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sábado, 14 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26918: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): os arraiais e as fogueiras dos santos populares



Alcachofra brava (Cynara cardunculus)

Coisas & loisas do nosso tempo de meninos 
e moços >  Os arraiais e as  fogueiras dos santos populares

por Luís Graça



Havia as fogueiras do Sant'António, 
do São João, e do São Pedro,
os arraiais populares,
a queima das alcachofras, 
os balões, os refrões
("um tostãozinho, vizinho, vizinha,
p'ros santos populares,
primeiro o Sant'António,
depois o Sã João
e por fim o Sã Pedro,
p'ra
nossa reinação!”)

Havia as bichas-de-rabear,
as bombas de carnaval,
o calvário e as suas catorze estações…

Alguém sabia lá o que era o solstício de verão,
e o eterno retorno,
e as festividades cíclicas,
e a purificação do corpo
e o exorcismo do mal...
E, muito menos, as fogueiras da Santa Inquisição.

Sabia-se da salvação da alma,
e dos raspanetes do padre vigário
e dos puxões de orelhas da catequista
quando a malta não decorava a doutrina,
porque só queria jogar à bola.

Não se dizia “alcachofra”, mas “cardo”…
“Cardo florido”,
no dia seguinte, posto à janela,
depois de queimado na fogueira,
era sinal, para as raparigas, de amor correspondido.
Tinha que ser sofrido, mas eterno, o amor, naquele tempo.

Saltei três vezes á fogueira,
Fazendo fisgas à morte,
Sant'António, dai-me sorte,
E amor p'ra vida inteira.

P'ra que o mê amor não sofra,
Oh Sant'António querido,
Queima-me  bem a alcachofra,
E dá-lhe o cardo florido.

Havia as fogueiras dos santos populares.
E a rivalidade dos bandos dos rapazes da tua rua 
e das ruas vizinhas,
da rua Grande, do Clube, das Aravessas...
Faziam-se e desfaziam-se por essa altura, os bandos, as alianças,
E tudo por causa dos santos da nossa devoção.
Era ver quem conseguia roçar, juntar e acarretar
mais mato e lenha para as fogueiras. 

Durante as semanas anteriores,
já andavam a roçar mato
e a escondê-lo uns dos outros.
Chegava a haver assaltos, roubos, ataques, cabeças rachadas…
Arranjavam-se aliados ocasionais, guardas e sentinelas,
nos mais velhos que tinham currais ou fazendas por ali perto,
à volta dos moinhos de vento 
e do castelo dos mouros.
O Néu, da ti Albertina, que já morreu,

emprestava a carroça,
puxada por uma burra…

Era um mundo estritamente masculino,
de brincadeiras de rapazes, aprendizes de machos,
futuros bravos soldados do império.
As meninas, essas, de saia de chita, brincavam entre elas
com bonecas de papel ou matrafonas de pano
sob a supervisão das irmãs mais velhas, das mães ou das avós.

As fogueiras faziam-se no largo inclinado dos Celeiros
(ou da Bica, por que havia lá um fontanário de 1936,
obra pública do Estado Novo).
Na rua mais alta da vila, 
a do Cemitério ou do Castelo ou dos Valados.

Só havia uma fogueira.
A rivalidade consistia em saber alimentá-la,
e não deixar apagá-la.
E, quanto maior fosse a labareda, melhor.
E só os valentaços se atreviam a furar aquela parede de fogo.

O arraial do largo dos Celeiros
era o orgulho dos meninos da vila velha
e atraía os vizinhos das ruas adjacentes
e os parzinhos,
mais os  casados e os solteiros.

“Um tostãozinho, vizinho, vizinha, 
p'ro Sã João!”…
Era o mais querido dos três santos populares, o São João,
porque era menino.
A seguir vinha o Santo António, 
matreiro, casamenteiro e brejeiro.
Ao São Pedro, de barbas brancas compridas,
já ninguém lhe ligava nenhuma.
E depois já se tinha gasto a lenha toda…

P'lo São Pedro os felizardos juravam amor eterno.
E os rapazes iam às sortes.

Com os tostões angariados,
os pequenos donos do arraial dos santos populares
compravam bichas-de-rabear,
estalinhos,
serpentinas
e até bombas de Carnaval…
E, claro, guloseimas e pirolitos.
Os sonhos pequenos de gente de palmo e meio,
que gostava também de brincar 
ás guerras de índios e cobóis.

Mal sabiam eles que dentro em breve
iria estalar uma guerra a sério,
e que os brinquedos da guerra
já não seriam as bombas de carnaval
nem as bichas-de-rabear
nem as fogueiras de saltar.

Lourinhã, Luís Graça (2005). Revisto, 13/6/2025.

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Nota do editor LG:

2 comentários:

Joaquim Costa disse...

O São João no Porto mostra a alma da cidade – A festa mais genuína, feita de afetos, quem passa merece uma saudação. Um suave olá com o martelinho sonoro, um alho porro deslizando carinhosamente no rosto e... sempre, sempre um sorriso.
A minha homenagem a esta cidade que me adotou… e se me entranhou.
No meu regresso a casa depois de dois longos anos passados no inferno da Guiné (Agosto de 1974), chegado ao Porto (Campanhã), pese embora a sofreguidão em rever a família, uma força vinda das entranhas levou-me ao centro da cidade, apanhando um comboio com destino à estação de S. Bento, com o dia ainda a romper.
Os anos de estudante fizeram desta cidade a minha casa.
A esta hora poucas pessoas se viam nas ruas e nos transportes.
Senti a cidade a abrir os seus braços só para mim.
Foi a primeira sensação do regresso a casa, depois de uma longa e cansativa caminhada.
A estação de S. Bento, nunca me pareceu tão bonita.
Caminhei quase sozinho pelos Aliados, sentindo a falta do café Astória e do Imperial, este com a sua imponente porta giratória e o engraxador residente. Subi os Clérigos, passei pelo Estrela, o Aviz, o Piolho e ainda pelo Ceuta, felizmente, tal como os deixei.
Respirei fundo várias vezes, chegando mesmo a limpar uma lágrima por este abraço da cidade que adotei e se me entranhou.
Joaquim Costa.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um belo hino ao Porto!