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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar





José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985)

1. Foram-nos enviados dois poemas do José Gomes Ferreira,  pelo Mário Gaspar,  muito antes da pandemia ... Já transcrevemos o teor da mensagem  (*) em que o nosso camarada, ex-fur mil, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), fala da sua intância e do meio operário em que foi criado, em Alhandra, e em que tomou o gosto pela leitura de  grandes escritores, neorrealistas, como o Soeiro Pereira Gomes e o Alves Redol... 


(...) Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16

Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

(...) Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.(...)

(...) Tanto que aprendi... Conheci um senhor da nossa literatura, Alves Redol. Reunia com ele (...).

(...) Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na literatura. Grandes senhores e esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci. (...)

Aqui vão para a nossa série "Poemateca" (**). O Mário não cita a fonte. Procurámos colmatar essa lacuna. E ficámos a saber que o poeta nasceu em Santo Ildefonso, Porto. De qualquer modo, nesta série , os poetas e os poemas selecionados são sempre uma escolha pessoal e livre dos nossos camaradas. O Mário manda-nos regularmente poesia, e mandou-nos muita, durante a pandemia de covid-19. Não mo agradeco. Faço-o agora.



Viver Sempre Também Cansa!

por José Gomes Ferreira



O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


In: José Gomes Ferreira - "Viver Sempre também Cansa" (publicado originalmente na "Presença, folha de arte e crítica", ,julho-outubro,1931)


Devia Morrer-se de Outra Maneira

por José Gomes Ferreira



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens. 

Quando nos sentíssemos cansados, 
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs, 
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: 
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
 em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, 
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, 
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. 
Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!" 

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... 
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer, 
começaria a transfigurar-se em fumo... 
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem? 

Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… 


In: José Gomes Ferreira, "Poeta Militante I, II e III"  (
1978)

(Revisão / fixação de texto, notas: LG)


___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 21 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... "Meu amor do Norte": o poeta foi casado com uma norueguesa, pormenor biográfico que eu também desconhecia.

Fernando Ribeiro disse...

Luís, sabes como se chama a rua do Porto onde José Gomes Ferreira nasceu? Não pode haver nome de rua mais apropriado para o nascimento de um poeta: Rua das Musas! É uma rua secundaríssima, transversal às ruas do Bonjardim e de Camões, perto do centro do Porto, com características eminentemente operárias na sua parte mais oriental, que é muito íngreme.

Quando li o primeiro livro de José Gomes Ferreira, ainda eu estava a entrar na adolescência e a abandonar as histórias de cowboys aos quadradinhos do Mundo de Aventuras e do Condor Popular. O livro chamava-se O Mundo dos Outros, era um livro de prosa e não de poesia, e impressinou-me imenso pelas vidas aparentemente reais que ele retratou nesse livro, com os seus pequenos e grandes dramas do quotidiano. Contribuiu muitíssimo para a minha formação como adulto.

José Gomes Ferreira casou-se com uma norueguesa, e ele deve tê-la conhecido quando foi cônsul de Portugal numa cidade da Noruega, no tempo da Primeira República. Para haver um cônsul de Portugal, tinha que haver portugueses por lá. A explicação é muito simples e chama-se bacalhau. A frota bacalhoeira portuguesa que pescava na águas da Noruega devia vir a terra de vez em quando, para se reabastecer e para se abrigar dos temporais, quando eles aconteciam. Uma vez em terra e após vários meses sem verem uma mulher, os pescadores portugueses envolviam-se com as loiras norueguesas... Este é um facto pouco conhecido, mas há muito sangue português a circular nas veias de noruegueses, sobretudo nos do sudoeste do país.

Anónimo disse...

Rua das Musas que conheço bem, algumas aventuras que se passaram por ali, nos velhos tempos de menino e moço.
Quem desce a Rua de Camões, ou sobre a rua de santa Catarina, e chega a um largo chamado da Fontinha ( onde se faziam uns bailes na casa de um Senhor amigo ou familiar de um dos meus cunhados, ainda solteiros, e nesse sitio se arranjou namoro, uma das minhas irmãs e se casou estava eu na Guiné).
entra por aí e vai ter à Rua das Musas, um local antigo, perto de Gonçalo Cristóvão, do JN, a antiga Direcção de Finanças do Porto, João das Regras, ACP, etc.
Nunca liguei muito ao nome, que estaria ligado a José Gomes Ferreira, para mim, nessa época, um ilustre desconhecido)
Ainda não li os poemas, mas vou ler mais logo.
VT.