel de prata!

Parca prenda para quem fora todo o ano um rapazinho bem comportado, temente a Deus, amigo dos seus pais e manas, diligente, obediente e inteligente! 



35. Havia os funcionários do grémio da lavoura, e os do comércio, das pescas, da indústria e artes correlativas, que recebiam, ao fim do mês, vencimento e chapelada, opa e pálio na procissão, e cartão de eleitor dos deputados e do supremo magistrado da Nação. Mais os da câmara e das finanças, dos correios, do tribunal e das conservatórias, a pequena burguesia engravatada da tua aldeia.


Chamavam-lhes os "mangas de alpaca"… por causa da manga postiça que usavam, desde os punhos até um pouco acima dos cotovelos, e que era apertada nas extremidades com um elástico; assim não estragavam ou sujavam o casaco, quando escreviam à mão, no tempo em que ainda não havia esferográficas e até a tinta das canetas era permanente; tudo era permanente, na tua aldeia, no teu tempo.   E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja, enquanto um cão uivava  na vinha vindimada do Senhor.

Havia ainda os comerciantes e os proprietários, que animavam o clube 14 de julho, que era o dia, não da tomada da Bastilha, como virás a saber mais tarde, mas do aniversário da Viscondezinha, uma das grandes proprietárias rurais da tua terra, que se casara com alguém importante, que veio de fora, e que, se não fora o príncipe encantado, só poderia ser um bacharel em leis ou em medicina, de Coimbra.

Não, nunca chegaste a conhecer a Viscondezinha, como lhe chamavam, temerosas e  ternurentas, as mulheres da tua aldeia.


36. Na tua aldeia, todas as meninas prendadas eram exogâmicas, casavam com alguém de fora e tinham direito a genuflexório, almofadado, na primeira fila da missa de domingo na igreja matriz. 


Vermelho, não, carmesim, emendava o sacristão que era bimbo, das terras do Demo, falava "atchim", era a favor da "situação", e atravessara meio país até arribar a esta terra que já fora de romanos, visigodos, mouros, judeus, moçárabes e francos.
Já não eram meninas, eram senhoras donas, de peruca, mumificadas, os rostos cobertos de pó de arroz, e tinham casarões com capelas e brasões, comprados em hasta pública, bens de mão morta dos espoliados do Liberalismo. 

37
. Havia um carcereiro e um coveiro, com que te metiam medo quando não querias comer a sopa... Fugia-se do coveiro, como do empestado ou do leproso: ninguém o cumprimentava de mão estendida, nem tinha amigos ou conhecidos... Ninguém queria ser coveiro na tua terra, era sempre alguém que vinha de fora.

O resto era moleiro, sapateiro, cavador de enxada ou criado, com direito a uma garrafão de cinco litros de água-pé podre, cocheiro, almocreve,trolha da construção civil, ferrador, marceneiro, caboqueiro, latoeiro ou funileiro, jornaleiro, pescador, homem do campo ou do mar, trabalhador, cansado, do vinho e da vinha do Senhor, ou então marçano, ou criada de servir nas avenidas novas da Lisboa, menina e moça, dos Antónios (o Santo, o Salazar, o Ferro, que povo, esse, chamava-se Zé!).

38. Não ia à escola a filha da camponesa, ia para a vila ou para a cidade, onde no máximo tirava a 3ª classe em professora particular, e depois aprendia a cultivar as boas maneiras e a fazer rissóis e pastéis de massa tenra e coscorões e arroz doce e a tricotar as teias da pobreza e a fazer as contas do merceeiro em papel de embrulho!... "Ah!, Senhora, como a vida está cara, os ladrões açambarcaram o açúcar, o café e o azeite!"... 


Casavam depois com os rapazes da vila, tinham filhos e filhas, e a estas havia a moda de as batizar com nomes afrancesados: bernardetes, elisabetes, gracietes, marietes, miletes, suzetes... Era mais chique que Francisca, Joana, Joaquina, Maria ou Manela.


39. Da janela do teu quarto, contavas, um a um, os cinquenta homens que em fila, de enxada em riste, cavavam a vinha do Senhor, encosta a cima, até ao alto onde se erguia um moinho de vento.

Do outro lado, encosta abaixo, outros tantos cinquenta homens, de enxada em punho, cavavam outra vinha do Senhor, que tinha muitas vinhas e fazia muitas pipas de vinho!...

Nessa época a riqueza media-se em pipas de vinho e  carros de bois de trigo e jeiras (que era a medida da terra). E não havia ainda motocultivadores e tratores.


40. Havia cães, isso sim, muitos cães, vadios. E tu tinhas fobia aos cães. Fugias dos cães e do "Brutamontes" e do seu bando, como o diabo fugia da cruz. Não, nunca tinhas visto o diabo em figura de gente, mas que ele existia, existia, tal como as bruxas. E seria ainda muito pior que o "Brutamontes".

Havia dois ou três médicos, e chegavam para todo o concelho, que a gente da tua aldeia só os chamava no estertor ou no pavor da morte, a eles e aos padres, às parteiras, às carpideiras, aos testamenteiros e aos gatos-pingados. Mal por mal, antes cadeia que hospital.

Havia duas boticas e chegavam, que o arsenal terapêutico cabia no malote do facultativo municipal. Com malvas e água fria, fazia-se um boticário numa dia.

Havia os cortejos de oferendas (cada um dava o que podia e calhava: uma abóbora, um chouriço, um galo ou um saco de batatas!), para se construir um hospital novo para a velha misericórdia do séc. XVI, onde os catres para os doentes pobres não chegavam, que os ricos e os remediados, esses, morriam em casa, confortados com a extrema unção, que fazia parte do arsenal da arte de bem morrer cedo e quanto mais depressa melhor, porque este mundo era um vale de lágrimas.

(Continua)
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[1] A série começou a ser exibida a RTP em 1961

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Nota do editor:

Vd. último poste da série > 14 de agosto de 2019  > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

Postes anteriores:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)


9 comentários:

José Saúde disse...

Luís, amigo e camarada

O meu apreço pela tua narrativa permanece intacta. A forma meteórica como tratas cada tema é simplesmente a prova "provada" que o homem, quando o seu saber resvala para colocar no papel outros efeitos, quiçá camuflados, que lhe vão na alma, é somente uma arte.

Os grandes homens, sobretudo escritores, de outrora tinham o engenho de o saber transmitir mensagens julgadas úteis ficando tudo, ou quase tudo, nas entrelinhas.

De facto as mantilhas de cães "vadios", de entre outras "dicas", foram sempre armas poderosas que os governos totalitários manejaram a seu belo prazer.

Parabéns, uma vez mais, pela tua prosa.

Abraço,

Zé Saúde




Maria Alice Ferreira Carneiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Joseph Belo
15 ago 2019 08:05
para eu

Caro Luís

Todo um mundo que desapareceu,não só da vida local de hoje mas mesmo do “imaginário “ das novas gerações.

Felizmente?

Como explicar-lhes ,com a nitidez violenta de então, o Deus-Patria-Família dos tempos de uma ditadura que tudo asfixiava?

O teu texto,lido a distância de todo um continente,cria melancolias várias.

Não só por espelhar de forma perfeita e abrangedora toda uma sociedade da estremadura de então mas,e não menos,todas as pequenas -grandes violências subjacentes,tanto físicas como e principalmente...psíquicas.

Na tão “badalada “ Europa de hoje que,se por um lado põe diariamente a nu algumas diferenças culturais entre os diversos povos que a constituem,por outro lado torna evidente (para quem as procurar) algumas das semelhanças ,tanto em costumes,valores e extructuras sociais entre povos aparentemente tão disparos como,por exemplo,o português e os escandinavos.

A descrição da vida diária de uma pequena cidade,ou aldeia rural,tirando-se alguns detalhes geográfico-climáticos,poderia ser apresentada quase do mesmo modo por escritor sueco.
A simples melancolia (para não escrever “drama”!) está no facto de o texto de Luís Graça espelhar um Portugal dos anos cinquenta,enquanto para serem descritos do mesmo modo por escritor escandinavo somos obrigados a recuar,pelo menos,150 anos no “tempo/histórico “ europeu.

Tempo/histórico subjectivo?

Infelizmente tudo leva a crer que não.

Um abraço do J.Belo

Valdemar Silva disse...

…. e havia o latoeiro que punha 'pingos' a tapar os buracos nas panelas e 'gatos' a juntar os pratos partidos, que a vidinha não dava dinheiro pra gastos.
.... e havia os calções com remendos e o ranhinho no nariz.
..... e havia o respeitinho é muito bonito e o 'sabe com quem está a falar'.
..... e havia o senhor doutor e o polícia que nos tratavam por tu.

Luis, venham mais pictogramas.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Obrigado, aos Josés, Saúde e Belo, pelos vossos comentários "certeiros"...

No caso do José Belo, que reaparece ao fim de largos meses de "silêncio", eu erspomdi-lhe o seguinte:

Os teus comentários revelam uma profunda sensibilidade sociocultural, e não posso dar.me ao luxo de os deixar na "caixinha de trás"... Vou pô-los na montra do blogue, fazendo um poste para a tua série... Como ainda faltam 60 "pictogramas", sentir-me-ei honrado em ter mais comentários teus e dos demais leitores... O "feedback" de leitores como tu é muito importante para ir "afinando" o texto, que está longe de estar "acabado"---

Falas de melancolia(s)...mais do que saudade(s)...O termo é apropriado...Nasci e crecsi até aos 10 anos numa vilória, a Lourinhã, sede do último concelho (ruralíssimo...) do distrito de Lisboa... Peniche é já distrito de Leiria e é outra "ambiência", se bem que a gente daqui, pescadores, tenham estado sempre muito ligadod a Peniche, que é o principal porto de pesca da região... Só da Lourinhã há, ainda hoje, 60 barcos matriculados na capitania do porto de Peniche...

Tenho uma relação forte com o mar (e os moinhos de vento), ainda hoje de manhã fui a Ribamar da Lourinhã, terra dos meus antepassados Maçaricos, comprar uns cinco quilos e tal de peixe seco (raia, sapata, safio, cação, abrótea, tamboril...)... Come-se como o bacalhau, com batata e muita cebola, era a "iguaria" dos pobres no inverno...Gostava de um dia te dar a comer, à beira-mar, o peixe seco da minha terra... Quando um dia te der na gana de passar por aqui... Estou a 40 minutos de Lisboa, tens cama, mesa e roupa lavada na minha / nossa casa da Lourinhã... O João está cá hoje, vem fazer surf e trouxe o violino...

Tentei, neste texto autobiográfic, captar a "ambiência algo fantasmagórica" da minha infância... Nasci no Estado Novo, como tu, mas é muito difícil transmitir às nossas gerações o que era o "fascismo português suave"...sem entrar com os "estereótipos" habituais da nossa esquerda...

Fez-me muito bem o teu comentário, obrigado... Muitas vezes pergunto-me porque e para quem escrevo estas "merdas"...Afinal, a nossa geração tem muitas coisas em comum, independentemente cde ser se ter nascido em Lisboa, em Coimbra, no Porto, em Cascais ou na Lourinhã...

Um xicoração fraterno, Luís

Hélder Valério disse...

Pois caro Luís, se não te importares muito, vou continuar a pontuar os meus comentários conforme a minha vivência em contraponto (pontualmente) com a tua.

Mas devo dizer, antes do mais, que concordo com o que o José Belo refere.
Recuamos no tempo, "retratamos" os costumes e a vida das pessoas e da comunidade, com as suas grandezas e misérias e, se soubermos "ver e ler", podemos ver a projecção que os diferentes percursos nos proporcionaram, a nós, individualmente, mas também às comunidades, às regiões, ao País.
É difícil (quase impossível) explicar às novas gerações como era viver nesses tempos (os nossos) dos anos 40, 50, 60. Sim, é difícil, mas há que tentar!

Mas vamos ao contraponto.
Com que então iam apanhar o rabisco, iam às uvas e às peras....
Bem, lá pelas férias de verão na minha aldeia (ribatejana, sim, da zona do "Bairro", uma das três zonas que se podem considerar compor o Ribatejo e não da Estremadura, como a tua, embora com imensos pontos comuns) eu e uma quantidade apreciável de "filhos da terra" que se encontravam da "diáspora" e que iam lá por essas altura, com mais alguns de lá, também íamos à fruta.
Que nos dariam, é certo, mas não tinha graça!
Naquelas idades, dos 14, 15, 16 anos quem não gostava de correr riscos? Quem não se imaginava um "combatente" ludibriando o "inimigo"?
Que graça tinha um melão dado, uvas dadas, fruta dada?
Mesmo correndo o risco de uma chumbada ou de uma cartuxada de sal (diziam que isso era o que alguns donos de terras tinham mas nunca me apercebi de terem sido usados) era muito mais saboroso se fossem "roubados". E as técnicas usadas para tal? Autênticas preparações para futuros "golpes de mão", para os tempos que se aproximavam....
Também fizemos assaltos a um aviário.
Um dos elementos do grupo, "residente" à época na aldeia, era filho de uma pessoa que tinha um aviário. Quando algum daqueles franguinhos aparecia morto era retirado e eliminado com a suspeita de alguma maleita.
Pois nós tratámos de engendrar uma maneira de regularmente (quando queríamos) termos franguinhos para serem eliminados, não por qualquer doença mas porque simplesmente "apareciam mortos" e nós bem sabíamos como e porquê.
Mas isso não cabe agora revelar aqui pois envolve alguma crueldade e nos tempos que correm há o PAN....

Relembras depois a "matança do porco".
Na minha aldeia, como presumo que em milhentas delas por esse país fora, também havia "matança do porco". E, confesso, não era coisa que me agradasse. Ficava impressionado com os guinchos do porco, indefeso, a pressentir a sua morte, a sangue frio, manietado por uma quantidade apreciável de homens, quantos dos quais apreciando o sofrimento por antecipação do animal, tal como se pode ver na foto que ilustra o texto e em que se vêem várias caras sorridentes.
Uma dessas situações ocorria por baixo da casa da minha avó paterna, onde havia um talho, e eu não poderia deixar de ouvir. Considerem como quiserem mas foi sempre algo que rejeitei mentalmente.

Quanto ao Bonanza... pois a mim calhava-me identificar com o Adam. O meu "grupo natural" tinha além de mim que fazia (e faço) anos em Outubro, o João Cunha em Dezembro e o António Horta (já falecido) em Março do ano seguinte pelo que sendo "o mais velho" (acho que Hélder pode significar também isso mesmo) era eu que tinha de ser o Adam....

... continua ....

Hélder Sousa



Hélder Valério disse...

... continuação ...

O Natal.... também o passava na minha aldeia. Mais coisa menos coisa o "retrato" podia ser o mesmo daquele que relatas. Muito "Menino Jesus" e pouco ou nada "Pai Natal". O presépio, as luzinhas, a missa... a curiosidade da(s) prenda(s) logo pela manhã.

Sobre a "viscondezinha" não havia disso lá na aldeia. Havia, em tempos que já se reparava nisso, e durante as tais férias de verão, umas meninas mais prendadas do que as da aldeia e que eram as "netas do Ramada Curto". Nos arredores próximos da aldeia temos, ainda, a Quinta do Ramada Curto, e também a do Embaixador Teixeira de Sampaio.

Na parte restante descreves, com muita precisão, as profissões, a vida, a labuta, de tantas figuras que "encheram" a tua infância e que, como se tem visto, reflectem afinal muito bem um retrato geral do país rural.

Tens listadas umas figuras/profissões interessantes.
Entre elas falas do "carcereiro" e dizes que com ele e o coveiro "metiam medo para comer a sopa".
Pois olha, em determinado período da infância, em Vila Franca, fazia parte do grupo de amigos de brincadeira o Zé-zé, que era o filho do carcereiro. Muitas vezes (algumas vezes) o xerife prendia algum bandido (nas brincadeiras, claro) e esse infeliz era mesmo encarcerado (se havia vaga...) numa cela a sério. Nunca passou pela cabeça de ninguém que tal situação seria inconveniente, ilegal até, mas dava veracidade à acção.Só me tocou uma vez ficar prisioneiro e, confesso, não gostei.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Hélder, as tuas memórias da infância e adolescência em terras ribatejanas confirmam aquilo que eu já escrevi: os putos, a nossa geração, tinha uma "imaginação febril" e a sua maior alegria era a brincadeira na rua... Hoje, definitivamente, não vês miúdos a brincar na rua...Acho que temos devolver a rua às pessoas, aos velhos, aos adultos e sobretudo às crianças!...

Essa do filho do carcereiro brincar, com vocês, aos polícias e ladrões, e depois enjaularem os "ladrões" mesmo "a série", é de cinco estrelas!... Agora vou-me deitar... LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Matança do porco... É um espetáculo "bárbaro", tão "bárbaro" como pôr a lagosta, o lavagante ou as navalheiras, vivas, na panela a ferver... Também nunca gostei de ver e ouvir matar o porco... Como nunca fui a uma tourada... Mas fazem parte da nossa cultura... Também fiz a guerra sem nunca gostar de guerras... Rm 1969, era um dos meus livros de cabeceira, o "Livro Sexto" de Sophia... LG
____________

As Pessoas Sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa

Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' (1962)